“As famílias felizes são todas iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira”, já dizia o outro, que é Leo Tolstoi, mestre dos mestres no trabalho de pôr palavras, pensamento e vida em página. Os Fat White Family, banda britânica formada por espalha-brasas de espírito punk impoluto e de língua tão afiada quanto o fio da navalha em que insistem em viver, são, feitas as complicadas contas, uma família feliz marcada por momentos vários de infelicidade.
Está-lhes tatuado na vida: os irmãos fundadores, Lias e Nathan Saoudi, têm origem argelina e cresceram a lutar diariamente com racismo endémico (“sand niggers”, chamavam-lhes, como Lias, o vocalista, recorda regularmente). Está-lhes inscrito, também, no percurso percorrido até aqui: cresceram enquanto banda vivendo juntos, todos os sete, num apartamento sobre o pub londrino onde atuavam regularmente, e a música que criavam, agreste e provocatória, era alimentada pelo ódio ao extremismo, à predatória voragem capitalista e à crescente xenofobia, mas também pela vida excessiva que viviam, recheada de álcool, drogaria e a ocasional sessão de pancadaria entre os membros da família. Daí resultaram dois álbuns, Champagne Holocaust e Songs for Our Mothers.
Agora, é tempo de Serfs Up!. O título é adaptado de um clássico dos Beach Boys, “Surf’s Up”, editado em 1971, e o som é o de uma banda transformada. Trocaram a gentrificada Londres das rendas impossíveis por Sheffield, puseram a (maior parte da) drogaria de lado e, todos saudáveis, começaram a frequentar as piscinas e a sauna local. A música manteve o lado negro, uma certa sensação de perigo, mas ouvem-se agora ambientalismos à Brian Eno, sugestões caribenhas, dança funk em câmara lenta num clube subterrâneo. Parece que são agora uma família feliz, mas contradizem Tolstoi. Não são iguais a nenhuma outra.
Mário Lopes é jornalista e crítico musical no Público e fala com Quim Albergaria todas as semanas na Antena 3, em O Disco Disse.