Tal como um primeiro beijo não passará indelével às marcas da memória, nunca uma primeira canção deverá deixar-nos desarmados ao nível de abrirmos os cordões à bolsa da adjetivação do encantamento. Os Liss acabaram com as duas certezas: “Miles Apart” alicia-nos a tirar o pé do travão de quase todos esses fundamentalismos.
O frigorífico de Copenhaga é ponto de partida para seguirmos as coordenadas de quatro rapazes que encontram no punk um reflexo da sua geração, das suas aspirações e dos seus medos. Até aqui, seja dito ao fascínio, nada de novo.
Dar de beber ao atrevimento, é aí que sossegam os primeiros anos de escutas mais ou menos críticas, partindo para algo mais substancial, e é aí que nasce a devoção pop em que remetem os seus últimos dois anos enquanto criadores.
Søren Holm, voz do quarteto dinamarquês, salta-nos à vista logo na primeira escuta, e aí estava “Try” para contar os primeiros apontamentos da crítica nacional. Experimentações brilhantes com refrães cintilantes, algum deslumbramento, até pela incisão dos efeitos nessa mesma carga vocal.
A navegação mais ou menos acidental, com a sorte de esse primeiro EP ser vislumbrado mais de cinco milhares de vezes na plataforma SoundCloud, acentuou o músculo de sintetizadores, o rapto aqui e acolá de outras fragrâncias pop partilhadas nesses hemisférios nórdicos, Peter Björn and John à cabeça. Voltando às canções, são dadas às letras, talvez, um segredo do não-segredo que transporta os quatro rapazes para a eficácia. “I am / Always / With you / Be mine / Until we fall” são os versos roubados a uma carta de dois apaixonados sub-15.
Se aos dados estatísticos de a Dinamarca ser um dos países mais justos e felizes do mundo acrescentarmos a melomania absolutamente descarada de ali morarem alguns dos casos mais frescos da pop produzida e pensada no continente europeu, também aos rapazes Liss façamos justiça: 2016 deve-lhes essa referência.
À formação original, junta-se, para este EP, uma peça brilhante e decisiva na marcação de território no género, Rodaidh McDonald, produtor escocês ligado a uma amplitude tão vasta e ramificada quanto o resultado do seu próprio género. King Krule, Savages, Vampire Weekend e, mais recentemente, The xx passaram pelo seu estúdio e de lá saíram com histórias para contar sobre este tempo.
First junta mais quatro canções às primeiras linhas que se escrevem sobre a banda neste ano. E é aqui que procedemos ao reset. Melodramatismo revolto em pop mid-tempo que não quer ir além da paixão e de relatos de experiências. Acentuam-se as aproximações a Frank Ocean e The Weeknd nos debruces vocais de Søren; até ao exagero chegaremos se necessário for para, a uma primeira escuta, dizermos que, aqui, Prince reencarna desconvocando o funk orgânico do seu ADN e, agora sim, para terrenos principescamente eletrónicos.
É eletrónica cantada com volúpia, e “Miles Apart” está aí para comprová-lo.
Quanto aos Liss, não há previsão para disco, nem sequer pelo mundo da internet encontramos versículos que apontem grandes dados biográficos ou anseios do quarteto. A crítica dinamarquesa assinala-os como um dos casos mais interessantes da nova música do país. Mas não os circunscrevamos à inocente ideia geográfica de música simpática, clara e acessível em matéria pop. É mais do que isso: é uma lufada inteiríssima de boas coordenadas para daqui não descolarmos a nossa atenção nos próximos meses. Ei-lo, o nosso primeiro beijo.
Tiago Ribeiro