Na Linha da Frente é o novo filme da realizadora suíça Petra Volpe. Acompanha, em tempo real, um turno de oito horas de uma enfermeira num hospital que sofre com uma grave falta de pessoal. Leonie Benesch, atriz de A Sala dos Professores ou O Atentado de 5 de Setembro, interpreta Floria, enfermeira que dá o corpo às balas pelos seus pacientes enquanto lida com falhas estruturais que afetam o dia a dia de trabalhadores e do próprio sistema de saúde — mesmo que se trate de um dos países mais ricos do mundo.
Num contexto em que os dramas hospitalares fazem parte da cultura popular, Na Linha da Frente procura aproximar-se da realidade dos bastidores, revelando a pressão e o desgaste que marcam a profissão. é o representante suíço na corrida ao Óscar de Melhor Filme Internacional e tanto o filme como a atriz principal estão nomeados aos European Film Awards.
A Antena 3 conversou com Leonie Benesch, que nos explica como foi estar Na Linha da Frente.
Transcrição da entrevista:
K (Kenia Nunes): Leonie, comecemos pelo princípio: como é que este papel te chegou? Sabe-se que a realizadora Petra Volpe pensou em ti logo. Precisaste de ser convencida para participar ou comprometeste-te assim que leste o guião?
L (Leonie Benesch): Então, eu já conhecia o projeto há algum tempo porque tinha trabalhado com a Judith Kaufmann, diretora de fotografia, n’A Sala dos Professores e ela já me tinha falado deste Na Linha da Frente. A Petra Volpe não me quis enviar o guião inicialmente porque achou que as parecenças com A Sala de Professores me fosse desanimar: os dois são filmes que seguem uma mulher e as suas tensões no trabalho…
Mas ela eventualmente acabou por me enviar o guião e eu amei! Ela tinha um pitch pronto, mostrou-me que eram mesmo filmes diferentes. Este filme é muito mais físico. Tive de aprender a movimentar-me como os enfermeiros, a falar como eles, a usar todo o equipamento. E esse é um ótimo desafio para uma atriz, não é? Depois, apercebi-me que o filme tinha muita pesquisa por trás. Cada vez que lia sobre um paciente novo, sentia que já os conhecia. Todos os diagnósticos eram muito específicos, a história encaixava-se muito bem. A minha decisão acabou por ser muito óbvia.
K: De toda a pesquisa que fizeste para a personagem, onde é que encontraste os contributos mais valiosos?
L: A Petra sempre quis fazer um filme em que o público, ao sair da sala, ficasse a perceber como é trabalhar num hospital com falta de pessoal. E disse também, desde o princípio, que queria um filme que fosse para os enfermeiros, para que se pudessem reconhecer a eles próprios e ao seu dia-a-dia. Portanto, era essencial que a pesquisa fosse impecável.
Trabalhámos com Nadia Habicht, que foi enfermeira nas urgências durante 25 anos, e esteve connosco a cada passo. Também tive a sorte de poder estar cinco dias num hospital na Suíça a observar tudo como uma mosca na parede, seguindo enfermeiros iguais aos que vemos no filme. O mais importante para mim foi mesmo absorver tudo: como eles se mexiam, os códigos de fala, como interagem com os computadores, com o equipamento. Fascinou-me a maneira como tratam a sala dos medicamentos — está um telefone a tocar, cinco pessoas à espera, e lá estão eles a manusear doses e medicações que, correndo mal, podem ser letais. Cada gota conta, e foi a maneira como conseguem manter o foco que mais me surpreendeu.
K: Acho que isso se nota muito na tua performance. A Floria está sempre em movimento, a fazer multitasking. Até quando pára para beber água está numa espécie de missão. Muitas vezes até temos a sensação de estarmos dentro de um plano-sequência. Como é que desenvolveste essa coreografia?
L: Foi um desafio muito divertido. Eu adoro quando as coisas são nítidas, e foi também essa uma das razões pelas quais quis interpretar este papel: o facto de tudo ser como uma dança. Senti isso especialmente com a Judith, a diretora de fotografia, que queria que a câmara espelhasse sempre os conflitos internos da Floria. Quando a câmara fica com um paciente depois de ela sair do quarto, só podemos lá ficar enquanto o paciente permanecer na cabeça da Floria — e logo seguimos ao próximo, next!
A ideia foi mesmo dar a sensação de plano sequência. Claro que seria impossível fazermos um filme de oito horas, o turno todo, mas o guião e a edição fizeram possível que uma hora e meia pudesse parecer oito horas. Fico mesmo feliz quando um realizador e a sua equipa sabem exatamente o que querem. Foi isso que aconteceu aqui e é libertador.
K: Já que falas na realização da Petra: houve algum apontamento dela que te marcasse especialmente?
L: Sim! A Petra tem um ponto de vista muito específico e muito amável para com os outros. Ela disse-me logo no início que a Floria é uma atleta. Falávamos dela como uma patinadora numa pista de gelo. A nossa diretora de arte, Beatrice Schultz, até pintou uma pista no chão do hospital. Outra nota que a Petra me deixou: a Floria tem como objetivo final sair dos quartos dos pacientes, e todos têm como objetivo a sua permanência. Ela quer ficar, mas não pode. É uma dinâmica muito hábil.
K: Pacientes, famílias, os médicos, as duas colegas… Esse ecossistema à volta da Floria é composto por atores profissionais, não atores, trabalhadores da área da saúde. Como foi trabalhar com todos esses backgrounds na rodagem?
L: Foi incrível. A Petra queria muito que os pacientes não fossem caras conhecidas do público e o casting foi muito bem feito. A equipa de reanimação que aparece no final era verdadeira — aquele é mesmo o trabalho deles. A Morina, que toca música no telemóvel para a companheira de quarto, também nunca tinha representado, mas tem uma história de vida parecida à da personagem. E eu acho que, no final das contas, estas escolhas foram importantes para a Petra porque cada uma das personagens acabam por ser um reflexo dela. As pessoas têm adorado o Sr. Loi, que foge do hospital para ir buscar o seu cão. A Petra dir-te-á que tem um cão adorável, o Delphine, e que se fosse parar a um hospital não conseguiria parar de pensar nele. E isto acontece mesmo! Houve vários médicos com quem falámos que relataram sobre pacientes cuja maior preocupação, antes da saúde, é mesmo o animal de estimação que deixaram sozinhos.
K: Normalmente, em dramas hospitalares, há sempre um motivo por trás da história, uma doença por diagnosticar, um melodrama. Aqui, é mesmo a Floria e o seu cansaço, pouco da sua vida entra em cena. Criaste algum backstory para ela? Ou o teu trabalho enquanto atriz resumia-se mesmo àquelas oito horas?
L: A exaustão era bem real — e era minha. Idealmente, a atuação é sempre verdadeira; não deveríamos saber o que vem de mim e o que não vem. Mas o ano que antecedeu as filmagens foi exaustivo para mim, e chegava ao plateau sempre muito cansada. Então decidimos: vamos usar isto. E ficou perfeito. Não sou uma atriz de método, não crio longas histórias psicológicas para os meus papéis, a não ser que requeiram mesmo isso. Com a Floria, foi sempre tudo muito claro.
Ela não tem segundas intenções, não tem mistério. Ela gosta do que faz. Tem muita energia. Chega sempre para o turno e acha que vai conseguir aguentar e quer sempre fazer um bom trabalho. Mas as circunstâncias não o permitem. Nos cinco dias que passei no hospital a estudar, conheci muita gente como ela. Não há complexos de salvação, não há paixonites nos corredores, toda essa treta que vemos nos dramas hospitalares. Estas pessoas aparecem porque querem fazer o seu trabalho. Estão motivados, querem continuar mesmo que seja difícil.
L: É difícil não mencionar A Sala dos Professores. Primeiro por causa do trabalho estético da Judith Kaufmann que vemos nos dois filmes. Mas também em tema: são dois filmes sobre trabalhos essenciais, cujo erro pode culminar em catástrofes — morais, éticas, e, no caso do Na Linha da Frente, fatais. Qual foi, para ti, as principais diferenças entre a Carla e a Floria? E os pontos de contacto?
L: Os pontos de contacto são muito nítidos: um espaço, uma protagonista, um trabalho essencial. Mas eu acho que A Sala dos Professores é mais intelectual: as personagens estão sempre a tentar antecipar-se, estão sempre a desvirtuar as coisas — é um mindfuck. É um filme sobre a cultura de cancelamento.
Na Linha da Frente é um filme sobre uma pessoa onde tudo é, na verdade, sobre o trabalho. É físico, baseado nos movimentos. É sobre estes atletas que têm também de fazer uma gigante ginástica mental para manter a máquina a funcionar.
K: Na Linha da Frente é o representante suíço ao Óscar de Melhor Filme Internacional, pode vir a chegar a públicos ainda mais alargados. Qual tem sido o feedback até agora?
L: Falo por mim e pela Petra quando te digo que tem sido o trabalho com maior feedback das nossas carreiras. Tem sido avassalador. Há quem nos diga que passou pelo que acontece aos três irmãos que perdem a mãe, uma senhora que a Floria não conseguiu acompanhar durante o turno. Já conheci quem tenha sido um dos irmãos, quem tenha sido a enfermeira que não teve tempo de acompanhar um doente até que fosse tarde demais…
Há quem nos diga que, quando têm um dia intenso de trabalho, pense sobre a Floria a tratar destes pequenos side quests no meio da loucura, como guardar uns óculos de uma paciente antiga para os entregar mais tarde. São relembrados da exigência da profissão, ganham um novo respeito por ela. E isso é extraordinário.