Na véspera da estreia de 100% Camurça, de Quentin Dupieux, Rui Pedro Tendinha trocou mensagens com o realizador. Um cineasta de diabruras não convencionais que aqui coloca Jean Dujardin a filmar (com uma câmara de vídeo rasca) um ataque a todos os casacos do mundo. Sim, leste bem…
No novo filme de Quentin Dupieux, estamos no Olimpo do fetiche e do kitsch: um homem apaixona-se pelo seu blusão de camurça e reinventa-se a partir daí. Mas há mais loucura: começa a falar com o blusão e a obedecer ao seus desejos — coisa simples, a voz da camurça quer que ele mate toda a gente que usa casacos. Sim, a matança surreal de 100% Camurça dá lugar à farsa, mas neste jardim de labirintos há curvas que dão lugar ao western existencialista, ao filme de terror e à reflexão sobre os clichés do cinema autoral francês: pegar numa câmara e filmar é logo um ato de cinema? Pois, o cowboy de camurça tem uma câmara de vídeo rasca e vai filmando tudo.
Dê por onde der, Le Daim é uma das experiências mais insanas do cinema francês contemporâneo, tendo tido honras de abertura da Quinzena dos Realizadores de Cannes há exatamente um ano. Por outro lado, para quem conhece o cinema fora da caixa de Dupieux não se pode surpreender. Em Rubber — Pneu, o realizador encenava o caso de um pneu de um camião que se tornava num assassino em série. Na carreira de Dupieux, o artifício tem sido o engenho, e o nonsense tresloucado, a sua moeda de troca. Aqui, a dimensão da bizarria é maior pelo facto de o protagonista ser o oscarizado Jean Dujardin, um dos maiores galãs do cinema francês. É como se essa ideia de casting fosse em si mesmo um programa à parte. E temos um Dujardin sem problemas em gozar abertamente com a sua perceção de superestrela.
No geral, 100% Camurça é provocação pop e súmula de uma ideia de base dos seus filmes: a perda da sanidade. Na véspera da estreia em Portugal em VOD, Quentin Dupieux respondeu a algumas perguntas via mensagem. O cineasta francês começou por confessar que não é fetichista por camurça: “Não sou muito fetichista. O meu problema é que sou um obcecado por coleções. Nem imaginam. Faço coleção de t-shirts azuis. Tenho imensas, mas depois são para aí umas duas ou três de que gosto imenso. As pessoas até pensam que nunca mudo de roupa. Sou muito colecionador.”
Em Cannes, houve quem odiasse e quem venerasse o filme. Essa polarização tem sido aliás uma constante na carreira de Dupieux. Não é de espantar que tenha ganhado um lugar cativo de “ave rara” no panorama do cinema francês. Dupieux agradece: “Gosto do lugar que agora tenho no cinema francês. É como se a indústria tivesse arranjado um cantinho para o meu cinema. Neste momento, deixam-me fazer um filme todos os anos, coisa que é ideal para um tipo como eu, que gosta de trabalhar depressa. Mesmo fazendo filmes tão singulares. não me sinto marginalizado.”
Sobre 100% Camurça, o cineasta tem uma teoria única: “O filme tem a ver com uma pancada de infância. A sensação que este homem apaixonado tem pelo casaco de camurça é a mesma que temos quando aos oito anos ficamos doidos com um brinquedo! Depois, com a câmara que recebe, decide de forma instantânea que é um cineasta! Claro que no fim fica a parecer que estou a fazer um comentário sobre a minha própria arte e um certo cinema, mas a base é amor infantil aos brinquedos. Ao escrever este filme, quis refletir sobre o que significa para um adulto redescobrir a liberdade da infância.” Esse lado de inocência está sempre espelhado nos seus filmes, sobretudo no próximo, que já está rodado, Mandibules, sobre uma mosca gigante que será domesticada por dois amigos. “O meu cinema vive de uma ideia simples. Mal tenho a ideia, vamos lá fazer isso! Mas pretendo sempre fazer o filme de forma brilhante para conquistar quem o vê. Aliás, foi esse o ponto de partida de 100% Camurça, por muito que parecesse completamente de doidos. O truque foi focar-me na obsessão desta personagem. Para o espetador acreditar que tudo aquilo pode ser real, eu também tenho de acreditar no que filmo.”
Moscas gigantes, casacos e pneus psicopatas são o pão nosso de cada dia para Quentin, mas dirigir Jean Dujardin espantou os fãs do cineasta: “Sim, muita gente nem queria acreditar, mas, na prática, foi sobretudo trabalhar com um grande ator. Ser um ator espantoso é mais importante do que aquilo que o nome Jean Dujardin representa. Por muito que ele seja uma estrela, para mim, é um ator talentoso. Mas claro que é divertido convidar alguém muito famoso para entrar no meu pequeno mundo. Por outro lado, trabalhei com George, a personagem. Não tenho a certeza de se cheguei a conhecer o Jean Dujardin! Tenho a certeza de que há uma parte dele que tem a ver com George.”
Rezemos apenas para que Jean Dujardin, se um dia vier a Portugal, não comece a disparar sobre quem esteja com um casado vestido.
100% Camurça é decididamente o filme de culto para este confinamento. Mais um lançamento inédito da coleção Cinema Bold para ser alugado na Filmin e nos videoclubes das operadoras de televisão.