No arranque da década de setenta, assinaram três discos essenciais para definir a música negra made in UK. Uma sociedade segregada e com um racismo estrutural muito presente, condenou os Cymande ao esquecimento. Mas não para sempre. Primeiro os colecionadores de vinil, depois os produtores de hip hop e, finalmente, já nesta dácada um documentário com a história do grupo, trouxeram a banda de novo para a ribalta. “Renascence” marca o regresso aos discos de originais dos Cymande… meio século depois de terem gravado o último. O Luís Oliveira esteve à conversa com Steve Scipio e Patrick Patterson, dois dos membros fundadores da banda.
L: Olá, Steve e Patrick. Se me dissessem, há uns anos, que estaria em 2025 a falar com os Cymande eu iria desconfiar. E vocês, quando perceberam que um disco novo ia mesmo ser uma realidade?
Steve Scipio: É difícil saber por onde começar, exatamente. Com o interesse pela nossa música que começou nos anos oitenta e noventa com o RAP e o sampling percebemos que havia de novo atenção virada para a banda e, na verdade, reformámo-la em 2010, 2011 e começámos realmente a juntar ideias para um álbum.
Fizemos um rascunho de um álbum em 2015, penso eu, e isso foi mais um teste, para ver se ainda sentíamos o mesmo no que toca à música e a tocarmos juntos, e para explorarmos novos caminhos capazes de levar a banda mais longe do que fomos capazes de levar no Reino Unido, até 1975, quando decidimos fazer uma pausa Com esse novo interesse na banda, fizemos uma digressão pelos EUA em 2016 e o interesse pela banda continuava a crescer, crescer, crescer. Em 2023 achámos que era o momento certo para lançar música nova e responder de alguma forma ao interesse que se vinha desenvolvendo na banda nos últimos 10 anos.
L: Patrick, depois de todo este tempo, mudou alguma coisa na maneira como os dois compõe?
Patrick Patterson: Mudou. Acho que ambos achamos que isso é verdade e isso nota-se pela natureza do material que temos no novo álbum. Nós sempre abrangemos uma vasta gama de géneros e não escrevemos intencionalmente para colocar as coisas num determinado embrulho ou género específico específico. Mas acredito que, ao ouvir as músicas, se nota que houve muito mais cuidado na escrita das mesmas. Alguém, como tu, que conhecesse a nossa música reconhece que há,, não sei, talvez muito mais cuidado, há algo mais profundo, também e para mim isso é ótimo. Não escrevemos da mesma forma que costumávamos fazer no passado. Quer dizer, quando o Steve e eu éramos mais novos, escrevíamos muito mais de uma forma mais individual.
Isso não é tão necessário, agora. Nós conhecemo-nos tão bem, conhecemos tão bem os nossos estilos, nós compreendemos onde estamos e onde o outro está a tentar chegar, por exemplo, em termos de letras e sabemos qual é o nosso destino. Temos uma ideia comum do nosso destino quando se trata da música que abordamos. Portanto, sim, mudou e acho que mudou realmente para melhor.
L: A ideia de um som live, um som analógico e quente é uma marca dos Cymande. Mas hoje temos estúdios super modernos, com gravação digital etc. Isso mudou alguma coisa na essência das gravações?
S: Bem, a música de Cymande é muito uma música dos músicos e da ligação entre os músicos, entre os membros da banda. É daí que vem a vibração e o sentimento da nossa música.
Sabes, precisamos de nos alimentar uns dos outros enquanto tocamos. E esses álbuns gravados nos anos setenta foram sempre gravados ao vivo. Estávamos em estúdio a tocar como banda e adoptámos o mesmo formato para este novo álbum. Acho que nenhum dos membros da banda concordaria com a ideia de entrarmos em estúdio e confiarmos muito na tecnologia moderna. Ou entrarmos individualmente e simplesmente colocarmos as nossas partes nas outras partes que já tinham sido definidas.
Todos nós nos alimentamos uns dos outros, dos saxofonistas, do vocalista, o teclista e interagimos dessa forma. E é aí que se gera a vibração nos Cymande. Portanto, embora a nova tecnologia possa estar presente na mistura e coisas dessa natureza, a reprodução da música passa ainda por gravarmos ao vivo como músicos.
L: Em meio século não mudou só a indústria musical. O contexto social e racial também se alterou. Que diferenças notas que impactem uma nova geração de músicos negros na Grã Bretanha?
P: Essa é uma ótima pergunta maravilhosa e ainda bem que nos fazes essa pergunta porque o cenário era bastante negativo na nossa época. Parte do desenvolvimento ou melhoria, se preferires, veio do facto de os músicos mais jovens hoje terem acesso direto ao seu público através da internet e acesso direto à exposição nos media, algo que nós não tínhamos.
E isso é importante por vários motivos. Mas é refrescante porque já não precisam de se curvar às editoras. Podem fazer grandes avanços, criar um grande apoio dos fãs, expor a sua música e, depois, irem para as editoras discográficas em força, se assim quiserem. Nós não tínhamos essa facilidade quando começamos e as outras bandas de música negra nos anos 70 tinham uma dificuldade semelhante. Este novo contexto é um avanço gigante.
L: O documentário “Getting It Back, The Story of Cymande” andou por vários festivais de cinema e apresentou a vossa música a um novo público. Que feedback tiveram?
S: O feedback sobre o documentário foi fantástico. Eu acho que as pessoas realmente ficaram esclarecidas sobre muitas coisas que estavam a acontecer na altura em que estávamos na estrada.
E muitos dos nossos fãs de agora não sabiam do tipo de problemas que existiam no Reino Unido na altura em que estávamos a criar a nossa música. Portanto, o documentário foi um grande veículo para isso. E o feedback das pessoas que o viram foi fantástico. E para nós, para mim em particular, um dos aspetos que gosto no documentário é não foi apenas um veículo para, mais uma vez, apenas reproduzir a música de Cymande, mas ele também abordou as questões sociais e culturais que impactaram a banda. Todo o menu, à falta de uma palavra melhor, para a música que nós criámos foram os problemas que estávamos a enfrentar enquanto jovens negros no Reino Unido, nessa época. Essa foi a génese para a música que criámos e o documentário foi ótimo a comunicou a todo o público que o pode ouvir e ver.
L: O renascimento da vossa música começou com muitos nomes do hip hop a recuperarem a vossa música para samplarem. Da mesma forma que vocês pegaram na herança caribenha e a misturaram com as linguagens da música negra contemporânea, esses nomes usaram-vos como matéria prima…
P: É uma coisa maravilhosa fazer parte dessa experiência, saber que, as pessoas encontraram algo na nossa música que ajudou na sua própria criatividade. E isso é um grande elogio para nós. É bom fazer parte de qualquer novo tipo de desenvolvimento, especialmente na área da música, que é uma apropriação primária para nós. O hip hop nunca foi um género primordial, em termos de influência, quando surgimos porque, antes de mais, não existia sequer. E depois acho que tudo se consolidou a tal ponto que o que ouvíamos no hip hop seria o material que acabaria por se tornar popular. Mas tem sido ótimo para nós porque tivemos muitos samples que ajudaram a chamar a atenção do público jovem para os Cymande.
L: Ao fim de todo estes anos, qual a importância do palco? É a mesma diversão dos tempos iniciais ou é já só apenas parte do trabalho?
S: Não, é mais do que isso. É mais do que apenas o trabalho. É um veículo para nós e ainda comunica uma mensagem que é muito relevante hoje, tão relevante hoje como era nos anos 70.
Os problemas que enfrentámos nos anos 70 podem não ser tão flagrantes agora como eram naquela altura, mas ainda são problemas subjacentes que precisam de ser resolvidos.
A nossa música serve como um veículo para comunicar a forma como ainda nos sentimos em relação às coisas. Para além de abordar questões sociais, questões sociais e culturais, nós também gostamos, como músicos, obviamente, gostas de tocar. Essa é, de certa forma, a razão de ser dos músicos. Muitos músicos só querem tocar 24 horas por dia, porque essa é a razão de ser deles. Por isso, para nós, enquanto músicos, é ótimo estar em palco, poder tocar a nossa música e usá-la como veículo de comunicação e também ver a resposta que cehga do público à nossa música. Quando estamos no palco e vemos que as pessoas acreditam no que estamos a fazer isso é muito bom e, até certo ponto, pode até ser mais agradável agora porque podemos apreciar mais o que estamos a fazer e significado do que estamos a fazer agora, ao contrário de quando éramos jovens. Quando tínhamos vinte anos havia outras coisas que estavam a ter impacto na nossa vida e talvez não percebêssemos o quão séria e importante era a mensagem da música. Mas agora é muito. E é realmente agradável, mas talvez de uma forma um pouco diferente de como era agradável nos anos setenta.
P: Uma das coisas realmente fascinantes para mim é por as coisas na perspetiva do público britânico em particular, e talvez até do europeu. Os americanos, como disseste e como sabes, levaram-nos sempre a sério. Uma das coisas interessantes que pode estar na mente deles, como é que com uma indústria musical forte como no Reino Unido pôde, submergir música de tão boa qualidade. Como pôde decidir que determinado tipo de música não teria exposição. Como é que eles nos enganam desta maneira? E a resposta é que tínhamos algumas bandas maravilhosas nessa altura, muita energia ótima. Alguns já deves ter ouvido falar, como os Osibisa, que tinha um público maravilhoso aqui no Reino Unido. Como é que os amantes de música puderam ser tratados desta forma? Isso não é justo, não está certo.
L: Neste meio século, mudou também a maneira como consumimos música. Hoje podemos ouvir o novo dos Cyamnde em todo o lado num smartphone sem precisarmos de por o vinil a tocar de um lado ao outro. Para quem tem uma música com a vossa mensagem isso diminui o poder da música?
S: Pessoalmente, acho que a música é um ótimo meio de comunicação. É muito importante, sobretudo para os jovens. As pessoas agora vivem com os seus smartphones e auscultadores e estão a ouvir música, o tempo todo. Se a música é utilizada como um meio para comunicar uma mensagem então pode ter muito impacto. Uma das coisas que lamento agora tem a ver com o formato do álbum, que caiu em desuso. Agora está tudo focado em singles. Nos anos setenta, tinhas aquilo a que chamamos álbuns conceptuais. Portanto, o álbum inteiro era um conceito para comunicar essa mensagem e todas as músicas do álbum estavam como que ligadas entre si, na comunicação dessa mensagem, Agora tudo parece um pouco mais focado em obter um single e o foco está apenas num single e num single de sucesso, claro. Então não tens a mesma abordagem conceptual para comunicar música como no passado com nomes como Marvin Gaye e o “What’s Going On” e esse tipo de álbum que eram conceptuais e comunicavam uma mensagem.
L: Primeiro a estrada, agora um novo disco. O que reserva o futuro para os Cymande?
P: Gosto de pensar que este é o início da divulgação internacional da música de Cymande. E se isso acontecer, se tivermos a sorte de que isso aconteça, então teremos muita música para levar connosco. Para nós, na nossa idade, não será apenas ir para a estrada e espalhar o que fizemos antes. É um processo de criação contínua, se preferires. E como disse, este é provavelmente o primeiro passo nesse caminho. Por isso, espero que as pessoas ouçam opara podermos ter exposição e oportunidades para nos darem valor para seguirmos em frente.
Entrevista de Luís Oliveira