“Não há melhor recomeço do que fazer um disco novo”
“Muito mais com a cabeça do que com o coração. Deve ser da idade”. Ao fim de muitas escutas, ainda meio abanado pela velocidade de arranque do novo disco dos Linda Martini, fixamo-nos nesta frase. Também deve ser da idade, mas não há mal nenhum nisso. E pensamos na capacidade que tem a banda de André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Pedro Geraldes em conseguir misturar a razão e a paixão: Linda Martini, o quinto longa-duração dos Linda Martini, chega-nos com uma perfeita bola de energia, completa e recheada. Uma Linda Martini, mulher feita e forte, que sabe bem como agir e como atuar. Uma “senhora gaja”, que o respeitinho continua a ser muito bonito e porque a Linda Martini já sabe dar-te uma coça.
Os Linda Martini há muito tempo que sabem o que querem nas suas músicas e têm-no feito quase sempre de forma imaculada. Um catálogo de 15 anos a refletir a passagem dos anos, uma riqueza que também é fruto das cumplicidades entre cada um dos membros. Mas agora olham para o novo disco como um recomeço, como se fosse o primeiro: homónimo, com a imagem na capa da Linda Martini que inspirou o nome da banda. “Olá, nós somos os Linda Martini e trazemos jarda.”
Ao quinto disco, confessam que este é o disco em que as ideias iniciais mais se aproximam do resultado final; o disco em que a eterna piromania de palco consegue passar para uma gravação. Nunca soaram tão bem nem nunca as palavras comungaram tão bem com o peso do rock. “Deve ser da idade”.
Há bandas que dizem que o processo de composição dos discos é contínuo. Como é com vocês?
Cláudia Guerreiro (C.G.) – (pausa e pensa) Nós paramos.
Hélio Morais (H.M.) – Paramos dois meses, mais ou menos.
C.G. – Acho que depende dos discos. Para este foi quando parámos menos. Foi uma pausa mesmo curta.
H.M. – Mais ou menos. Lembro-me que quando terminámos de gravar o Sirumba começámos logo a fazer músicas. Estávamos ainda naquele balanço de ensaiar muitas vezes por semana e começámos a fazer alguns riffs.
Pedro Geraldes (P.G.) – Como os discos partem muito de ideias que cada um vai levando, depende… por exemplo: nesta altura não estamos mesmo com tempo para fazer outro disco (risos). Mas a partir do momento em que arrancamos com os concertos e começa a haver algum tempo extra, acho que vamos, naturalmente, começando a tocar e a juntar ideias que podem vir a dar origem a um próximo disco. Daí podermos dizer que é um trabalho contínuo!
H.M. – O volume de trabalho focado é que não é imediato. Para este disco esse volume de trabalho arrancou quando fomos para a residência artística em Amares, no final de 2016.
Há alguma coisa em especial que desperte a composição dos Linda Martini? Algum frenesim que alguém sente que depois acaba por contaminar os outros?
A.H. – Acho que nunca funcionámos muito assim. Quando se lança um disco, fica-se algum tempo na estrada a repetir e a reinterpretar, noite após noite, as mesmas músicas. E chega uma altura em que há a necessidade de fazer coisas novas outra vez – enquanto isso continuar a acontecer, de disco para disco, vamos continuar a fazer música juntos. Neste disco também ninguém veio com uma mala cheia de estilhaços de músicas para começar a compor. É normal termos pecinhas, recortes no telemóvel daquilo que pode vir a ser uma música, mas depois só quando alguém diz “Se calhar lançávamos um disco este ano…” é que a coisa avança, mas num processo muito natural.
De qualquer das formas, creio que houve um intervalo de tempo muito menor entre discos do que tem sido costume. O que é que sentiram para começar a trabalhar mais cedo num disco?
H.M. – Nós lançámos o Sirumba (2016) e às vezes a vida dá umas voltas: há parcerias que funcionam, outras que não… são mudanças legítimas. Ainda que o Sirumba tenha corrido muito bem – com os concertos no Coliseu e as ótimas críticas que tivemos – mas acabámos por mudar de agência e de management. O agenciamento entregámos a outra pessoa, que já vinha do passado, mas o management decidimos ficar nós a fazer. E não sei se não foi até uma reação ao percebermos que “Temos que ser nós, outra vez, a inteirar-nos de tudo o que acontece com a banda, de cuidar com a banda, porque é outra vez da nossa inteira responsabilidade!” – mesmo que nunca tenha deixado de o ser, vá. E se calhar [escrever canções] foi uma das reações[estala o dedo]: “Bora já começar a fazer outro disco!”. Tivemos montes de ideias, reunimos mais vezes para pensar em como dar seguimento ao nosso ano, e o disco foi uma das ideias.
C.G. – No fundo era um reinício: muda-se de estrutura e recomeça-se. E não há melhor recomeço do que fazer um disco novo.
O Hélio usou o termo “reação” e este é um disco que vem com o fogo reativo. Arranca com três “chapadas na cara” a alta rotação: “Gravidade”, “Caretano”, “Boca de Sal”. O que é que despertou essa velocidade?
P.G. – Também houve o facto de, a partir do Sirumba, termo-nos dedicado todos à banda. Claro que com outras coisas pelo meio, mas deixámos todos de ter um trabalho full-time. E isso deu-nos mais disponibilidade. Mas com o Sirumba também sentimos que houve coisas que ficaram aquém daquilo que eram as nossas expetativas: tivemos vontade de voltar novamente, recomeçar e fazer músicas novas. Essas “chapadas na cara” são a reação, uma fuga ao Sirumba, que era um disco mais redondo, mais polido. Aqui quisemos ir buscar a intensidade e a ferocidade que também o som dos Linda Martini.
A.H. – É inevitável, e normal, o mundo catalogar-te para te compreender e meter-te numa caixinha – nem nós lutamos contra isso, também não levamos a mal comparações e rótulos. Mas desde o início que se falava na ideia do pós-rock e dos Sonic Youth: nós rapidamente demos a volta e virámos aquilo do avesso. O pós-rock ficou no passado ou então reciclámo-lo à nossa linguagem. E quando se chega ao Sirumba – que foi mesmo um exercício propositado de ir abaixo, de ir ver como é que os Linda Martini vão soar se tirarmos do “vermelho” – se calhar a maior parte das pessoas que nos iam acompanhando pensaram: “Ok, é aquele disco de uma banda de meia idade; já estão a amansar…” e isso não é de todo a nossa vontade. A nossa vontade é sempre de pisar sítios onde ainda não fomos e tentar esticar para perceber que novas linguagens podemos descobrir. Não nos interessava fazer um disco igual ao Sirumba e daí esse conceito de reação ser mesmo permente.
Tenho lido algumas entrevistas e críticas a este novo disco dos Linda Martini e parece ser unânime a ideia do regresso a um período enérgico da banda, dos tempos de Casa Ocupada, por exemplo. O que eu sinto é que os Linda Martini nunca soaram assim porque desta vez a força, e a velocidade, são ainda maiores até por causa das palavras, que são agora tão agudas e afiadas como são as distorções das guitarras, o peso das baterias e do baixo – que se está a ouvir como acho que ainda não tínhamos ouvido, Cláudia…
H.M. – Fizemos uma escolha muito acertada de produtor. Porque era nossa intenção de agora retratar-nos desta forma. No Sirumba não queríamos isso e não faria sentido, na altura, termos procurado o Santi [Garcia]. Neste disco queríamos mesmo o som áspero e agressivo, na cara, e por isso pensámos em produtores que podiam fazer sentido.
C.G. – Para este álbum fazia todo os sentido, no Sirumba não era o que queríamos, mas já o tínhamos querido noutros discos, mas não o tínhamos conseguido. Sempre quisemos passar para o disco aquilo que éramos ao vivo e nunca conseguimos! Mas claro que muito desse problema é nosso, não é? A nossa interpretação enquanto estamos a gravar o disco, se calhar não é tão solta como quando estamos num concerto. Mas ter um produtor que percebe as tuas intenções e que consegue cumprir com isso é muito importante. Acho que foi a primeira vez que conseguimos chegar ao sítio certo.
“Sempre quisemos passar para o disco aquilo que éramos ao vivo e nunca conseguimos! Ter um produtor que percebe as tuas intenções e que consegue cumprir com isso é muito importante. Acho que foi a primeira vez que conseguimos chegar ao sítio certo” — Cláudia Guerreiro
Também são quase 15 anos de banda, não é?
C.G. – Exato. Há uma procura… e vais encontrando coisas diferentes em alturas diferentes da vida! Desta vez encontrámos o Santi. Se calhar se tivéssemos tido o Santi num outro disco, se calhar já se tinha sentido este power noutros discos, que têm sido muito polidos, que nem têm muito a tal relação direta com aquilo que somos ao vivo, em que somos muito sujos e confusos.
A.H. – Mesmo o Sirumba, de que estávamos a falar: pode ter ido abaixo, mas ao vivo não é exatamente igual ao disco.
C.G. – Mas aí tudo bem, eu acho que fez sentido ser uma coisa muito controlada. Até porque tentámos controlar mais os espaços de cada um, tentar dar espaço àquela guitarra e àquela voz. Aqui não tentámos, foi muito mais natural e intuitiva, e acho que acabou por funcionar muito bem.
Este tipo de som que conseguiram era algo que desejavam, por exemplo, na altura do disco Turbo Lento [2013]?
C.G. – A ideia de passar o lado ao vivo para o estúdio acho nunca foi conseguida.
P.G. – Sim, e no caso específico do Turbo Lento isso não aconteceu, mas não quer dizer que quando pico o disco, não ouça um som muito característico. Acho que está bem produzido, mas lembro-me de, na altura… não fiquei insatisfeito, mas não era bem aquela imagem do som que imaginava para o disco. E acho que, neste caso, neste álbum, a ideia que queríamos ficou muito mais próxima do resultado final. Essa intensidade que temos ao vivo, sentimos que aparece agora no disco traduzida de uma forma mais eficiente.
H.M – Ya. Eu acho que a peça mais importante é a nossa evolução enquanto músicos. No Turbo Lento, por exemplo, julgávamos que só por gravar quatro ou cinco guitarras cada um e metermos tudo o que é distorção numa música, ela iria soar muito mais pesada. E isso é um erro, porque fica só ruído, é só uma massa! Hoje já sabemos quando devemos meter uma distorção. E para soar mais pesado pode não ser com distorção, mas com reverb!
C.G. – Lá está: o que tens que fazer num concerto para ter um efeito é uma coisa; o que tens de fazer em estúdio é outra. Aquilo que num concerto resolves com distorção, em estúdio resolves a tirá-la! E isso aprende-se com o tempo.
Além da velocidade das guitarras, este disco vem com uma matemática muito apurada, com outros compassos muito bem definidos, outras dinâmicas. Ouve-se isso em “É só uma canção”; na segunda parte de “Boca de Sal” ou em “Domingo Desportivo”. Como é que aparece esta diversidade estilística para lá das guitarras rock?
C.G. – Eu acho que já tínhamos ouvido um pouco disso no Sirumba. E este é um caminho que se seguiu ao Sirumba.
P.G. – Somos nós a tentar fazer algo que seja nosso, mas que não seja a repetição daquilo que fizemos no passado. Como músicos também tentamos outras abordagens, experimentamos outros recursos. No Sirumba começámos a dedilhar mais as guitarras, mas como aprendizagem (isso acabam por ser todos os discos). Eu recordo-me de, no rescaldo do último disco, ter sentido que as guitarras estavam dedilhadas e mais limpas, mas que lhe faltava, em determinadas partes, um rasgo. Neste aqui conseguimos juntar os dois mundos: as guitarras gritantes, mas também ter uma guitarra que consegue ser mais cirúrgica. Mas isso somos nós a tentar fazer coisas mais além.
H.M. – E há a introdução de corpos estranhos na nossa música: no Sirumba, e falando do ponto de vista rítmico, eu fui atrás das sensações e não da composição de cada beat. Na altura estávamos a ouvir muito Unkown Mortal Orchestra e isso remete-nos um bocadinho para o Motown – mas mais a minha interpretação daquilo que era Motown. Neste disco, por exemplo, eu estava a consumir muito o Bobby Womack e a “É só uma Canção” é mesmo um beat que podia estar num disco de Motown e não uma interpretação minha do género Motown. E isto numa música que, em si, não tem muito a ver com o género.
C.G. – Só não é plágio porque é bateria! (risos)
H.M. – É um standard do jazz e o jazz não é plágio!
O Hélio já nos confessou Bobby Womack como uma das influências dele para este disco. André, Cláudia e Pedro: quais foram as vossas?
A.H. – Nós ouvimos muita música, alguma que partilhamos e outras que nem sabemos… “Ah, andas a ouvir isso? Passa-me lá…” Eu, quando entro entro naquela zona de “agora é para fazer o disco” e a pensar nas letras e nas guitarras que vou fazer, nem sou pessoa de andar a consumir muita música. Nem é medo de me deixar contaminar, mas é porque aquilo já me consome tantas horas do dia à procura de soluções, que a última coisa que eu quero fazer quando chego a casa é ir ouvir música. Para este disco não tenho assim um nome na ponta da língua que me tenha inspirado de sobremaneira para fazer alguma coisa.
C.G. – Eu nunca tenho… e ainda por cima toco baixo (risos). Essas influências não são algo que sinta diretamente no meu instrumento. As influências sinto-as mais nas decisões que temos e nos arranjos da música toda. Há músicas que estamos a fazer e sinto que tem algo de uma determinada banda! Por exemplo, a “Lack” – que na altura chamava-se assim porque era a banda que aquilo se fazia lembrar – e que hoje se chama “Quase Se Fez Uma Casa”. Mas será que os Lack são uma influência? Hão-de ser, mas era uma coisa que ouvia em dois mil e pouco… são as coisas que ouvimos e que vão ficando guardadas e que de alguma maneira vêm ao de cima.
A.H. – Essa música surgiu numa hora… a Cláudia está a falar do final, que tem um peso bruto. E aquilo surgiu muito rápido: eu fiz um riff, ela fez outro… misturámos aquilo os dois e a música ficou desenhada. Assim que acabámos dissemos que fazia lembrar Lack. Mas já ninguém ouve Lack há mais de dez anos! Não foi tanto um ponto de partida… foi chegar lá sem saber como.
P.G. – Olha, eu tento não fazer esse exercício de ouvir uma banda para tentar “sugar” ao máximo e tentar reproduzir…
“Recordo-me de, no rescaldo do último disco, ter sentido que as guitarras estavam dedilhadas e mais limpas, mas que lhe faltava, em determinadas partes, um rasgo. Neste aqui conseguimos juntar os dois mundos: as guitarras gritantes, mas também ter uma guitarra que consegue ser mais cirúrgica” — Pedro Geraldes
O exercício não deve ser bem esse de sugar e absorver…
H.M. – Normalmente até é ao contrário! Talvez seja mais ires ouvir coisas distantes.
P.G. – Por isso mesmo: aquelas bandas que eu sinto que podem ser uma referência mais imediata para aquilo que é a minha parte nos Linda Martini, tento até afastar-me delas. Sei que ouvi muita música brasileira; lembro-me de na reta final das gravações de ouvir a Céu, o disco da Sara Tavares… não sei de que forma é que isso influencia, mas tenho certeza que, de alguma forma, acaba por se materializar. Mas uma das bandas que tenho muito como referência são os Drive Like Jehu, onde sinto as guitarras a gritar, um frenesim que parece não ter fim… não ouvi essa banda, mas sei que quando procuro chegar a uma referência, sei que é uma banda que paira à minha volta mesmo que não a oiça há muitos anos…
H.M. – Houve um disco que ouvi mesmo muito durante o processo de composição deste álbum: foi o disco de Paus (risos) E eles também. Fartaram-se todos de ouvir o disco de Paus.
C.G. – Na verdade, e isto é tão ridículo, que eu ainda nem ouvi a música que eles têm aí a rodar…
H.M. – É para veres os amigos… (risos)
Há pouco falávamos do peso da palavra nos Linda Martini, que é cada vez maior. E não é que fosse ligeiro noutras alturas, mas está cada vez mais presente.
H.M. – Mas sentes isso em comparação com o disco anterior?
Não acho que tenha mais palavras, mas sinto que as coisas que o André diz estão cada vez mais bonitas.
C.G. – A palavra tem cada vez mais força!
H.M. – Isso é verdade… este cromo [aponta para o André] está a escrever cada vez melhor!
A.G. – Mas é como a banda sonora de um filme em que, de repente, há um momento em que o som casa bem com a imagem que estás a ver. A culpa não é só da letra: acho que neste disco há um casamento feliz entre a música e a letra. Quanto mais tempo passas a fazer música, mais aprendes a escrever para o teu próprio timbre. Há muitas coisas que se calhar escrevia no passado e que não era com o tom ideal para cantar. Neste disco as músicas que construímos e a maneira como a voz é colocada também é uma aprendizagem diferente. Isto é só o momento em que estamos hoje.
“Aquilo que num concerto resolves com distorção, em estúdio resolves a tirá-la! E isso aprende-se com o tempo” — Cláudia Guerreiro
André, achas que hoje escreves melhor ou a escrever mais?
A.H. – Pá, nem consigo afirmar com certeza nem uma coisa nem outra… o escrever mais, indo atrás, se calhar sim. No início – e recuando ao período da maquete, que são as origens da banda – começámos como uma banda instrumental: mas não queríamos ser uma banda de pós-rock, por isso queríamos ter algo distintivo e daí decidimos pôr a voz… eu apareci à frente e tentei começar a escrever em português. Mas, obviamente, que nunca tendo musicado em português, tinha algumas limitações. O início foi muito o nosso gosto pessoal a fazer uma coisa que se dedicasse mais às paisagens sonoras, em que de vez em quando aparecia a voz a preencher. Mas também foi por alguma limitação, porque não conseguíamos pôr o português a dobrar bem com o que estávamos a compor. Mas se fores ao Olhos de Mongol, ou ao Casa Ocupada, tens momentos instrumentais, mas também tens muitas músicas de verso-refrão. Mas o que acontece é que, ao longo dos anos, não houve uma vontade nem minha nem deles de cantar mais ou de cantar menos – é o mesmo com os outros instrumentos, quando olhamos para uma música e perguntamos: “isto está fechado ou não está? Faz falta mais alguma coisa ou não?” Com as letras acontece o mesmo: há alturas em que achamos que faz mais sentido (e o Sirumba era um disco mais de canções e fazia sentido ter mais letra); aqui temos algumas canções, mas também temos muitos momentos mais de expansão, quase de jam, e as coisas equilibrarem-se de forma diferente.
Há 15 anos, quando começaram com os Linda Martini, passava-vos pela cabeça que o André poderia ser um compositor de fados?
H.M. – É um fantasma que nos assombra desde muito cedo. Lembro-me que no Casa Ocupada o Pedro Ramos já falava muito em fado.
“A culpa não é só da letra: acho que neste disco há um casamento feliz entre a música e a letra. Quanto mais tempo passas a fazer música, mais aprendes a escrever para o teu próprio timbre” — André Henriques
Lembro-me bem disso. E lembro-me de entrevistar-vos – Cláudia e Pedro, num snack bar no Largo do Rato – e falarmos sobre esse fado que se ouvia nas vossas canções…
C.G. – Pois foi! No Rato!
H.M. – Nós fomos falando sobre esse fado pontualmente. Até que as coisas, aos pouquinhos, vieram até ao nosso encontro e nós fomos ao encontro delas: fizemos os concertos com a Gisela João, em 2014; depois a Cristina Branco acabou por gravar fados escritos pelo André…
C.G. – E temos sempre aquela ideia de o “Mulher A Dias” um dia poder vir a ser cantado pelo Camané! (risos)
H.M. – É uma portugalidade que paira, não é? Não é difícil de acabar por se intrometer na música…
Também te foste apercebendo disso, André?
A.H. – Sim, desde o início. Estávamos a falar há pouco das limitações… em que eu pensava: “agora vou começar a cantar em português; é que eu faço para as palavras fazerem sentido, caberem e melodicamente perecerem bem?” Em 2003, quando começámos, não tínhamos muitas referências de como cantar o português naqueles dias… havia umas referências já herdadas, como os Mão Morta, de quem éramos fãs; os Ornatos [Violeta]; noutros registos não tão próximos havia os Clã, os Xutos… mas coisas mais contemporâneas não havia! Nós próprios tínhamos falta de referências de como haveríamos de pôr o rock a soar bem na nossa língua, ainda mais um rock como o nosso, retorcido, com muitos ruídos pelo meio… e sem pensarmos muito, nem eu nem eles, se calhar ao crescer a ouvir o português cantado – desde o fado até aos cantores de intervenção – fez-nos aprender a cantar assim. Nunca foi uma coisa que eu procurasse, mas a verdade é que me acontece isso muitas vezes.
C.G. – E se pensares, por exemplo, nos Dead Combo: eles podem ser um “spaghetti western”, ou lá como se chama, mas se fores ver, aquilo tem fado até ao fim do mundo! E tenho a sensação que foi uma coisa natural, que começaram por um lado, mas o fado foi entranhar-se por ali… é quase inevitável. Na verdade, nós temos sonoridades que vinham sobretudo daqui do Pedro – e se calhar ainda são – que vão buscar ao mesmo sítio dos Dead Combo…
P.G. – … mas eu o fado é só a “Rosinha dos Limões”!
C.G. – Mas tens o fado mais tradicional, mas depois tens alguma proximidade a sonoridades como Dead Combo… as coisas estão todas ligadas.
A.H. – Como o Filho da Mãe, por exemplo. Ele não toca com uma guitarra portuguesa, toca com uma clássica de seis cordas, e muita vezes encontras resquícios de Carlos Paredes. E é um gajo que passou a vida inteira em bandas de metal e hardcore, mas num instrumento acústico, a música dele também vai lá buscar sem ele procurar.
C.G. – Mas atenção que ele tocava guitarra portuguesa.
A.H. – Ok, mas se falares com ele, ele não te vai dizer que está a tentar fazer um fado. Até quer fugir disso…é o portuguese blues!
“Acabámos por mudar de agência e de management. O agenciamento entregámos a outra pessoa, mas o management decidimos ficar nós a fazer. E não sei se [escrever canções] não foi uma reação ao percebermos que “Temos que ser nós, outra vez, a inteirar-nos de tudo o que acontece com a banda” — Hélio Morais
Lembram-se dos Laia? Lembro-me de os ouvir dizer que o próprio Carlos Paredes já era pós-rock.
C.G. – Completamente! E do melhor pós-rock.
Este é também o disco em que dão a conhecer a verdadeira Linda Martini. A partir de agora quando vos perguntarem quem é a Linda Martini o que é que vão responder?
P.G. – Vão ver a capa do disco!
H.M. – É a gaja que está na capa do disco.
P.G. – A senhora gaja, ’tá bem?! (risos)
Entrevista: Bruno Martins | Fotografia: Ângelo Lourenço