Gilles Peterson passou por Lisboa recentemente para tocar no aniversário do Musicbox e fazer uma emissão de rádio de 3 horas, em directo, de uma loja de discos (Flur).
Actualmente, além de ter um programa na recém criada BBC 6, dirige o projecto Worldwide FM, uma rádio online que teve no último ano algumas emissões experimentais e começa agora a ganhar mais consistência, dada também por programas como aquele que foi feito a partir de Lisboa e por uma considerável lista de colaboradores internacionais (da qual faz parte a portuguesa Rita Maia, que também esteve nesta emissão lisboeta).
Gilles Peterson é um DJ e animador de rádio com estatuto de super estrela, há várias décadas, entre os divulgadores de musica mais influentes do mundo. Começou nos anos 80, ainda adolescente, a divulgar música fora da caixa, em concreto música de influência jazz e raiz negra, virada para a pista de dança mas não dominada por ela. Os primeiros passos foram em Rádios Piratas, depois esteve vários anos na BBC Radio 1, onde lançou o seu programa Worldwide, distribuído em vários países. Hoje, Worldwide é um Festival, uma gala de prémios e também uma rádio, a Worldwide FM.
Peterson tem sido um dos mais empenhados divulgadores de música de todas as latitudes, tendo estado ligado a duas importantes editoras da cena de dança britânica (Acid Jazz e Talking Loud) e dirigindo agora a Brownswood Recordings.
Foi sobre tudo isso, e ainda sobre os melhores do ano, que falámos com ele enquanto se preparavam os últimos pormenores para a emissão em directo a partir de Lisboa.
Ainda te lembras quando e como começaste a fazer rádio?
Comecei há 35 anos, acho… não, mais tempo, 37 anos! Não é incrível? E agora quase consigo tocar as minhas origens, não me sinto assim tão distante do início.
Como era no início?
A paisagem era muito diferente. A música de que eu gostava não passava na rádio, eu tinha 14 anos, estava a descobrir o jazz e o funk e tinha que procurar muito para encontrar aquilo de que gostava. Havia algumas radios piratas, uma estação chamada Invicta e mais um ou dois programas, um na BBC, outro, de disco, na Capitol Radio, a rádio pirata mais importante da altura, e mais nada… Eram tempos excitantes, todo um mundo de possibilidades que se abria e que os meus amigos desconheciam… Eu adorava, achava, que, por fazer rádio, tinha o meu lugar secreto… De certa forma, com a Worldwide FM estou de volta às origens porque estou novamente à procura de um lugar onde me sinta confortável no que à radio diz respeito. Na verdade, é nesse ponto que estamos com a Worlwide FM, à procura do nosso lugar cultural. É interessante porque vimos da club culture e da cena electrónica mas temos noção de onde vem isso tudo, quais são as raízes, de onde vem a herança, o que houve antes disso, e acho que as pessoas que nos seguem querem mais do que apenas DJ brancos e modernos a passar house (risos).
O panorama rádio também mudou muitos nestes quase 40 anos. O que pensas do momento actual da rádio, tendo em conta a formatação a que estão sujeitos os grandes projectos, por um lado, e o surgimento de pequenas rádios online, mais livres, por outro?
Acho que as coisas mudaram bastante, de forma positiva, nos últimos anos. No Reino Unido temos obviamente muita sorte com a BBC por ter aberto o canal 6, a 6 Music, que começou por ser pensado como um canal de pop e rock alternativos para pessoas mais velhas, mas que acabou por encontrar outro caminho musicalmente muito mais interessante e que eu acho está muito mais perto da abordagem dos franceses, no sentido em que tem um som mais ecléctico. A 6 está a tornar-se muito rapidamente na estação com maior crescimento de audiência no Reino Unido o que é uma loucura!!! pensar que um grupo como os Badbadnotgood, que mal saíram da adolescência e são muito influenciados pelo jazz, ficaram em primeiro lugar nos discos do ano na 6 é incrível! Eu fiquei chocado… pensei que iria ganhar o David Bowie ou alguma nova banda indie de que nunca ouvi falar mas ganharam os Badbadnotgood! Isso é muito interessante mesmo que signifique que 2016 foi um mau ano de rock e por isso as escolhas foram noutras direcções.
Penso que com a 6, a BBC arranjou uma maneira de recuperar o espírito do John Peel. O John Peel teve uma influência muito grande… quando morreu não era propriamente acarinhado dentro da BBC, mas com a morte dele percebeu-se que tinham perdido uma figura incrivelmente influente… eu tive a sorte de ter alguma espécie de orientação dele porque fiz emissão a seguir a ele durante bastante tempo e acabámos por conviver e ficar amigos… Mas, no geral, acho que há sinais muito positivos relativamente à rádio, sejam palaformas como a NTS, ou Berlin Community Radio em Berlim, ou a Lot Radio em Brooklyn… há muitas estações que estão a dar às pessoas uma experiência de rádio diferente, onde a curadoria é importante. O problema com estas plataformas é encontrá-las. Muita gente não consegue chegar até elas e acabam por ser ouvidas apenas pelos que já sabem da sua existência… a chave está em conseguir chegar às pessoas, a mais pessoas, à high street… mas há sempre portas de entrada. É um pouco como quando eu era miúdo e estava a interessar-me por musica: perguntava onde é que posso ouvir estas coisas, onde está a porta de entrada? Por exemplo: eu gosto de pôr musica para 100 pessoas que conhecem o que faço e os discos que toco e dançam lindamente mas também gosto de tocar no Sonar a seguir ao Richie Hawtin sabendo que 90% das pessoas que estão na sala vão acabar por sair, mas para as que ficam pode ser uma experiência capaz de mudar vidas. É preciso arranjar maneira de trazer pessoas novas, porque elas estão abertas…
Mas é preciso muita coragem para tocar a seguir ao Richie Hawtin, ou seja quem for do techno, sobretudo tendo noção que a música que se vai passar pode afastar 80 – 90% do público…
Acredita em mim, tenho nódoas e cicatrizes, e estou traumatizado (risos) mas estou bem, sinto-me sempre melhor no dia seguinte (risos).
Estiveste desde sempre ligado ao surgimento de novas bandas e editoras. Primeiro na Acid Jazz e Talking Loud, agora com a Brownwsood. De onde vem essa vontade de, além de divulgar musica na radio e nos DJ sets, editar também discos?
Acho que sempre quis partilhar música, desde miúdo. Mais a sério foi quando comecei a fazer compilações com as coisas que tocavam nos clubes de jazz e musica negra de Londres. Isso abriu-me a porta. Depois da música antiga e da sua recuperação, acabei por passar para os grupos novos inspirados nessa musica antiga e nessa altura senti necessidade de arranjar maneira desses grupos editarem, fosse Galliano ou Brand New Heavys… foi natural e gostei desse lado da musica também. Nos anos 80, o DJ não era importante, era um hobbie, tinha-se um emprego a sério durante o dia e depois passava-se música em clubes à noite porque se gostava mesmo de fazer isso… estes grupos novos que iam parecendo criaram necessidade de editoras novas e foi assim… à medida que os anos foram passando fui sentido uma certa responsabilidade… responsabilidade se calhar é uma palavra forte demais, mas na verdade fiquei feliz por ver estes grupos editarem discos e crescerem…na verdade acho que isso de eu ser um “DJ estrela” e uma personalidade da rádio acabou por me transformar numa espécie de mentor para essas bandas e eu gosto de todos os aspectos disso. Continuo a sentir isso com a Brownsood, mesmo depois de 13 anos a dirigir a Talking Loud…essa foi a primeira editora que fiz com uma major e na altura não havia nada daquelas compilações de dança que depois se tornaram famosas, aconteceu antes da Mo’Wax e de todas aquelas editoras britânicas dos anos 90, tivemos que fazer o trabalho todo, por isso foi complicado, foi uma luta. Tinha que ir a reuniões em que só se falava de discos dos Dire Straits e do Elton John e eu a tentar vender-lhes um disco do Roni Size, dos 4Hero ou dos Young Disciples… foram tempos difíceis mas acho que se construiu uma base muito forte não só para mim mas para a musica negra e de dança no Reino Unido… mas gosto de editar discos, adoro ver os artistas crescer, por isso é que a rádio funciona para mim. Lembro-me de passar uma demo da Amy Winehouse, ainda ninguém a conhecia, e foi incrível vê-la crescer, apesar de tudo o que aconteceu depois. O mesmo com gente como Mount Kimbie ou James Blake.
O que é que conheces da cena portuguesa?
Sabes… não tenho vindo cá vezes suficientes. Sempre senti que havia uma energia musical muito forte em Portugal, sempre tive reacções muito boas sempre que vim tocar cá. Claro que a cena do kuduro e toda cena pós Buraka Som Sistema não sei para onde vai mas é muito interessante para mim. Estou sedento de mais coisas, espero conhecer algumas agora por causa disto (a emissão de rádio). Fiquei chocado por saber que continua a haver apenas 2 clubes em Lisboa onde este tipo de som passa, o Lux e o Musicbox, o resto acontece por livre iniciativa das pessoas.
Já escolheste os melhores do ano?
Não sei… na verdade estou satisfeito pelos Badbadnotgood, que passei na BBC Radio 1 quando ainda se chamavam Odd Trio. Na verdade eles tinham colocado online uma versão jazz de uma canção de Tyler the Creator e o meu produtor apanhou-a e disse que eu devia gostar, por isso, desde então, sempre que lançam alguma coisa, quero logo passar, são-me muito próximos e vê-los crescer de forma meteórica tem sido bonito e excitante. Emocionalmente estou muito feliz por eles, tocámos juntos em LA recentemente. Mas gosto muito do disco de Kaytlin Aurelia Smith (Ears), que está nos antípodas do espectro, é muito ambiental, mas tenho andado a ouvir muita musica ambiental. Também fiz uns espectáculos com ela… 2016 foi um bom ano, num lado mais mainstream, também há o disco do Kaytranada, gosto bastante… e muito jazz bom também este ano… acabei de pôr online o meu top 20 de canções, mas ainda não cheguei aos álbuns.. e nunca fico satisfeito com listas.
Falta sempre alguma coisa, não é? Ou porque nos esquecemos ou porque nem sequer ouvimos…
Sim. Mas isso também é excitante, sabermos que há coisas que não ouvimos. E há que ser humilde também em relação a isso. As pessoas acham que eu conheço tudo…não conheço, nem ouço assim tanta música fora do trabalho.
Entrevista: Isilda Sanches