Passaram 20 anos desde o batismo discográfico, com Music for Hair; desde então, um assalto inquieto de resultados do seu trabalho, discos editados com uma impressionante métrica de dois anos e, mais importante do que tudo, canções que nos ajudam a olhar para o mundo com outros sentidos. Andrew Bird regressa ao nosso país e traz o seu novo Are You Serious.
Se é certo que o risco é a medição que os capazes utilizam, não implicitamente, aos feitos dos loucos, também desses últimos tanto se poderia ficar a dever em matéria de realização para lá do espectável. Andrew Bird habituou-nos, nas últimas duas décadas, a que essa fita métrica cheia de verdade passasse um pouco em desgraça, dada a amplitude, o cruzamento entre a novidade e o risco e a matéria louca a que nenhum génio pode dispensar.
Are You Serious sai da rota por onde orbitaram os seus últimos quatro trabalhos discográficos, é mais abrangente, não opta por uma evocação temática e veste-se de uma carga elétrica que não víamos em Bird há mais de dez anos, muito certamente. Mas o disco não se contenta só com isso: tem fulgor e atrevimento suficientes para aqui narrarmos uma das mais belas aventuras deste 2016.
À boa tradição de letrista a que sempre habituou os nossos ouvidos e as suas próprias filiações melódicas, a espinha dorsal em que se vão ramificar cada uma das 11 canções deste novo trabalho (na versão deluxe, com mais duas canções) acontece no relato autobiográfico, na exposição disso a uma clareira do gosto comum. Que venham os santos salvar o mundo, propõe-nos a certo território de escuta.
O génio da Califórnia transforma, neste seu mais recente trabalho, a amálgama de influências que carrega, transporta isso para a elevação de algo só seu. Não é único, mas também não é de comum mortal, essa pesca criativa que origina algo novo no mundo.
Are You Serious puxa para a frente uma guitarra elétrica, talvez, até, sintomaticamente, algum reforço loudness de baterias e baixo, algo inesperado para quem veio de quatro discos totalmente centrados em voz, guitarra acústica e violino — sempre o violino, esse seu velho companheiro de instrução primária.
É sobre essa formação clássica que pairam grande parte das suas linhas biográficas nos últimos anos, como aqui já se reforçou; mas é também desse campo mais estreito, formal e concentrado que Bird abre as portas para algo cada vez mais pop e acessível, sem com isso baixar qualquer tom em sopro de virtuosismo.
Sobressaem os assobios e a cadência country, um disco com canções que se expandem a cada reforço de escuta. Talvez em “Left Handed Kisses”, canção em que partilha protagonismo com Fiona Apple, tenhamos o mais sobressaído texto dramático desta poética cantada, que aqui consagra Andrew Bird em 2016.
Depois da temporada que passou em Lisboa, habitando o apartamento do seu amigo e então eurodeputado Rui Tavares na Graça, partiu em 2010 com uma complexa e profunda reverência ao povo português, votando dois anos mais tarde toda essa matéria de inspiração e admiração numa canção do seu disco Break It Yourself, “Lusitania”, com a arrepiante colaboração de St. Vincent.
Andrew Bird volta ao nosso país para a edição deste ano do Misty Fest. Atua nas cidades do Porto e de Lisboa a 8 e 9 de novembro, respetivamente.
Tiago Ribeiro
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*Tradutor desencorajado, descrente no sistema solar e amante de picanha mal passada, Tiago Ribeiro circula com cartão-de-cidadão caducado e não acredita em nada do que não vê. Escreve invertebradamente e pensa com regularidade sobre coisa nenhuma. Na Antena3 desde 2015 e no mundo desde que se inventou o Holoceno.