Daniel Catarino apresenta o novo disco, Songs From The Shed, na Alemanha. A Antena 3 apoia a digressão e vai acompanhar todos os momentos num diário exclusivo. Nas próximas duas semanas vai atuar em, pelo menos, seis datas, com abertura de espírito para conquistar terreno e alargar horizontes, os seus e os da música que cria. Acompanha esta aventura.
Dia 12 de Outubro de 2015
Após uma viagem tortuosa nos bancos de pau de uma famosa lowcost, a recepção em Berlim não poderia ter corrido melhor. Regada com cerveja e a alegria das saudades saciadas com velhos amigos, a cidade recebia-nos (a mim e Yoann Crochet, técnico de som) de braços abertos com zero graus, chuva miudinha e um sol brilhante. Que cidade incrível, com um bom ambiente que se estende pelas suas intermináveis rectas planas e preços de fazer inveja a qualquer cidade portuguesa.
Dia 13 de Outubro de 2015
O segundo e o terceiro dias foram ocupados em busca de uma guitarra para os concertos, que acabámos por encontrar quarta-feira na zona de Charlottenburg. A sua primeira viagem um longo percurso a pé e de Ubahn (metro), sempre entre os intervalos da chuva até à Hermannplatz (a antiga proprietária não tinha saco de transporte). Chegámos secos e seguros a casa dos nossos hóspedes Goinha (Marisa Dias) e Brito (Ricardo Fernandes), mas novas peripécias aguardavam após o jantar.
Dia 14 de Outubro de 2015
Decididos a experimentar comida sudanesa, degustei com prazer um prato vegetariano que me atormentou toda a noite e todo o dia de quinta-feira. Não há forma simpática de explicar os desarranjos gástricos que me vitimaram, deixo ao critério do vosso pensamento lógico.
Dia 15 de Outubro de 2015
Felizmente a recuperação foi rápida, e o dia de sexta-feira foi passado entre ensaios e um longo passeio pelo inevitável muro. Depois de uma boa dose de cervejas no Tristeza (nome perfeito para um bar escuro a rodar a discografia de Joy Division e The Smiths), seguiu-se um belo jantar vietnamita, e à meia noite celebrámos o aniversário da Goinha com cerveja e bolo de bolacha.
Dia 16 de Outubro de 2015
Hoje começam finalmente os concertos, e o K98 na Kienitzerstraβe aparenta ser o local perfeito para a estreia em território germânico.
Dia 17 de Outubro de 2015
O dia foi marcado pelo nervosismo típico de dia de concerto, ainda mais sendo a estreia fora do meu país e o início da digressão, mas nada que uma tarde de improviso com batidas, guitarras, teclados e pads não resolvessem. Como diz o meu colega de estrada Yoann Crochet, a música electrónica está para Berlim como o Fado está para Portugal, portanto em Roma, sê romano.
Após um jantar ligeiro caminhámos dez minutos até ao K98, uma antiga fábrica que alberga ateliers e um enorme espaço de habitação que, pelo menos uma vez por mês, se transforma em bar com música ao vivo e pista de dança pela madrugada fora. Goinha e Brito, nossos anfitriões, explicam-nos que os habitantes do espaço tratam de toda a logística, da decoração, da limpeza, da cobrança de bilhetes, do serviço de bar, tudo com grande espírito de comunidade e sacrifício.
Vista do exterior, parece apenas outra fábrica ao abandono, com paredes escuras, por vezes graffitadas, outras apenas riscadas. Ao passar o portão principal, deparamo-nos com uma mesquita no piso inferior. Explicam-nos os habitantes daquele espaço que, em dias de celebrações religiosas, são confrontados com seguranças imponentes à entrada, aos quais têm de mostrar identificação para poderem entrar na sua própria casa.
Já dentro do espaço, o universo é totalmente diferente, pautada por uma decoração com especial atenção ao detalhe. Somos recebidos com grande simpatia, e após ajudarmos a carregar algumas caixas de bebidas, o teste de som fica feito em cinco minutos e começam a surgir as primeiras pessoas.
Entro em palco à meia-noite com a casa cheia, e à primeira música larguei completamente o nervosismo. O concerto correu bastante bem, e deu até para ver alguns rostos alemães emocionados no tema que encerrará os espectáculos desta digressão – uma versão personalizada de “The Trial” dos Pink Floyd, com o mítico grito de guerra final “tear down the wall” (derrubem o muro).
Seguiram-se os Plan A, banda folk da Nova Zelândia, e era notório que muita gente aguardava já pela entrada dos DJs. A sala entretanto passara de cheia a abarrotar de gente, e foi neste ambiente de dança em modo lata de sardinhas que nos aguentámos alegremente até às 6 da manhã.
Dia 18 de Outubro de 2015
Depois de uma noite que se estendeu até ao nascer do dia, o domingo foi de descanso, mas a ressaca levou-nos à famosa hamburgueria Room 77, cujo dono é um antigo hacker que hoje em dia faz consultoria para instituições bancárias, e que é o primeiro espaço comercial da cidade a aceitar pagamento em bitcoins. À noite houve ainda tempo para ver “Straight Outta Compton”, o recente filme sobre os NWA.
Dia 19 de Outubro de 2015
Depois do descanso, a segunda-feira foi dia de palmilhar caminho em modo turista pela cidade. Foram mais de dez quilómetros a pé entre Neukölln e Alexanderplatz, com desvios e paragens obrigatórias no Checkpoint Charlie e no museu Topographie des Terrors, que conta a história do nazismo em grande detalhe e com imagens impressionantes, passando ainda pelo memorial a caminho das Portas de Bradenburgo, atravessando a ilha dos museus e atracando já de noite no metro em Alexanderplatz.
A chuva molha-parvos acompanhou-nos durante todo o dia, e como era a minha vez de cozinhar e o húmido desconforto já fazia mazela, regressámos à nossa residência berlinense em Hermannplatz. Preparei uma massa acompanhada por um salteado de frango com legumes que acabou por sair melhor que a encomenda.
À noite surgiram ainda contactos para possíveis concertos extra nas próximas duas semanas, irei trabalhar nesse sentido nos próximos dias. Afinal de contas, não estou aqui (só) para fazer turismo.
Dia 20 de Outubro de 2015
Um dia reservado sobretudo ao trabalho e ao planeamento dos próximos dias. Com a viagem a Leipzig a aproximar-se, há que afinar os motores e preparar toda a logística para que tudo corra bem. Foi também dia de começar a preparar algumas das datas para o regresso a Portugal, mas houve tempo para visitar Wowsville, um bar com loja de discos de vinil incluída. Após vasculhar por filas e filas de discos, sentámo-nos ao balcão a beber uma cerveja e a conversar com a simpática Valentina, a taberneira italiana que aparenta conhecer o nosso país melhor que nós.
Voltámos depois ao trabalho com uma visita ao Madame Claude, o fantástico local onde irei actuar na sexta-feira. Perdemo-nos várias vezes no caminho e ficámos atónitos com a quantidade de alemães simpáticos que se disponibilizavam para nos ajudar com instruções detalhadas e demoradas, mesmo com a chuva que continuava a engrossar.
Chegados finalmente ao local, acertámos os detalhes técnicos do concerto e degustámos o melhor kebab de todos os tempos. Terminámos o dia com uma cerveja no Tristeza, que se está a tornar rapidamente no nosso café de esquina de eleição.
Dia 21 de Outubro de 2015
Sopa vietnamita. Ora aí está um almoço para nunca mais esquecer. Sopa acompanhada de workshop sobre aplicações de telemóvel para boleias, que quinta-feira é dia de tocar em Leipzig, e os transportes de longa distância por aqui são bem caros.
Chega o fim da tarde, e é altura de carregar um enorme teclado de 116kg. Três rapazes e duas raparigas depois, o teclado fica no seu local de origem. Excede as medidas da carrinha disponível para o transporte, mas cabem lá três pessoas perfeitamente. A viagem para casa é feita em modo massagem de costas pelos paralelos da calçada berlinense, na parte de trás de uma velha carrinha Mercedes de Julie, a nossa nova amiga alemã. Nada mal para primeira viagem de carro em território germânico.
Depois de acertadas ida e volta para o próximo concerto, bacalhau com natas para todos, muita cerveja e boa conversa – em português, espanhol, inglês e alemão mal arranhado. Amanhã, concerto! Finalmente!
Dia 22 de Outubro de 2015
O dia começou com uma viagem de autocarro lowcost em que tive de regatear para levar a guitarra. Chegados a Leipzig, ficámos surpreendidos com a quantidade de gente jovem que por lá habita. Segundo os locais, a cidade está a viver uma explosão cultural nos últimos anos, e percebe-se facilmente o porquê – lojas de discos a cada esquina, escolas de música e de artes por todo o lado, e inúmeros posters de eventos obscuros.
Era um desses eventos que nos aguardava – um concerto no quarto de uma vocalista alemã de música tradicional. As expectativas eram baixas, mas rapidamente percebemos que aquilo era coisa séria. As habitantes da casa estavam associadas a movimentos feministas, e fazem questão que cada evento seja festa e manifesto.
Depois do rápido teste de som, as pessoas começaram a chegar. Primeiro cinco, depois dez, e quando demos por isso o espaço estava completamente lotado, com mais de cem convidados a tentarem passar entre a sala dos concertos e o bar improvisado à porta de um dos quartos.
Os espectáculos começaram com uma banda de improviso que tocou cerca de três horas, seguido de um grupo folk local, que interpretou alguns temas de Neil Young, entre outros. Aguardava-me uma missão difícil, fechar a noite com um concerto apenas de guitarra e voz, mas percebi que havia expectativa pela quantidade de pessoas que se sentou à frente do “palco” enquanto montávamos o nosso material.
O concerto correu bem melhor que o esperado, com gente a dançar e aplausos entusiasmados. “If I Let You Down” foi o tema que se destacou e que fez com que a venda de discos arrancasse.
Ao fim da noite ainda houve tempo para um pezinho de dança ao som do pior techno europeu que alguma vez ouvimos e servir de professores de português para muitos dos que passam férias regularmente no nosso país.
Dia 23 de Outubro de 2015
A noite foi longa, e a manhã custou a arrancar. Havia que apanhar novo autocarro de volta a Berlim, e pelo meio-dia fizemos-nos à estrada. Mal sabíamos nós que só chegaríamos a Berlim às oito da noite.
Primeiro, perdemos o autocarro da uma da tarde por um minuto. Ainda o conseguimos ver fugir à distância. Depois, perdemos o autocarro das duas e meia, já com bilhetes comprados e na estação à espera. No reboliço de transportes que chegam e partem, ninguém nos avisou que embora o bilhete fosse de uma companhia específica, os autocarros podiam ser de uma companhia qualquer. Acabámos por comprar novo bilhete para as quatro e meia, e o autocarro lá partiu com uma hora de atraso.
Depois de aterrarmos sabe-se lá onde em Berlim, enfiámo-nos no metro para nos tentarmos situar, e tivemos a sorte de entrar na linha correcta. Chegámos ao Madame Claude à hora que o teste de som devia terminar, e o pessoal da casa fez questão de nos fazer notar isso, mas acalmaram quando perceberam a eficiência com que nos despachámos.
O Madame Claude tem uma decoração incrível, em que tudo está ao contrário. Há mesas e cadeiras coladas no tecto, devidamente decoradas, assim como bicicletas, garrafas, vasos, até o preçário e as mensagens espalhadas pelo bar estão de pernas para o ar.
Depois da actuação de Adrian Hermes, com um som a fazer lembrar os escandinavos Logh, entrei em palco novamente com casa cheia. Aos primeiros temas, percebi que aquele era o ambiente ideal para mim – sala escura, isolada do resto do bar, com pessoas sentadas e em pé, em silêncio.
Planeava terminar a noite com a versão de “The Trial”, dos Pink Floyd, mas os pedidos de encore fizeram-me voltar para mais três temas, um dos quais em português a pedido do público. Depois do concerto percebi que metade da plateia eram portugueses que, sabendo da minha actuação, tinham ido ao espaço de propósito. Deu para rever velhos amigos e conhecer muitos outros, que fizeram da noite um evento nacional em território estrangeiro.
Dia 24 de Outubro de 2015
Depois de dois dias de caos, nada melhor que uma tardada nos belos jardins de Templehof, repletos de gente e com um parque enorme onde os cães podem correr à vontade. O dia prosseguiu a pé em direcção à Weserstrasse, local da actuação da noite, desta vez bem perto da nossa residência temporária em Berlim.
A trilogia de concertos desta semana não poderia terminar de melhor forma. Gelegenheiten é um sítio bastante alternativo, nas antigas instalações de um talho, e que só abre aos fins-de-semana para eventos específicos. Os simpáticos proprietários do espaço receberam-nos com bom espírito e cerveja, e voltaram a marcar presença vários portugueses no público.
Apesar de o início de concerto ter sido morno, com pouca gente no público, à medida que as canções apareciam, o público ia aumentando, principalmente o feminino. Aliás, esta tour está a ser marcada pela acentuada presença de mulheres, que acompanharam o tema “Walking Around With You In My Head” com um “la la la” fervoroso. A pedido dos portugueses, voltei a terminar o concerto com um tema no nosso idioma, desta vez “Adultério na Igreja”.
Depois de um kebab, houve ainda tempo para visitar o Das Gift, bar dos Mogwai, onde provámos cerveja caseira e tivemos direito a uma Mexicana, shot de vodka com sumo de tomate e picante, tudo por sermos de Évora.
Dia 25 de Outubro de 2015
Um dia passado no esplendor do ócio, com comida de fazer no forno, cerveja, mau cinema e jam session infernal em que gravei guitarras para músicas em que os nossos hóspedes estão a trabalhar. O descanso também sabe bem.
Dia 26 de Outubro de 2015
Dia de passeio pela Alexanderplatz, cheia de centros comerciais e prédios gigantes, com muita a gente a correr não se sabe bem para onde. É uma zona da cidade igual a todas as outras capitais da Europa. Encontrámo-nos por lá com os amigos Janita e Ana Mateus, com quem viajámos depois até Warschauer, com paragem para cerveja no Skate Park.
Se Alexanderplatz é a zona menos interessante de Berlim, nesta zona respira-se cultura alternativa, com barracões, contentores e casas abandonadas a servirem de albergue a punks e vários clubes. Apesar da sujidade aparente da zona, ao entrarmos deparamo-nos com placas a indicar bibliotecas, salas de espectáculos, residências artísticas, jardins para crianças e percursos de escalada.
A magia de Berlim está no aproveitamento incrível de espaços abandonados, e o que no nosso país seriam bairros da lata estão transformados em centros culturais. Mais uma lição com que regressaremos a Portugal.
Dia 27 de Outubro de 2015
Dia de visita ao mercado de Neukölln, onde pudemos disfrutar de uma série de músicos de rua incríveis, sempre acariciados pelos transeuntes com moedas, notas, e mais importante, um carinhoso “obrigado pela música”. A reacção é a mesma que tenho sentido nos meus concertos – o músico está a ceder um bem precioso a quem o vê e ouve, e que há que recompensá-lo de alguma forma, nem que seja com umas palavras de apoio e agradecimento.
Visto agora do lado do público, esse sentimento mantém-se. É bom sentir que a música é mais que um ficheiro ou algo que é servido como se fosse um salgadinho para acompanhar cerveja.
Foi de alma cheia que provei dos melhores sushis da minha vida, seguido de incrível doçaria árabe, por sugestão dos comparsas Goinha e Yoann. Pelo andar da carruagem e por mais quilometragem que acumule nos pés, vou acabar por ganhar peso durante esta viagem.
Dia 28 de Outubro de 2015
Um dia de aventura pela ilha dos museus, onde se podem ver alguns dos poucos edifícios que não ficaram destruídos na guerra. Esta é a zona mais imponente da cidade, com traços que fazem lembrar outras capitais europeias, sobretudo Paris.
O memorial dos judeus junto às Portas de Bradenburgo é um local demasiado divertido para aquilo que representa. É um conjunto de blocos de cimento com alturas e relevos diferentes, onde as crianças brincam às escondidas e à apanhada. Impressiona o facto de toda a cidade estar graffitada e aqui não se vê nem um risco. O segurança não dá à conta às crianças, que saltitam de bloco em bloco.
Depois de algumas cervejas a caminho de casa, pegámos na guitarra e fomos até Kottbüsser Damm, onde dei um concerto espontâneo junto a um dos imensos canais da cidade. As crianças foram o meu melhor público, e os pais acabam por ficar a assistir, assim como alguns transeuntes curiosos. As inúmeras bicicletas abrandam ou param para ver o que se passa, e no final vendemos alguns discos e conversamos com os mais interessados. Não estávamos à espera de tanto.
O frio e o por do sol às cinco da tarde obrigou-nos a recolher cedo, mas amanhã há mais.
Dia 29 de Outubro de 2015
Saímos já de guitarra às costas, e como ontem tinha tocado num só local, hoje foi dia de ataques ninja pelas ruas e ruelas berlinenses. Ataque ninja é o nome que os meus companheiros do Bicho do Mato dão a concertos espontâneos quando e onde menos se espera, normalmente com instrumentos pequenos e de fácil transporte.
Música aqui, música ali, os sorrisos propagam-se e os telemóveis começam a filmar e a fotografar instantaneamente. Há quem pergunte quem é o intérprete original de um ou outro tema, dizem que já tinham ouvido. Quando respondo que são meus, pensam que sou famoso e pedem discos e autógrafos. Uma reacção inesperada a que correspondo simpaticamente, dizendo que provavelmente são os temas que ficam no ouvido e dão a sensação de familiaridade.
Quando o sol se põe, dirigimo-nos ao Tiki Heart, um bar entre o Tiki e o Rockabilly onde os hambúrgueres têm nomes sugestivos: Johnny Rotten, Elvis, Big Mama Thornton entre muitos outros. Escolhi obviamente um Lemmy (o único sem queijo), e depois de demasiadas cervejas fomos jogar matraquilhos a outro bar, que apresenta um aquário sugestivo com um esqueleto inteiro lá dentro.
Depois da irritação inicial pelo facto dos bonecos terem as pernas juntas e a bola parecer feita de borracha, conseguimos ganhar vários jogos aos locais, e dirigimo-nos finalmente para casa em semi-zigzag.
Dia 30 de Outubro de 2015
O dia começa de guitarra às costas para concretizar um sonho – tocar no muro de Berlim!
Saímos na estação de Warschauer e começo por tocar quatro temas na sua movimentada ponte. Os transeuntes vão atirando moedas para o saco da guitarra, tiram fotografias fazendo pose ao meu lado, e alguns acabam mesmo por comprar o disco.
Quando o frio do rio começa a petrificar-me as mãos, é altura de seguir caminho. Nova paragem bem perto, no lado americano do famigerado muro. Mais quatro temas para aquecer, e novo ataque de objectivas. Há quem se sente ao pé de mim, há quem olhe com curiosidade, talvez tentando perceber se está a acontecer um evento ou se é apenas outro músico de rua.
O tempo passa rápido, e desde a mudança da hora que o dia começa a cair pelas 16:30, é então altura de nos dirigirmos para a secção do muro que estava no plano inicial – o graffitti do julgamento final do filme “The Wall”, dos Pink Floyd. É junto a esta imagem simbólica que interpreto a minha versão de “The Trial”, que simboliza a queda do muro, tão bem representada no mítico concerto de Roger Waters e convidados em 1990.
Aproveitámos para recolher imensas imagens para um possível videoclip, conversámos com imensa gente, e o dia terminou com um enorme sorriso nas nossas caras.
Dia 31 de Outubro de 2015
Noite de Halloween e dia do último concerto. Depois de um passeio à tarde, é altura de procurar o local do concerto. Le Velours Noir, situado na Altenbraker Strasse, é gerido por um francês e um basco, que nos contam que têm tido imensos problemas com vizinhos devido ao barulho, apesar de respeitarem todas as regras quanto aos níveis de decibéis e horários. Partilhamos com eles que todos os músicos que conhecemos na nossa cidade já foram notificados pela polícia pelo menos uma vez, que também em Portugal a música é muitas vezes descrita como “barulho”. Explico-lhe que a última vez que tal aconteceu, estávamos a ensaiar apenas com instrumentos acústicos, sem bateria, e eram cinco da tarde. Uma vizinha decidiu chamar a polícia, e acabámos por ter de mudar de casa por ser impossível fazermos o nosso trabalho com as constantes visitas das autoridades. Ironia das ironias, muitas vezes não conseguimos ensaiar porque essa mesma vizinha via a novela com a televisão a um nível de volume tal que não nos conseguíamos concentrar, mas televisão não é barulho, música sim.
A casa compôs-se a tempo do início do espectáculo, e aproveitei a oportunidade para interpretar muitos temas que tinham ficado de fora dos restantes concertos, incluindo uma nova canção que nunca tinha tocado ao vivo. A meio de “Reach For Something” bati um record que remontava aos meus dezoito anos – partir cordas em quatro concertos consecutivos.
No final do concerto, os donos do bar ofereceram-me uma garrafa em forma de caveira com uma bebida que eles próprios fazem. Distribuí copos por todo o bar e partilhei o generoso presente com os presentes.
Depois de bem regados, seguimos em magote para o Soul Cat, um bar que só passa música dos anos 60 em vinil e onde dançámos entre os mascarados madrugada fora. Afinal de contas, este Halloween acabou por marcar o final desta digressão, eram motivos mais que suficientes para uma celebração com alguns excessos.
Epílogo
A aventura chega ao fim com o sabor agridoce de todas as histórias que têm início e final marcados. Há meses que o avião de 3 de Novembro pelas 13:20 nos aguarda, e embora uma parte de mim queira voltar, outra diz-me que Berlim deixou uma marca difícil de apagar, daquelas que se enraízam no coração, como uma paixão mal resolvida que se finge ultrapassar para encarar um futuro que deve pressupor que essa chama não se voltará a acender.
A sensação de estar a ver pela primeira vez os desconhecidos que passam na rua transformou-se numa espécie de despedida silenciosa, em que os olhos dos estranhos que serviam de janelas para o futuro são agora visores para o passado. É a maldita saudade que por vezes hipoteca o presente em prol do futuro – afinal de contas, não deixarei nunca de ser Português.
Felizmente, nos meandros destas dúvidas nasce a inspiração, e para quem tem a vida da estrada nas veias, a procura de lar é uma melodia que se assobia e que vira canção, um blues que desliza em slide pelas cordas, como as rodas deste avião deslizam pela pista em direcção a outro horizonte. Berlim torna-se pequena vista de cima, e ao aterrar, Lisboa parece enorme. Pouco depois em Évora, o mundo revela-se novamente um lugar confortável, e as memórias servem de combustível para os próximos tempos, até porque não vai haver tempo para descansar – depois de amanhã há concerto!
Os agradecimentos são obrigatórios e sentidos: ao Yoann Crochet que foi roadie, técnico de som e companheiro de estrada nesta aventura, à Antena 3 que viajou connosco e deu voz aos nossos passos, a todo o público que nos ajudou com palavras de apoio, doações no chapéu, comida, bebida, comprando discos e dando-nos contactos para um regresso com agenda ainda mais preenchida, ao espaços que tão bem nos receberam sem excepção, às famílias e amigos que nos incentivaram para fazermos a viagem, e finalmente, um agradecimento especial aos nossos anfitriões e amigos do coração, Goinha e Brito, que juntamente com as gatas Mishka e Zaza nos fizeram sentir tão em casa que já não nos queríamos vir embora.
Agora é altura de conquistar Portugal. Ouçam na Antena 3 e vemo-nos na estrada!