De 9 a 19 de fevereiro, a capital alemã recebeu a 67.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Também conhecido como Berlinale, é um dos mais importantes festivais de cinema da Europa.
No final do festival, Rui Pedro Tendinha conta à Antena 3 tudo o que se passou pela Berlinale.
Dia 1
O primeiro dia na Berlinale serve para aproveitar o bar aberto da festa de abertura. Era bom que assim fosse. Serve sobretudo para marcar entrevistas, dizer olá à idosa crítica de cinema do Nepal, ir buscar a acreditação e ficar com as orelhas geladas com os -7 graus que estão lá fora. No meu caso serviu também para ficar indiferente a Django, de Étienne Comar, que não é sobre o Django dos westerns mas sim sobre o guitarrista cigano Django Reinhardt durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de um estimável Reda Ketab no papel principal, o filme nunca tem qualquer golpe de asa e deveria ter mais música.
Música coisa que não falta a T2 Trainspotting, de Danny Boyle, apresentado na seleção oficial fora de competição. É um dos melhores filmes de Boyle e não fica muito aquém do original, uma ode ao direito pela nostalgia que serviu como excelente aperitivo à maratona que se seguiu.
Dia 2
Começar o dia com um visionamento às 8h30 da manhã numa sala do outro lado da cidade. E sim, a festa de abertura teve mesmo bar aberto. O filme em questão foi o muito estimável Final Portrait, de Stanley Tucci, que todos conhecemos melhor como ator. Pois bem, como cineasta é bem estimável e este filme sobre a relação de Alberto Giacometti e o biógrafo e espião americano James Lord resulta muitíssimo bem. Ajuda também imenso a interpretação superlativa de Rush como o artista suíço.
Da invasão portuguesa comecei a ver Vazante, co-produção luso-brasileira dirigida por Daniela Thomas e com o português Adriano Carvalho. Um filme que nos puxa para o seu “gloomy” preto e branco e leva-nos para os horrores da colonização portuguesa no Brasil. Demora tempo a entrar mas depois compensa.
Logo a seguir, o diretor do Fest, o tal festival de cinema jovem de Berlim, oferece-me um convite para a festa do seu festival a ter lugar uns dias antes. Quem quiser, pode vir a Berlim e fazer um festival apenas com as festas.
O dia termina com uma desgraça americana, The Dinner, de Oren Moverman, sobre a nova culpa americana. Foi o pior da competição.
Dia 3
Dia para descobrir o cinema de laboratório experimental de Filipa César com o seu Spell Reel, uma espécie de documentário tese sobre a memória audiovisual da Guiné Bissau e a sua validade para a compreensão da sua independência. Um filme de imagens de arquivo e de experiência entre o passado e o presente. Em Portugal dará um bom debate nacional.
Sem tempo para comer nenhum schnitzel parto para um hotel de design onde numa sala de reuniões me espera Cecile de France, a belga que encantou o mundo em A Residência Espanhola e que em Django faz de femme fatale. A conversa é interessante e no final diz-me que as calças que tem vestidas são as da sua personagem no “biopic” de Django Reinhardt.
Tempo logo a seguir para beber um café a 2.70 euros e partir para outro hotel, mais luxuoso, para conversar com o gangue de Final Portrait, onde encontro um Armie Hammer a dizer-me que não é gay e que é apenas coincidência estar em dois filmes aqui no festival onde faz de homossexual.
De regresso ao cinema, fico na Competição onde vejo Wild Maus, humor austríaco de Joseh Hader. A história da fúria de um crítico de música que é despedido do seu jornal. Uma espécie de comédia rabujenta contra os tempos modernos. Tem charme.
Dia 4
Às 8h da manhã acabo o pequeno-almoço à pressa e leio na Variety que Terrence Malick já tem pronto Radegund, o seu filme sobre a Segunda Grande Guerra, feito com atores europeus. O homem não pára depois de Leveza (Song to Song)...
Ainda sob efeitos de cafeína entro na sala para Viceroy’s House, de Gurinder Chada, pastelão britânico sobre a entrega da Índia pelo império britânico. Só se pode compreender que apareça na seleção oficial para o festival ficar bem com o poderoso lobby do cinema britânico. Uma coisa é certa, a Berlinale está a apaixonada pelo cinema português e foi bonito reencontrar um ex-Urso de Ouro, João Salaviza, aqui na Alemanha. Altas Cidades de Ossadas é a sua nova curta e é uma deambulação válida sobre o universo do músico Karlon. Só tem um problema: às vezes parece em demasia Pedro Costa.
À tarde, no terceiro balcão vi Una Mujer Fantastica, do chileno Sebastian Lelio, que já conhecia do belíssimo Gloria. O filme é mais um triunfo para o cineasta que agora começa a filmar em língua de Shakespeare.
Privado de sono, tive ainda tempo de ir ao visionamento de imprensa de Call me By Your Name, de Luca Guadagnino, o filme com maior “hype” do festival. Uma história de amor entre um adolescente e um jovem académico numa cidade do norte da Itália. Terno, comovente e cheio de soluções de cinema, percebe-se agora a razão de tanto falatório no Festival Sundance, onde uma semanas antes tinha estado em destaque.
Dia 5
Ainda abalado pela beleza de Call Me By Your Name, dou um saltinho ao pequeno-almoço da European Film Promotion que tem em desfile as Shooting Stars, uma iniciativa que visa promover as novas estrelas do cinema europeu. Victoria Guerra é a Shooting Stars portuguesa e queixa-se da dureza dos horários para os jovens atores. Mas conta-me também que Wilde Marriage, o filme que fez na América com Malkovich e Sir Patrick Stewart, deve estrear em Setembro.
Em seguida, volto a estar numa mesa redonda com Armie Hammer, o ator de Call Me By Your Name, uma das estrelas mais celebradas aqui na Berlinale. Hammer conta-me que está nas nuvens com a receção do filme.
A soirée é passada com sessão dupla: primeiro The Lost City of Z, de James Gray, história sobre exploradores ingleses na Amazónia, e The Young Karl Marx, de Raoul Peck, olhar sobre a amizade de Karl Marx e Engels. O primeiro é bem capaz de ser o pior filme de Gray mas mesmo assim é muito recomendável (confesso: Gray é um dos meus cineastas de cabeceira no novo cinema americano), enquanto o segundo é uma agradável surpresa: um projeto didáctico sem ser académico…
Com tudo isso, faltam-me as forças e não consigo ir à festa portuguesa do festival FEST. O Nuno Lopes era DJ e no facebook percebo que os festivaleiros puseram o club a abarrotar…
Dia 6
Logo de manhã viajo até à Helsínquia retro de Aki Kaurismaki, em The Other Side of Hope, comédia triste sobre um refugiado sírio que tenta o asilo político nesta Finlândia onde há rock n’roll decadente e restaurantes parados no tempo. Uma pequena delícia que nos deixa também de coração apertado.
No teatro Friedrich Palast tenho a sorte de entrar na sessão a abarrotar de The Party, de Sally Potter, que saiu do festival de mãos a abanar mas que terá proporcionado as mais ruidosas gargalhadas. Uma história pós-feminista contada em tempo real e com um preto e branco desconcertante.
Logo a seguir, um dos melhores filmes do festival, Sage-Femme, de Martin Provost. Um melodrama com humor e com uma Catherine Deneuve excêntrica como nunca a vimos. Uma das suas maiores interpretações em muitos anos.
Quanto à invasão lusa, tempo para ver Colo, de Teresa Villaverde, mergulho numa crise familiar na Lisboa dos tempos da Troika. Villaverde já filmou com maior urgência e tenho amigos críticos brasileiros que perguntam pela cineasta de Os Mutantes e Cisne. Boa pergunta…
Dia 7
Manhã numa fila a tentar pedir bilhetes para os próximos dias. O sistema deste festival obriga os acreditados a uma organização e logística terrível. Por outro lado, é bonito perceber que a cidade inteira celebra a Berlinale com entusiasmo e sessões esgotadas. É o festival europeu com mais bilhetes vendidos…
Sem mais demoras, vou para o Café Nespresso onde me espera Catherine Frot, a atriz de Sage-Femme, uma senhora. Dessa conversa conta-me que ajudou mesmo a dar à luz os bebés que vemos no filme.
Sem tempo nem para uma salchicha corro para a zona de Alexanderplatz onde assisto no Kino International à estreia europeia de I’m Not Your Negro, de Raoul Peck, sobre James Baldwin. Um filme essencial sobre o racismo na América. Obviamente não tenho tempo para jantar a seguir (salvas-se um kebab…) para chegar a tempo para Mensahe, de Joshua Weinstein, outro dos filmes que chega de Sundance com alguma publicidade. Devo dizer que não amei, mas percebo algum fascínio sobre o mundo secreto dos judeus ortodoxos em Nova Iorque. Uma espécie de Kramer vs Kramer em yiddish.
Dia 8
A maratona está no fim mas há que ir bem de manhã aos escritórios da 20th Century Fox e mostrarmos que estamos bem vivos para as entrevistas do Logan – The Wolverine, de James Mangold. Os jornalistas fazem fila só para dizer que vão ver o filme aqui no festival e como prémio têm um gorro a dizer Logan.
Logo a seguir, sem tempo nem para um pretzel, corro desenfreado para uma sessão de uma das apostas da casa, o novo de Volker Schlondorff, que nos trouxe Return to Mountauk, com a minha Nina Hoss. O filme é um conto desencantado sobre vidas que não tivemos. Tem a frieza daquelas histórias de amor que dão para o torto.
No metro de regresso ao centro nevrálgico do festival, a Postdamer Platz, recebo uma SMS da produtora portuguesa de Joaquim, o filme de Marcelo Gomes, cuja gala é nessa noite, a pedir para eu ir à festa. O filme, diga-se de passagem, é mais uma encenação da crueldade dos portugueses durante a colonização do século XVII. O elenco tem dois atores bem conhecidos dos portugueses: Welter Bungé e Nuno Lopes, ambos com interpretações seguras, mas é um filme duríssimo que não faz a papinha ao espetador. Um objeto de som, estorvo e desejo que se aproveita e bem da fisicalidade dos atores.
No final, fui então à festa luso-brasileira e encontrei Kalaf, por estes dias a viver na capital alemã. Kalaf que tem um argumento escrito para cinema…
Dia 9
Acordar bem cedo para subir a escadaria do Palast e ficar mais de duas hora a ver realismo romeno. Com o frio lá fora é um programa perfeito. O filme em questão chama-se Ana, Mon Amour, e é o novo esforço de Calin Peter Netzer, que já venceu uma vez o Urso de Ouro com o potente Mãe e Filho. Desta vez, conta-nos a odisseia de uma relação conjugal ao longo de mais de uma década. Um filme que é também o espelho das convulsões sociais desta nova Roménia. Agradou-me bastante. Na sessão de imprensa houve quem ficasse corado com as sequências de sexo explícito.
Explícita é também a violência de Have a Nice Day, de Liu Jian, uma distopia chinesa em animação. Um filme de gangsters centrado num mala cheia de dinheiro. Tem tudo para ser um caso de culto.
Com meia-hora de atraso começou Logan – The Wolverine, tudo isto porque Hugh Jackman quis tirar todas as selfies e dar todos os autógrafos na red carpet. Mostrado fora da competição, o filme de Mangold serviu como sessão de encerramento de um festival que precisava de um toque de Hollywood. Curiosamente, é um blockbuster com um toque indie, um road-movie ultraviolento que encerra com estrondo os “stand-alone” da saga Wolverine. Juntamente com Guardiões da Galáxia, é bem capaz de ser o melhor filme de sempre com o logo Marvel.
Dia 10
E enquanto vejo os jornalistas a dizer adeus uns aos outros, tenho uma manhã na companhia de Hugh Jackman, o simpático australiano. O ator confessa-me que foi sua a ideia de propor à Fox trazer este Logan ao festival de Berlim.
Ao fim da tarde, o meu telemóvel está cheio de mensagens sobre os vencedores, neste caso sobre o vencedor da melhor curta. Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante, era possivelmente o pior dos 4 filmes portugueses que lutavam pelo Urso de Ouro. Um olhar experimental sobre como podemos filmar os nossos, neste caso a irmã e o sobrinho do cineasta. O portuense Costa Amarante, que filmou sem dinheiro do ICA, dizia-me na conferência de imprensa que é um cliché isso de se dizer “cineasta português”.
Antes tinha ficado feliz com a distinção a Gabriel Abrantes e ao seu Humores Artificiais, uma comédia romântica com um robot parecido com Wa.lle. Abrantes ganhou o direito a ser nomeado para melhor curta nos European Film Awards. É bom perceber que o humor único de Abrantes toca tanta gente.
Quanto aos vencedores, fico apenas com um nó na garganta por Una Mujer Fantastica, de Sebastian Lelio. Merecia mais do que o prémio de melhor argumento. Merecia o Urso de Ouro.
O meu prémio nessa noite foi poder finalmente jantar com tempo. Pensava eu, mal cheguei ao hotel adormeci. A sorte é que sonhei com a bizarria dos humores de Gabriel Abrantes, mesmo sotaque do país irmão…
Rui Pedro Tendinha