Quando se fala em pioneiros da música eletrónica, costumam surgir nomes como Pierre Henry, Edgar Varèse, Karlheinz Stockhausen, John Cage… Até há bem pouco tempo, nunca se falava de mulheres. Mas sempre estiveram lá. Os preconceitos e o contexto histórico-social explicam parte do fenómeno. Na época em que começaram as experiências com música eletrónica, o que podemos traçar, de forma genérica, entre os anos 20 e 70 do século passado, (embora as primeiras experiências com instrumentos eletrónicos sejam do século XIX) não se esperava que as mulheres se interessassem por coisas dessas (muitos diriam que os únicos botões a rodar pelas mãos femininas seriam os dos vestidos, casacos, ou camisas do marido). As poucas que se dedicavam a experimentar com fita gravada e instrumentos eletrónicos eram exceções e o seu contributo quase nunca devidamente reconhecido. Talvez por isso os seus nomes fossem ficando em letras cada vez mais pequenas ou, nalguns casos, desaparecessem quase por completo.
Com a viragem para o século XXI, porque a musica eletrónica se tornou transversal e o interesse pela sua história aumentou, tal como os livros de investigação, as protagonistas femininas começaram finalmente a revelar-se.
As 12 mulheres que escolhemos não esgotam todo o contributo feminino na criação e desenvolvimento da música eletrónica, mas ajudam a perceber o toque feminino (ou girl power) que sempre existiu no género. Uma destas mulheres nasceu homem, outra foi inventada por um produtor de música de dança, todas usaram máquinas para fazer música do outro mundo.
Porque é uma das primeiras mulheres a dedicar-se à música eletrónica, o que se sabe dela é também pouco. Johanna Magdalena Beyer nasceu em Leipzig, na Alemanha, em 1888, estudou no Conservatório e após concluir a licenciatura, mudou-se para os Estados Unidos, em 1924.
Na América, estudou e ensinou piano, cruzou-se e trabalhou com John Cage e outros modernistas da época, foi aluna, agente e secretária do compositor, teórico e professor Henry Cowell. Não era levada muito a sério como compositora e costumava assinar as suas peças como J.M. Beyer, provavelmente para evitar preconceitos de género, por isso, as obras que se conhecem dela são poucas.
Em 1938 assinou aquela que é considerada a primeira peça de música eletrónica escrita por uma mulher “Music Of The Spheres”.
Os últimos anos da sua vida foram marcados pela doença: Johanna tinha ELA (esclerose lateral amiotrófica), faleceu em 1944, em Nova Iorque.
A mais notável instrumentista de theremin, de sempre. Clara Rockmore nasceu na Lituânia, em 1911, entrou para o conservatório de S. Petesburgo, aos 5 anos, para estudar violino mas foi o theremin que acabou por ditar a sua fama. Clara é considerada a grande virtuosa do theremin e uma referência da música eletrónica, embora fosse mais executante do que compositora.
O theremin, inventado pelo russo Leon Theremin no início dos anos 20, é um dos primeiros e mais estranhos instrumentos eletrónicos, sendo controlado sem qualquer contacto físico do executante (depende da proximidade e do movimento e de como estes interferem com o campo magnético das antenas do instrumento) o que, associado ao tipo de sons que produz (foi muito usado para bandas sonoras de filmes de ficção cientifica e terror), lhe dá uma aura quase sobrenatural.
O facto de Clara Rockmore ter treino clássico e audição muito apurada (o chamado perfect pitch) fez com que fosse, não apenas exímia instrumentista, mas também determinante na criação da técnica de tocar e no desenho final do theremin.
Lançou apenas um disco, The Art Of The Theremin, apadrinhado por Bob Moog. Faleceu aos 87 anos, em 1998, em Nova Iorque.
Em 1956, Bebe Barron e o marido, Louis Barron, compuseram a música para Forbiden Planet, um filme clássico de ficção científica. É considerada a primeira banda sonora completamente eletrónica e, ainda hoje, fascina pelo seu carácter verdadeiramente alienígena.
Bebe, nascida em 1920, tinha estudado piano e ciência politica e começou a dedicar-se à música electrónica quando conheceu Louis Barron. Uma das prendas de casamento terá sido um dos primeiros gravadores de fita magnética, o que lançou o casal numa aventura de experimentação pioneira ao nível do som e determinante para os seus trabalhos futuros.
Juntos fundaram um estúdio, em 1949, através do qual gravaram e lançaram discos de spoken word de escritores como Anais Nin, Tenessee Williams e Aldous Huxley. Trabalharam também com pioneiros da teoria cibernética como Norbert Weiner, o que os levou a colaborar com John Cage, tudo antes de chegarem ao cinema, em 1955, com a banda sonora de Forbidden Planet. Apesar de hoje ser considerada uma banda sonora clássica e um trabalho pioneiro da eletrónica, a comunidade de cinéfilos e compositores de Hollywood teve dificuldade em considerar o trabalho do casal Barron como “música”, o que impediu uma nomeação para os Óscares.
A última composição de Bebe Barron, Mixed Emotions, foi feita em 2000, já depois da morte de Louis Barron, de quem se divorciara em 1970. Faleceu em 2008.
Falecida recentemente (19.01.2016), Else Marie Pad é uma das mulheres mais enigmáticas deste lote, talvez por ser dinamarquesa.
Nasceu em 1924, em Aarhus, estudou piano mas foi na música concreta e eletrónica que encontrou a sua expressão. Antes disso, na infância, tinha descoberto o “som”, quando ficava longos períodos em casa por estar doente e se entretinha a escutar o mundo à sua volta. Terá feito o mesmo quando esteve na prisão, durante a II Guerra Mundial, por pertencer à Resistência.
Estas experiências deram a Else Marie um mundo interior muito rico, que tentava recriar nas suas obras. Trabalhou com Pierre Schaeffer, Stockhausen e Pierre Boulez, compôs música para radio e televisão, fez composições sonoras sobre o dia-a-dia na vida em Copenhaga. A sua obra Syv Cyrcler (Seven Circles), escrita em 1958, é a primeira composição dinamarquesa de música eletrónica.
Apesar de tudo disso, Else Marie foi ignorada durante muitos anos e, só muito recentemente, o seu trabalho começou a sair da obscuridade.
Nascida em 1925, Daphne estudou musica e eletrónica e foi trabalhar para a BBC aos 18 anos, em 1943, durante a II Guerra Mundial, quando a maior parte dos seus colegas homens foi recrutada para combater. Ironicamente, foi a guerra que lhe permitiu ser engenheira de som, captando som em concertos ao vivo, que às vezes também eram gravados em fita.
Isto aguçou a sua curiosidade pelo que podia ser feito com gravadores e rapidamente começou a passar as horas livres a cortar e colar fita magnética, repetindo loops e tocando as fitas a diferentes velocidades. Apesar de ninguém estar muito interessado nas suas “brincadeiras”, em 1958, Daphne Oram e Desmond Brice, outro engenheiro de som, conseguiram uma sala para desenvolver os seus trabalhos exploratórios sem olhares inquiridores. Chamaram-lhe BBC Radiophonic Workshop.
Daphne acabou por abandonar o projeto um ano depois da sua fundação, por divergências com a direção da BBC, dedicando-se ao seu próprio projecto: Oramics, uma máquina gigantesca que é também uma das primeiras tentativas de fazer musica de forma totalmente sintética, com a particularidade de o som ser gerado através do desenho em película de 35 mm.
Diz o mito que Daphne terá sido visitada pelos Beatles e Rolling Stones em busca de aconselhamento mas, a verdade é que, até recentemente, o seu nome era praticamente desconhecido. Faleceu em 2003 e só depois disso começámos de facto a conhecer a sua importância.
Nasceu em 1932, em Houston, Texas e, segundo a própria, terá ficado fascinada pelos efeitos sonoros do teatro radiofónico que ouviu durante a infância e também pelo ruído da estática que saia do radio quando se procuravam as estações.
O acordeão foi o seu instrumento de eleição, desde os nove anos, mas usou-o quase sempre de forma pouco convencional. Em 1962, Pauline Oliveros foi uma das fundadoras do San Francisco Tape Music Center, onde trabalhou com compositores de vanguarda como Martin Subotnick, Terry Riley, Steve Reich ou John Cage.
A partir dos anos 80, desenvolveu uma teoria musical próxima da espiritualidade (a ideia de ouvir/escutar como ritual, cura e meditação) a que chamou Deep Listening e que deu origem a um Instituto (que ainda existe) e a um disco, gravado em 1989 numa cisterna abandonada, a 4 metros de profundidade.
Continua viva e ativa, é militante dos direitos humanos e da causa feminista e, aos 83 anos, continua a compor, tocar, ensinar e dar conferências. Em 2012 compôs “Occupy Air”, uma peça para o movimento Occupy Wall Street.
Éliane Radigue nasceu em Paris, em 1932, estudou e colaborou com Pierre Schaeffer e Pierre Henry, os dois compositores fulcrais da música concreta, na França dos anos 50. Nessa época e durante os anos 60, trabalhou sobretudo com feedback e gravadores.
Nos anos 70 começou a compor peças para sintetizador e a interessar-se cada vez mais por música eletrónica, ao mesmo tempo que descobria o budismo e começava a fazer meditação. Uma das suas obras mais conhecidas, Songs of Milarepa (1983), é dedicada a Jetsun Milapera, iogui e poeta do século XI, também conhecido como o primeiro “santo budista” do Tibete.
Já no século XXI, começou a compor para instrumentos acústicos e parece ter-se desligado da música eletrónica, mas a sua obra com sintetizadores continua a ser desafiadora e fundamental.
O caso de Delia Derbyshire mostra bem como as mulheres raramente recebiam crédito pelo que faziam. No início dos anos 70, o mundo inteiro, mas sobretudo Inglaterra, conhecia a música com efeitos especiais de Delia, mas ninguém sabia o seu nome.
Isso é particularmente evidente no caso do genérico de Doctor Who, uma das séries de ficção cientifica mais famosas de sempre. A melodia foi composta por Rob Grainer, mas foi Delia quem criou os efeitos e deu a personalidade fantasmagórica e futurista ao tema. No entanto, apesar dos esforços de Grainer para que Delia fosse reconhecida como co-autora, a política do BBC Radiophonic Workshop (o laboratório audio da BBC), a que Delia pertencia, não permitia.
Delia, nascida em 1937, era licenciada em Matemática, por Cambridge, e entrou para o BBC Radiophonic Workshop nos anos 60. Aí desenvolvendo um trabalho extraordinário ao nível da criação de música por processos puramente eletrónicos. Isto, na época pré digital, quando todo o corte e colagem era feito em fita! De resto é-lhe atribuído o loop de fita mais longo de sempre, que se estendia por vários metros dentro da sala e pelo corredor da BBC.
Delia fez também parte do Unit Delta Plus, uma organização que fundou com Brian Hodgson (do BBC RW) e Peter Zinovieff (pioneiro no uso de computadores e criador do sintetizador analógico VCS3) para criar musica eletrónica e promover o seu uso em filmes e televisão, bem como organizar festivais de dedicados ao género, em Inglaterra.
Com o americano David Vorhaus/White Noise, Delia (tal como Brian Hodgson) assinou o álbum Electric Storm (1969), um disco pioneiro no uso de sintetizadores e loops, referido como influência por muitos produtores de techno e noise.
Em meados dos anos 70, retirou-se da música eletronica, universo a que voltaria apenas nos anos 90, motivada pelo contexto musical da altura. Trabalhou, por exemplo, com Sonic Boom. Faleceu em 2001 e deixou um espólio de quase 267 cassetes com material inédito que está sob a alçada da Universidade de Manchester.
Wendy nasceu Walter Carlos, em 1939, em Pawtucket, Estados Unidos. Antes de mudar de sexo, em 1972, Walter era já um nome importante na musica eletrónica, podemos até dizer, na música pop, uma vez que o seu Switched on Bach, adaptação para Moog da musica de Bach, tinham chegado a disco de platina em 1968, algo inédito, na época, para um disco de música clássica.
Em 1971, Walter tinha assinado também a banda sonora de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, uma das suas obras mais conhecidas. Atualmente esses e outros trabalhos são creditados a Wendy e toda a sua biografia é conjugada no feminino.
Wendy começou a aprender piano aos 6 anos, mais tarde estudou Musica e Física na Universidade e, rapidamente, começou a trabalhar com musica eletrónica.
Era próxima de Robert Moog e o seu contributo terá sido determinante para a versão final do carismático sintetizador Moog. Wendy deu-lhe um uso tão sofisticado que grande parte da aura do instrumento deve-se ao que Wendy fez com ele (e, reza a lenda, mais ninguém nunca conseguiu repetir).
Entre os seus trabalhos mais conhecidos, estão ainda as bandas sonoras de The Shinning (1980) e Tron (1982). De resto, quando trabalharam em Tron: Legacy, os Daft Punk confessaram a sua admiração pelo trabalho de Wendy Carlos na música da versão original do filme.
Wendy tem 75 anos, vive em Nova Iorque e, além de continuar a dedicar-se à música eletrónica e outras formas de arte, “caça eclipses”, desde os anos 60, e tem inúmeras fotos no seu site.
Na verdade, Ursula Bogner não existe. Tem biografia, discos e até fotos mas é uma criação do produtor alemão de techno Jan Jelinek, movido pelo fascínio pelas pioneiras da eletrónica que começaram a ser mais conhecidas com a viragem do século.
Em 2008, a Faitiche, editora de Jelinek, lançou a coletânea Recordings 1969-1988, apresentando ao mundo esta farmacêutica nascida em 1946 e falecida em 1994 que, nas horas vagas, se dedicava à musica eletrónica, assistindo a palestras de compositores de música concreta, experimentando gravações no seu estúdio doméstico e deixando um imenso legado de fitas gravadas ao filho com quem Jan Jelinek se cruzaria numa viagem de avião.
Nessa viagem, a conversa de circunstância acabaria por revelar a Jelinek a existência de Ursula Bogner e conduzir à edição da sua música. A história, apesar de exótica, até faz sentido para o que era conhecido sobre as pioneiras da eletrónica mas, na realidade, é uma ficção de Jelinek que produziu ele próprio toda a música.
Ursula Bogner não existiu, mas podia ter existido.
Se existir vida extra terrestre, a música de Laurie Spiegel pode vir a ser o primeiro contacto da humanidade com ela. A bordo das sondas Voyager, lançadas para o espaço nos anos 70 e, atualmente, já fora do nosso sistema solar, seguiu o famoso Golden Record, um disco com 90 minutos de música e saudações em diferentes línguas, compilado por Carl Sagan. Nesse disco está uma adaptação para computador feita por Spiegel, a partir de notas de composição deixadas pelo astrónomo Johannes Kepler, no século XVII. Por ser uma peça puramente matemática, acredita-se que seja o conteúdo de mais fácil apreensão para alienígenas. Pode ser um feito extraordinário, mas Laurie Spiegel não é conhecida apenas por isso.
Nascida em 1945, em Chicago, EUA, Laurie Spiegel começou por tocar guitarra folk mas apaixonou-se por música eletrónica e computadores e tudo mudou. Formou-se na Universidade de Oxford, estudou composição musical e, nos anos 70, trabalhou para a Bell, o gigante das telecomunicações na América, desenvolvendo software de som e imagem.
Em meados dos anos 70 compôs The Expanding Universe usando o GROOVE, um sistema que permitia ligar computadores e sintetizadores modulares. Paralelamente, também desenvolveu uma sistema idêntico (VAMPIRE) que permite criar imagens em computador a partir de música.
O seu contributo para a música eletronica é hoje plenamente reconhecido e o seu nome venerado. Uma peça sua de 1972, Sediment, é usada no primeiro filme da saga The Hunger Games. Laurie Spiegel continua ativa.
Suzanne Cianni é uma americana, de ascendência italiana, nascida em 1946. Começou por estudar piano, depois composição eletrónica.
Conheceu Don Buchla, inventor do sintetizador modular Buchla, e em 1974 criou a sua própria empresa de música para televisão, jogos arcade e publicidade (o emblemático som da garrafa de Coca-Cola a abrir nos anúncios dos anos 70 e 80 é dela), usando sempre o gigantesco Buchla (embora também trabalhasse com sintetizadores Moog).
Suzanne criou ainda música para filmes e assinou os efeitos especiais para a versão disco da banda sonora de Star Wars, em 1977. Nos anos 80, converteu-se à new age e lançou o primeiro álbum, Seven Waves, em 1982.
Continua a fazer música. Atualmente está em produção um documentário chamado A Life in Waves, financiado por uma campanha no Kickstarter e produzido por Money Mark (organista dos Beasties Boys).