Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Death – “Freaking Out”
“Lembra-se da nossa banda, os Death?”, perguntava um dos irmãos à senhora idosa no bairro onde a história acontecera. Lembrava-se pois, respondeu a senhora, entre muitos risos e com as mãos a tapar os ouvidos, forma de dizer que era difícil esquecer a barulheira que para ali se fazia. A velhota lembrava-se muito bem do que nós, os fãs de música, os historiadores, só soubemos muito tempo depois. A cena vê-se em “A Band Called Death”, documentário dedicado à banda que foi punk antes de os Ramones terem nascido e não chegou a ter uma carreira a sério por demasiada integridade.
Três irmãos em Detroit, terra da Motown (e dos Stooges, e dos MC5), perceberam imediatamente o que queriam fazer da vida quando, primeiro, o pai os sentou em frente à televisão para ver o histórico concerto dos Beatles no Ed Sullivan Show. Depois veio um concerto dos The Who e, se dúvidas houvesse, dissiparam-se. Depois disso chegou Alice Cooper e uns discos dos Black Sabbath e aquilo que tinham que fazer tinha que ser feito já e sem perder tempo. Os pais transformaram um quarto em estúdio e David, o guitarrista e líder, Bobby, o baixista e vocalista, e Dannis Hackney, o baterista, meteram mãos ao trabalho.
Numa realidade de tantas divisões sociais como a americana, os Death causavam estranheza. Eram afro-americanos a tocar guitarradas rock catárticas, onde já se sugeria a fúria hardcore – e os Bad Brains e os Living Colour ainda longe. No bairro, tinham os pais a apoiá-los com bonomia e os vizinhos e taparem os ouvidos enquanto esboçavam um sorriso perante a loucura dos miúdos. Mas eles, guiados pela visão de David, que impusera o nome Death e que definira o som da banda, não se intimidaram com nada. Gravaram um álbum, “…For The Whole World To See”, que chegou aos ouvidos do poderoso Clive Davis, da Arista Records. O entusiasmo foi imediato. Preparou-lhes um contrato de 20 mil dólares e impôs uma condição. O nome tinha que ser alterado – ninguém compraria discos de uma banda com aquele nome, ninguém os contrataria para concertos. Nada feito. “Se lhes damos o nome, mais vale darmos-lhes tudo”, sentenciou David.
Independentes, crentes na visão de David, continuaram. Tragicamente, poucos os ouviram. Perderam-se no seu tempo pérolas como “Politicians in my eyes” e seu pára-arranca de groove Thin Lizzy acometido de neurose pós-punk. Perdeu-se no seu tempo “Freaking out”: um grito, “Death!”, um turbilhão sónico de cinco segundos, a canção a anunciar-se num crescendo de energia feroz até ao refrão. Punk? Não havia nome para a coisa e, sem que ninguém o soubesse, os Death já estavam a vivê-lo.
Quando, em 2009, a Drag City reeditou “For The Whole World to See”, os Death pertenciam ao reduto de coleccionadores de raridades e David, o génio incompreendido, morrera nove anos antes, vítima de cancro no pulmão. Os irmãos tocavam então numa banda reggae, os Lambsbread, inspirados por um encontro no passado com Peter Tosh. O mundo redescobria a banda que, sem ninguém o saber, inventara uma pequena revolução punk no quarto de uma casa de Detroit. Tornava-se oficial. David Hackney estivera certo tempo todo.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso