85 anos e 49 filmes depois, Woody Allen não dá sinais de querer parar. A Mariana Oliveira entrevista o realizador a propósito da estreia de Rifkin’s Festival.
Woody Allen é um nome com espaço para muita coisa. A obra de Woody Allen é grande o suficiente para cada um poder ter o seu Woody Allen: o dos primeiros tempos (Take The Money And Run, Bananas), o do final dos anos 70 (Annie Hall, Manhattan), o dos 80 e 90 (Zelig, Radio Days), ou o dos últimos 20 anos (Match Point, Vicky Cristina Barcelona). E, no entanto, não há como não reconhecer um filme de Woody Allen: são as mesmas obsessões, os mesmos temas declinados em vários tempos e noutros contextos, as mesmas personagens neuróticas, depressivas, divertidas, melancólicas, apaixonadas e apaixonantes. Depois de mais de 50 anos a fazer filmes, não é estranho que perguntemos: o que esperar, ainda, de um filme de Woody Allen?
Rifkin’s Festival, o 49º na contagem do realizador, passa-se no Festival de Cinema de San Sebastián. É um regresso de Woody Allen à Europa, que acontece por um misto de vontade e contingência: excomungado pela indústria norte-americana desde que as acusações de abuso sexual da filha Dylan Farrow vieram ganhar novo fôlego na crista da onda #metoo, a carreira de Woody Allen nos Estados Unidos tornou-se praticamente inviável.
Mort Rifkin (Wallace Shawn) é um intelectual nova-iorquino enfadado que acompanha a mulher, assessora de imprensa, ao Festival de San Sebastián, suspeitando do encantamento de Sue por um jovem realizador de cinema atraente e presumido. Segue-se intriga contendo infidelidade, amores paralelos, crises existenciais e uma relação em estilhaços em busca da redenção. Pelo caminho, Woody Allen faz dos sonhos de Mort Rifkin um interlúdio de homenagem aos grandes mestres do cinema clássico: citações cinéfilas que convocam Orson Wells, Bergman, Truffaut, Godard ou Buñuel.
Aos 85 anos, Woody Allen recebeu-nos (à distância) na sala da sua casa. Falou de Rifkin’s Festival e do futuro que lhe sobra.
A entrevista, conduzida pela Mariana Oliveira, foi gravada em dezembro de 2020. Podem escutá-la em versão áudio (no topo da página) ou na transcrição abaixo.
Rifkin’s Festival é um filme sobre um festival de cinema, filmado nesse festival de cinema. Porquê San Sebastián?
Houve umas pessoas em Espanha que disseram que, se eu fizesse um filme lá, eles o financiavam. E eu pensei para comigo: bom, já rodei um filme em Barcelona, e tive uma ótima experiência lá. Já filmei em Oviedo, e adorei. Madrid é demasiado quente no verão… Então lembrei-me: eu já estive no Festival de San Sebastián, e que cidade maravilhosa e encantadora! É um lugar realmente adorável. E já que vou ter de lá passar três meses, com a minha família, esse era um ótimo sítio para se estar. Talvez San Sebastián fosse um bom sítio para fazer um filme. Depois pensei: o que sei eu sobre San Sebastián? Não muito, na verdade. Sabia que tinham ótimos restaurantes, mas não conhecia muito mais além do festival de cinema. Então, fiz um filme sobre um festival de cinema, e pude assim prestar homenagem aos grandes mestres do cinema europeu, que foram uma influência enorme tanto para mim em particular como, em geral, para os realizadores americanos.
É isso que eles são? Esses momentos oníricos, a preto e branco, que citam outros filmes conhecidos, são homenagens?
É uma palavra grande no cinema, há homenagens o tempo todo, homenagens disto e daquilo… Não os pensei dessa forma, mas foi isso que eles acabaram por ser. Estava a tentar contar a história da personagem interpretada pelo Wally Shawn, alguém que ensina cinema, que adora o cinema clássico… É um intelectual, um snob, as suas ideias são muito estratosféricas. E eu consegui, no decorrer do filme, usar esses grandes filmes de forma satírica para dar a entender certos aspetos acerca da personagem do Wally.
O contexto é o da indústria do cinema, com as pessoas e os tiques do meio. Parodiam-se momentos como este, de entrevista, com jornalistas impreparados a questionar os realizadores acerca do sentido da vida. Esse ambiente diverte-o mais do que lhe causa repulsa?
Quando era mais novo, e estava muito entusiasmado com a possibilidade de fazer do cinema o resto da minha vida, os festivais eram uma coisa muito importante. Veneza e Cannes, em particular, eram uma oportunidade para os grandes artistas mostrarem os seus filmes. Os grandes artistas de cinema não eram comerciais. Os filmes comerciais eram populares, estavam em todas as salas e tinham uma grande distribuição. Mas não era fácil para um Fellini, um Vittorio de Sica ou um Antonioni serem vistos. Eles eram imaginativos, inovadores, e não eram populares quando começaram. Então, os festivais mostravam os seus filmes, e era possível ver grandes obras de artes nesses festivais. Com o passar dos anos, os festivais foram ficando cada vez mais comerciais. Mas, originalmente, eram o sítio onde se podia ir para ver os filmes do François Truffaut, do Buñuel ou do Kurosawa… Entretanto os festivais proliferaram, alguns deles são pequenos e desinteressantes, mas muitos ainda mantêm o entusiasmo pelos filmes que havia nos primeiros festivais. E San Sebastián é ainda um festival artístico. Parece que não carregam o fardo de ter de mostrar grandes nomes e superestrelas de cinema.
A mecânica das relações continua a fasciná-lo depois de tantos anos? Continua a encontrar mistério no que acontece quando duas pessoas se apaixonam?
Desde os gregos antigos aos escritores franceses, russos ou espanhóis, as relações vão ser sempre o centro do drama – seja num romance, numa peça de teatro, num filme, na televisão… Haverá sempre amor, romance, infidelidade, intriga, mistério, homicídio… As mesmas coisas sobre as quais os gregos já escreviam. Imaginemos alguém que faz um filme político sobre um assunto social específico – por exemplo, sobre os direitos dos homossexuais. Com o passar dos anos fazem-se progressos, e hoje muitos preconceitos em relação aos homossexuais caíram por terra. Os problemas já não são os mesmos. Filmes sobre temas sociais tornam-se datados, porque entretanto derrubámos esses preconceitos. Mas há certos assuntos que vão estar sempre lá. Um homem vai sempre querer saber se a sua mulher é infiel, uma mulher vai sempre querer saber se o seu marido está com outra mulher. Esse tipo de conflitos vai existir sempre. Questões religiosas, questões existenciais… Isso é o mais interessante para mim.
Sente falta de se ver a si próprio nos seus filmes?
Só se houver um bom papel para mim. Quando escrevo um filme e há um bom papel para mim, faço-o. Porque não? Gosto de representar. Mas, quando se envelhece, há cada vez menos que se possa fazer. Se eu tivesse 35 ou 40 anos, poderia entrar num filme romântico. Mas com 85 não posso fazer os mesmos papéis. Quando escrevo um filme, olho para ele e penso: há alguma coisa para mim aqui?
Rifkin’s Festival é o seu 49º filme. O que vai fazer com o filme 50?
Devia ter feito o número 50 no último verão, estava tudo preparado para ir para Paris… Depois veio o coronavírus, e foi o pesadelo que sabemos pelo mundo inteiro. Talvez no próximo verão o consiga fazer. E vou fazê-lo! Vou para Paris e vou fazê-lo.
Por outro lado, tenho 85 anos e quase 50 filmes feitos. O cinema sofreu uma grande volta em direção à televisão. E eu não sei como me sinto em relação a isso. Tendo feito 50 filmes, será que quero continuar a fazer filmes que sei que vão parar à televisão? Neste momento, um realizador tem direito a três ou quatro semanas no cinema. Mas os cinemas estão todos a fechar nos Estados Unidos… As pessoas gostam de estar em casa com os seus ecrãs e o seu som maravilhoso, de ter um botão, de ver o que lhes apetece com as suas famílias… Não gastam dinheiro em cinco bilhetes, compram um bilhete e a família toda pode ver o filme. Está a tornar-se uma experiência muito diferente. Não sei como me sinto em relação a isso. Talvez faça mais um filme e depois vá trabalhar para o teatro. Se me for dada a possibilidade de continuar a fazer filmes nas circunstâncias certas, talvez continue a fazê-los.
Se pudesse dar um conselho ao jovem realizador de 30 anos que fez Take the Money and Run nos anos 60, o que é que lhe diria?
Dizia-lhe apenas isto: toma decisões unicamente baseadas em escolhas artísticas. Não te deixes seduzir pelo dinheiro, pela fama ou por qualquer outra coisa. Eu tive muita sorte: o meu manager sempre me disse que as decisões deviam ser artísticas. Isto é muito raro num manager. Normalmente, o objetivo deles é fazer com que um artista renda o máximo de dinheiro possível, e aconselham-no a escolher sempre a opção mais lucrativa. O meu não faz isso. Diz-me sempre: “esquece o dinheiro, trabalha como um artista”. Era isso que eu diria aos jovens realizadores de cinema: baseiem as vossas opções em critérios artísticos, mesmo que, na altura, a popularidade, a fama e o dinheiro sejam uma tentação. No fim de contas, vão provavelmente acabar mais ricos e mais famosos se perseguirem apenas a arte pela arte.
O Woody Allen escreve, toca música, faz filmes. Em qual desses momentos criativos é que sente que a ideia que tem na cabeça consegue passar mais fielmente para o objeto criado? Em qual dessas disciplinas é que a diferença entre aquilo que imagina e aquilo que consegue fazer é mais pequena?
Eu adoro escrever. Sento-me na minha cama a escrever, e não tenho de fazer mais nada além de escrever. Não tenho de provar nada. Quando se escreve parece tudo perfeito, tu e as tuas ideias são brilhantes. Mas depois tens de enfrentar o teste da realidade e sair fora do quarto ou do sítio onde escreves. Quando saio para o mundo real e tenho de fazer o filme, é uma experiência completamente diferente, difícil, cheia de decisões, ansiedade, compromissos, erros… Não é fácil.
A arte é melhor do que a vida?
Há muitas coisas que são melhores que a vida. Está a falar com uma espécie de misantropo pessimista. Eu não acho que vida seja um negócio nada agradável. Na verdade, acho que a vida é um negócio péssimo. Os seres humanos são excecionais a conseguir fazer o que fazem apesar das circunstâncias terríveis. Nascer num mundo violento, hostil, sem sentido e sem deus, é uma coisa terrível. É impressionante ver como é que tantas pessoas triunfaram apesar das regras terríveis do jogo da vida.
Definitivamente, acho que a arte é melhor do que a vida, os filmes são melhores do que a vida, o teatro é melhor do que a vida, a música é melhor do que a vida… Todas essas coisas são onde uma realidade alternativa existe. Quando era miúdo e ia ao cinema, e olhava para o ecrã e via como as pessoas viviam, e como elas diziam que a vida era, e como a vida era imaginada, tudo aquilo me parecia credível… Tu não queres deixar aquilo e voltar para a vida real. Queres andar na outra direção, subir para o ecrã, estar numa bonita penthause ou numa casa de campo, conviver com aqueles homens e aquelas mulheres, aquelas personagens coloridas… Mas não podes. Tens de voltar para casa, voltar para a escola, estar com pessoas horríveis, os políticos, os vizinhos, os professores, os patrões… E, eventualmente, o coveiro.