Os Festivais não caem do céu
O Barreiro é uma cidade de ciclos. As outras cidades se calhar também são. Não sei. Não cresci nas outras cidades.
A história recente do Barreiro dotou-o de um espantoso património associativo que, sendo, actualmente, na sua maioria imobiliário, é também herança cultural que subsiste no adormecido subconsciente das gentes camarras (era assim que os barreirenses se apelidavam a si próprios na altura em que ainda se davam ao trabalho de se apelidar de alguma coisa). As condicionantes históricas que criaram esta situação no Barreiro serão objecto de estudo de historiadores e não o assunto deste texto. Querem saber mais vão ler um livro ou venham ao Barreiro chatear um cota que ele explica-vos (faço esta piada com plena consciência que, com 41 anos de idade, vou deixar de lhe achar graça mais cedo do que gostaria). Aliado a esta realidade, ou talvez por causa dela, o Barreiro sempre foi uma cidade plena de actividade musical. Não me refiro só a bandas filarmónicas. O papel das filarmónicas é inestimável na cultura de uma cidade mas convenhamos que qualquer Vila Nova de Milheiral de Perdizes de Baixo tem uma. Refiro-me a grupos de música moderna.
A cada década, mais coisa menos coisa, surge no Barreiro e arredores um punhado de novos grupos que fazem a sua dança e depois estacionam numa espécie de limbo de actividade inactiva próprio das bandas que nunca acabaram embora já não façam a ponta-de-um-corno.
Os anos 90 trouxeram, no entanto, uma ideia nova que ia assentar no Barreiro que nem uma luva. O ‘Do-it-yourself’ . Alimentado por algumas inovações tecnológicas que potenciaram a baixa de preços de material que anteriormente era inacessível à maioria dos indivíduos, e por uma maior abertura de mentalidades, a espelhar o que se fazia já noutros países, qualquer pessoa podia agora gravar e produzir um disco ou organizar um evento. Um disco a sério. Um vinil com uma capa impressa a cores e com plástico à volta e tudo. É neste contexto que surgem uma série de pequenas editoras e pequenos eventos, vou destacar a editora Bee Keeper porque, embora não tenha a certeza que tenha sido a primeira a fazer este tipo de coisas, era com certeza a porta-estandarte deste movimento do ‘faz tu’ em Portugal.
É no rescaldo desta explosão de possibilidades que vejo nascer no Barreiro, produto da vontade de três amigos, a Hey Pachuco! Primeiro como editora e mais tarde como associação e promotora de eventos. Um evento, no entanto, destaca-se dos demais, se não só pela dimensão também pela projecção internacional. O Barreiro Rocks.
Indubitavelmente, aquilo que começou como uma forma de dar aos grupos da recém criada Hey Pachuco! uma oportunidade de tocarem ao vivo, acabou por ser o que faltava ao Barreiro para proporcionar ‘estrutura’ para que estes mesmos (e outros) grupos pudessem desenvolver os seus projectos de forma mais consistente e objectiva. E como é que fez isto? Criando festas de apresentação do festival por todo o país (e não só) nas quais os artistas ligados à editora podiam tocar fora do Barreiro para outros públicos. Estabelecendo ligações com outras associações e festivais, criando um intercâmbio de ideias e de músicos, de forma mais ou menos pontual mas que permitiu a criação de um pequeno circuito no qual os grupos podem tocar e que é de uma importância fundamental para o seu desenvolvimento e sobrevivência. Mas acima de tudo, na minha opinião, apresentando a cada edição cartazes que incluem sempre, para além de grandes nomes internacionais, também grupos barreirenses e portugueses em geral (não desfazendo). Esta promiscuidade salutar entre estabelecidos grupos estrangeiros habituados a outras andanças e os grupos locais de rock foi um verdadeiro ‘abre-olhos’ para os músicos portugueses que nele estiveram envolvidos. Pelo menos para mim foi. Não é todos os dias que tocas no mesmo palco que o Andre Williams, ou assistes ao soundcheck dos Gallon Drunk, ou passas duas horas em viagem suburbana com o Kid Congo Powers a falar da vida na estrada com o Nick Cave ou com os Gun Club. Estas coisas não caem do céu.
Numa nota mais pessoal posso dizer-vos que, para mim (e para muita boa gente), o Barreiro Rocks é o Natal e o Ano Novo. É uma família. É quando reencontras amigos do Barreiro e de todas as partes do mundo, que não vias há dois dias ou há dois anos. É uma celebração da música e da amizade na qual se ouve falar Português, Inglês, Espanhol, Françês ou Checo. É o festival em que o público é músico e os músicos são público. É uma ‘granda’ festa e uma ‘granda’ trabalheira para a qual se mobiliza um exército de amigos para rasgar bilhetes e fazer sandes e fazer acontecer um evento que, no meu entender, é único no mundo. É único por estes motivos. Porque não é uma máquina. Porque não é um desfile. Porque não é a feira-popular com uns concertos à mistura. É uma festa onde é dado ênfase à música, à boa-onda e à amizade. Há uns posers? Há. Há uns hipsters profissionais que gostam de mandar bitaites sobre a cor dos azulejos da casa de banho. Também há. Mas isso faz tudo parte da festa. Às vezes precisas que um pardalito faça uma caganita na tua árvore de natal para perceberes que não é uma caganita que te vai estragar o natal.
É verdade que os festivais não caem do céu, mas este aterrou no sitio que parecia ser o improvável e acabou por ser o certo.