Um festival que mostrou uma nova via do cinema do real. Um olhar atento às expressões mais artísticas, políticas e ousadas do novo cinema documental. Nesta sua terceira edição, o Festival criado por Dario Oliveira ganhou uma maturidade notória. O público cresceu e a baixa do Porto parece ter ganho uma nova leva de público. O Porto está finalmente mais cinéfilo e foi revelador perceber que grande parte do público era composto por estudantes. O Porto/Post/Doc, pelo seu desalinhamento, é um festival eminentemente jovem.
Rui Pedro Tendinha apresenta os destaques do Porto/Post/Doc 2016.
Bowie – L’Homme Cent Visages ou Le Fântome de Hérouville, de Chataigner Gaetan e Christophe Conte
Um documentário mostrado em modo de sessão de cerimónia de prémios e com direito a dedicatória a Álvaro Costa. Trata-se de um olhar essencialmente jornalístico sobre a evolução da carreira de David Bowie, centrando-se sobretudo na sua estadia no Castelo Hérouville, um dos estúdios de música com mais carisma na cena do rock nos anos 1970.
A dupla de realizadores explora a obsessão do músico pela necessidade de operar mudanças estéticas e está repleto de entrevistas com músicos, críticos musicais e membros do estúdio em questão. Um filme que já tinha vindo do DocLisboa com algum hype mas que não ultrapassa a bitola do objeto televisivo. As encenações de alguns músicos franceses a tocar covers do Camaleão nos jardins e salas de Hérouville ronda o mau gosto tonto, mas não é de menosprezar o registo de hommage. É para ficarmos ainda mais próximos do mito…
Ama-San, de Cláudia Varejão
Para muitos é um nome que é associado à ficção. Cláudia Varejão é uma das cineastas que prometeu mundos e fundos nas curtas-metragens. Varejão aqui filma um grupo de mulheres japonesas que mergulha para pescar debaixo das rochas. Um manifesto que é em si mesmo uma declaração de intenções numa exploração humana com toda a justeza do mundo. A câmara de Cláudia plana por entre a doçura humana destas mães e avós que na comunidade de Shima continuam a seguir uma tradição milenar – sereias plácidas que pescam num mundo aquático que não liga a idades e onde parece haver uma paz de deus. As Ama-San não são deste tempo, são mulheres intemporais e a cineasta portuguesa encontrou o seu desígnio através de imagens que harmonizam uma ordem interior a caminho da transcendência.
O que fica próximo do espetador é a generosidade humana destes seres. Mulheres filmadas com uma empatia humanista. Venceu o prémio do júri Teen.
The Host, de Miranda Pennell
Um dos mais radicais exemplos de um objeto documental bem próximo da experiência sensorial, aliás o tema de discussão do fórum do festival. A cineasta britânica enceta uma investigação pessoal sobre a questão da colonização britânica no Irão através do negócio do petróleo. Uma investigação que terá componentes íntimas; Miranda Pennell viveu em Teerão em virtude do pai ser engenheiro da BT ainda antes da revolução do Xá.
Com um storytelling assente num trabalho de recolha fotográfica (sempre nos antípodas do slideshow), o filme tem um discurso de reflexão política sobre uma certa superioridade moral britânica. Isso e um efeito hipnótico que não se explica. Um dos mistérios do festival.
Eldorado XXI, de Salomé Lamas
Foi o grande vencedor do festival. A estreia nacional do ensaio de Salomé Lamas sobre a vida num dos mais duros locais do mundo: a mina a 2000 metros de altitude de Rinconada, um dos poucos locais a céu aberto onde os humanos vivem e morrem atrás de ouro no Perú dos nossos dias. Uma aventura cinematográfica que deixou a cineasta doente mas que proporcionou imagens de uma beleza única.
O filme começa com um plano de quase uma hora sobre a subida dos trabalhadores da mina. Um exemplo de austeridade que tem uma qualidade performativa. Na segunda parte, a câmara envolve-se com os mineiros, mulheres e homens perdidos numa espécie de limbo.
Eldorado XXI é uma imensa parábola sobre os limites do ser humano. Um dos grandes filmes que certamente o mercado de salas português vai receber em 2017.
Tarrafal, de Pedro Neves
Filmar um local que não existe. O local é o antigo bairro São João de Deus, no Porto, um dos mais problemáticos da cidade, entretanto demolido pela antiga autarquia. Pedro Neves, contador de histórias do Porto, evoca as suas memórias com sentido da “altura ao Homem”, ou seja, está do lado dos desalojados, gente das mais variadas faixas etárias que relatam as suas saudades por um bairro que foi assolado pelo tráfico de droga. Ouvimos um polícia, ciganos e jovens que antes eram crianças e que gostavam de lá viver.
Fica-se com a sensação que é um filme cuja montagem ainda está em progressão: não se percebe se os seus desejos de reprodução de imaginários não poderiam dominar mais uma fórmula de entrevista clássica. A verdade é que este cineasta oriundo de Leiria tem um domínio estético muito próprio, muito coeso. Para já, não tem estreia marcada para o circuito comercial…
Rui Pedro Tendinha