Se é verdade que o mundo está a ver e a discutir o novo filme de Spike Lee na Netflix, importa compreender o que ele andou para ali chegar. Rui Pedro Tendinha olha para o cinema de Lee e revela que a ira e o orgulho já vêm de longe e sempre com génio.
O cinema de Spike Lee sempre fez do ativismo uma arma. Um cineasta militante da causa afro-americana ou um dos grandes cronistas da América racista das últimas décadas. Spike Lee, se quisermos, é um historiador de uma causa social, alguém que foi acompanhando as tensões e os preconceitos raciais de um país onde as convulsões de um passado de escravidão sempre se foram abrindo e cozendo ao mesmo tempo.
Numa altura em que o mundo aguenta o embate do seu novo filme, Da 5 Bloods: Irmãos de Armas, em streaming na Netflix, importa encontrar pistas para um mapa de um percurso que sempre realçou o lema Black Lives Matter (as vidas dos negros importam). Não deixa de ser uma espécie de justiça divina que o filme — assustadoramente atual — tenha chegado nestes tempos de cólera anti-racista…
E, para além de uma temática que ia ao íntimo dos grandes temas sociais de uma comunidade, a câmara de Lee funcionou muitas vezes como uma espécie de academia de modernidade. Ao longo dos anos foi-se depurando e combinou um conjunto de imagens de marca, ou seja, figuras de um estilo muito dele, onde se tornava proibido copiar. Por exemplo, ninguém fez uso das cores saturadas como ele — olhamos para os vermelhos de Oldboy: Velho Amigo (2013) ou para os azuis de A Última Hora (2002) e percebemos que estamos perante um filme de Spike Lee. Uma trade mark que começa também na forma como assina os seus trabalhos: o realizador de Brooklyn impôs aos estúdios que cada um dos seus filmes fosse apelidado de “joint”. Extravagância assumida, tal como o uso de película contrastada com grão, como se o calor de Nova Iorque fosse pegar fogo. Quem se recordar de Verão Escaldante (1999) certamente terá memórias de todo aquele suor.
Depois, há também um desenho quase comum das personagens, heróis e vítimas de quotidianos específicos mas sempre presos a um orgulho racial. Para Lee, é uma afirmação de swag afro-americano. Mas seguramente mais icónico é o movimento marcante de atores a falar para a câmara. Em Da 5 Bloods, o mecanismo tem uma carga de confissão chocante, aquele momento de Delroy Lindo a despedir-se da vida em plena selva do Vietname é já um dos momentos maiores do cinema americano da década, mas é igualmente impossível esquecermos Madonna a mandar vir com a sua câmara em A Rapariga: Código 6 (1996) ou o próprio Lee em tantos dos seus clássicos. Foi também ele quem usou e abusou dos famosos planos em double dolly, isto é, personagens a andar em carris sem mexerem as pernas. Tem piada, é provador e fez maravilhas a momentos introspetivos de filmes como Passadores (1995) ou Não Dês Bronca (1989).
À parte de tudo isso, há cinco filmes que resumem uma ideia de cinema interventivo na defesa para a igualdade afro-americana na sociedade dos EUA.
Não Dês Bronca (1989)
O primeiro filme da ira de Spike Lee. O racismo e a brutalidade policial a antecipar a América de Rodney King e de George Floyd. Lee assumia nessa altura um certo vanguardismo num olhar de contestação e de denúncia ao racismo americano, sobretudo na descrição das tensões num bairro de Nova Iorque num verão quente entre italo-americanos e afro-americanos.
Na altura, funcionou como uma “wake-up call” que teve reflexos sociais profundos, e a colaboração com a música dos Public Enemy resultou ainda melhor para vincar o aspeto de petardo político.
A Febre da Selva (1991)
Se os haters de Lee o acusam de panfletismo cerrado, Jungle Fever é um exemplo de que o seu cinema também pode ter infraestruturas laterais curiosas. Aqui, cruza uma ideia de militância do “orgulho” afro-americano com uma fórmula de comédia/melodrama romântico num cenário de paixão inter-racial quando Wesley Snipes se apaixona por Annabella Sciorra. O preconceito filmado ao som de Stevie Wonder. Aqui, a ira é outra.
Malcolm X (1992)
O filme “necessário” de Spike Lee. Aquele em que o cineasta de Nova Iorque parte para a luta com uma missão épica: dar grandiosidade e sentido ao biopic, neste caso de um dos símbolos da América negra, Malcom X, o líder de uma geração de negros. Sem perder as suas marcas de estilo, Lee faz pela vida para ser didático e lírico num fresco histórico. Uma homenagem a um homem que parece saída de um monumental discurso de comício. Lee está a pregar, e o filme sofre muito com os temas empolados, não faltando a caução da “longa duração” e da carga de prestígio. Malcom X talvez vá ganhar com o tempo, e não há dúvida de que duas décadas depois ninguém ousou fazer um filme com este peso sobre a história de um líder afro-americano. Selma: A Marcha da Liberdade, de Ava DuVernay, não conta… Nem sequer é cinema a sério.
Chi-Raq (2015)
Esta obra nunca exibida comercialmente nos cinemas portugueses foi um regresso à boa forma numa altura em que Lee parecia sem material explosivo. Mas, numa adaptação a uma comédia grega de Aristófanes para os nossos dias, parece conseguir ser socialmente relevante. O filme é uma sátira zangada sobre o flagelo do crime dos gangues negros de Chicago. Violento, palavroso e teatral, Chi-Raq inventa uma linguagem única afro-americana e aborda temas tabus sobre a violência negra, mas nunca deixa de ser genuína e divertidamente “black power”.
Mais do que nunca, é um filme onde Lee mostra ser um mestre a aplicar o som e a fúria da música negra americana. Merece ser descoberto de forma urgente.
BlacKkKlansman: O Infiltrado (2018)
Uma comédia sobre um caso verídico: a história do polícia negro que indiretamente conseguiu infiltrar-se em pleno Ku Klux Klan através de um colega judeu. Ao voltar atrás na História, Lee está também a falar da América de Trump e a denunciar um regime racista. Não só funde ficção com imagens televisivas da atualidade (procedimento que está ainda mais explícito em Da 5 Bloods), como assume uma raiva de denúncia frontal.
Lee venceu o Óscar de melhor argumento, mas BlacKkKlansman é sobretudo uma prova do seu renovado prazer a filmar. Um dos poucos cineastas americanos que mescla discurso político com coolness iconográfica.