“Favourite Ghost é uma maneira fofinha de chamar os medos por outro nome”
Um projeto que tem o título de uma expressão de desejo. Uma vontade muito grande de chegar a algum lado; de conseguir alguma coisa. Filipe Cunha Monteiro, de 38 anos, já o desejava há muito tempo. Desde a pré-adolescência — aquele período em que ainda era permitido sonhar com um palco gigante montado num estádio diante de plateias frenéticas.
“Tomara que consiga um dia tocar em Wembley”, pensaria o jovem Filipe.
Os anos passaram e a vida meteu-se no caminho, com muito poucos atalhos à mistura. Dedicou-se à realização, com a música a assumir um protagonismo de duas faces. Um hobbie que teimava em não se tornar mais sério e um fantasma que se ia fechando num armário.
Tomara que saia.
Há cinco anos, quando nasceu Carolina — a primeira filha de Filipe Cunha Monteiro — o também realizador decidiu enfrentar os medos. Com a preciosa ajuda da sua mulher, a também cantora e compositora Márcia — “basicamente ela disse-me: ‘Tu tens que fazer o disco. Não tens outra hipótese'” — este primeiro disco a solo de Filipe Cunha Monteiro começou a ganhar corpo e a aparecer as primeiras composições instrumentais. E os medos, o tal fantasma, tornou-se um fiel companheiro.
Favourite Ghost é o nome do primeiro disco de Filipe Cunha Monteiro que neste disco troca o nome por um verbo, “Tomara” — o pretérito mais que perfeito do indicativo da 1ª e/ou 3ª pessoa singular do verbo Tomar — na esperança de que este disco seja a primeira paragem de uma viagem não acabe.
Filipe, és músico e realizador. Mas nesta altura podemos dizer que és mais músico do que realizador.
Vai variando, sim! (risos) Depende. São duas coisas que vou sempre fazendo ao mesmo tempo. Nos últimos seis anos, se dividir o tempo, pode ser “50-50”. Há períodos em que estou a realizar muito mais e outras mais dedicado à música. Nesta altura, sim: sou mais músico.
E Favourite Ghost é o teu primeiro disco.
O primeiro disco a solo, sim.
Por que não assumir o nome de “Filipe Cunha Monteiro” e mudares para um verbo: Tomara?
Acima de tudo é uma questão de pudor. Não sei bem, mas não ia gostar muito de ver um disco com o meu nome. Talvez porque Filipe Cunha Monteiro está mais ligado à minha pessoa, não propriamente enquanto músico, e também muito ligado à realização. Habituei-me muito a lidar com o meu nome enquanto realizador e, de repente, abrir esse novo espaço na música fazia-me sentido que tivesse outra designação qualquer. Daí ter escolhido essa palavra de que gosto muito: Tomara.
É uma palavra que está ligada a uma ideia de desejo.
Sim, é o nome foi a Márcia — a minha esposa (sorri) — que escolheu. É uma palavra de que gosto muito, pelo som. Se for lida em qualquer língua, a sonoridade não difere muito. E acima de tudo é uma palavra de esperança. Uma palavra que aponta mais para o futuro, para o desejo e para o escapismo.
“Favourite Ghost é conseguirmos ser amigos do nosso maior medo: uma forma de o compreendermos, de sabermos que ele está lá. Podemos não conseguir ultrapassar tudo, mas, sabendo os limites, é possível conviver com tudo”
Fazer música e editar um disco era um desejo antigo?
A seguir a ser pai — algo que aconteceu a partir do momento em que assumi que ia fazer o disco — este era o meu maior desejo. Muito antes de ser realizador, era músico. Comecei muito novo. Lançar o disco agora é quase voltar àquele desejo da pré-adolescência (risos).
Então por que seguiste a realização? Tinhas que ter um suposto trabalho mais sério?
O vídeo surge numa sequência lógica… fui estudar design de comunicação para a Faculdade de Belas-Artes, porque era o curso que menos me incomodaria seguir — tirando a música, porque desde pequeno que sonhava com tocar em estádios…
Ainda era fixe pensar em Wembley…
… Havia esse sonho; projetar-me do quarto para o mundo. Depois abateu-se uma certa seriedade. Sei lá, por pressão familiar: a música é sempre um território um bocado complicado de gerir por causa dos pais. Se calhar o design de comunicação foi o menor dos males. Mas quando comecei o curso percebi logo que não era aquilo que queria. Quando pegava na guitarra ou ia para o piano sentia que algo fluía em mim sem grande ponderação ao passo que no design sentia-me sempre preso, com dúvidas.
Foi nessa altura que apareceu a realização?
Sim, no último ano tive a sorte de encontrar dois professores que me marcaram imenso: o Vítor Almeida e o António Nicolas, que me permitiram fazer o quinto ano de design exclusivamente em vídeo e em instalações. Quando descobri a imagem-vídeo, percebi que o meu talento estaria mais ligado à imagem em movimento do que com à imagem fixa. Procurei logo fazer formação em vídeo, fui para Los Angeles estudar pós-produção e trabalhei durante quatro ou cinco anos em publicidade.
“O disco é muito honesto em relação àquilo que eu sou. Para o bem e para o mal”
E onde ficou a música no meio disso tudo?
A música continuou sempre. Só houve um período, durante dois ou três anos, em que não toquei muito. Eu tocava com os Atomic Bees nos anos 1990: lançámos o primeiro disco em 2000 e terminámos logo a seguir (risos). Mas foi um percurso super-importante, porque aprendi aí quase tudo sobre o que é estar em palco. Quando a banda se extinguiu, a Rita [Redshoes] continuou a tocar e eu continuei a acompanhá-la.
Mas como olhavas para a música nessa altura? Como um hobbie?
Ainda há poucos dias pensava nisso: quando comecei a trabalhar em vídeo descobri uma possível profissão — para poder ganhar o meu ordenado — e enquanto tocava com a Rita, ou noutros projetos, era uma forma de nunca largar a música. Não era um hobbie, porque era algo sério, já que participei nos discos da Rita e fazia os concertos. Mas chegou a uma altura em que percebi que era um engodo para mim próprio: adorava tocar ao vivo, participar nos discos era algo que me estimulava imenso, mas não era o que queria fazer… o que queria fazer foi o que comecei a fazer em 2011, quando conheci a Márcia e comecei a tocar com ela. Aí é que consegui ter a motivação necessária para fazer o meu disco.
Que motivação foi essa?
Basicamente ela disse-me: “Tu tens que fazer o disco. Não tens outra hipótese. Se não fizeres isto nunca vais concluir aí qualquer coisa que está por colmatar”.
“A canção ‘For No Reason’ sintetiza esta conversa: saberes que há um vazio em ti que pode ser preenchido se deres um determinado passo. Tu podes decidir não dar esse passo, esconder o fantasma no armário — e acordar a chorar, volta e meia, sem razão. Ou então podes tentar dar o passo, enfrentar, e evitar esse vazio.”
Favourite Ghost (traduzindo: “Fantasma Favorito”) significa que sentiste a música como um fantasma na tua vida?
É uma maneira fofinha de chamar os medos por outro nome. Favourite Ghost vem da canção que dá título ao disco e acabou por ser uma canção que escrevi para a minha filha, a Carolina — que está quase a fazer seis anos. Mas não deixa de ser também para mim próprio: escrevi-a na altura em que ela nasceu, e ainda hoje canto para ela adormecer. É é um recado que lhe dou e que gostaria que ela, daqui a muitos anos, a ouvisse e percebesse o sítio onde o pai dela estava quando a escreveu. É muito direcionada a ela e é sobre aquilo que ela mudou na minha vida. Mas é como se eu estivesse a escrever para mim próprio aquilo que eu gostaria de ter ouvido de alguém quando tinha a idade dela.
Que recado é esse?
Tem a ver com seguir o caminho que nos parece certo e verdadeiro, mas ao mesmo tempo segui-lo sem esperar uma recompensa justa. Praticar o bem é não querer lixar os outros — tão básico como isto. Mas não é fácil conseguir fazer todos os dias aquilo que achas que é o bem, sabendo que, provavelmente, o universo não te vai recompensar. Muito simplesmente porque o mundo não é muito justo.
E isso não leva aos arrependimentos?
Não. Se fizeres as coisas com esse intuito — fazer o bem — torna-se tudo muito mais leve. Mas não é fácil: se há dois caminhos para fazer (um deles é mais verdadeiro para ti e o outro garante-te o sucesso) e tu optas pelo mais difícil, porque é o mais verdadeiro… isso para mim é a escolha certa. O problema é resistires à possível decepção. Também te podes aperceber, mais tarde, que o outro caminho, o da garantia do sucesso, te traria outras coisas. É difícil de explicar, mas nessa canção há um recado para a Carolina — e também para mim — que tem que ver com os medos e que nos acompanham para a vida toda. Favourite Ghost é conseguirmos ser amigos do nosso maior medo: uma forma de o compreendermos, de sabermos que ele está lá. Podemos não conseguir ultrapassar tudo, mas, sabendo os limites, é possível conviver com tudo.
“Eu nunca tive o hábito de escrever e ainda hoje tenho uma relação desconfortável com a escrita. É quase como quando ouvimos a nossa voz pela primeira vez”
Foi por ser um disco em que falas sobre enfrentar medos que trataste estas músicas de uma forma tão delicada e carinhosa? Abraçar os medos e não os despertar?
(Sorri) O disco é muito honesto em relação àquilo que eu sou. Para o bem e para o mal. Demorou muito tempo a acabar porque teve vários períodos de maturação das canções, que até começaram por ser instrumentais. Eu não sei bem do que ando à procura — talvez de algum conforto. Mas a verdade é que a parte mais íntima de mim é delicada e não tenho que ter vergonha de o assumir. Adoro rock, mas quando estou a compor e a tocar, aquilo que mais de genuíno me sai é isto: delicado, pormenorizado, com atenção aos detalhes. O Ricardo Mariano chamou-me “mestre relojoeiro” (risos) e é um bocadinho essa paciência que existe, ainda que haja coisas que são gravadas de rajada e outras que são o oposto.
E não há que ter vergonha da delicadeza quando dá para fazer canções como estas.
Acho que tem muito que ver com a voz.
Quando é que descobriste esta tua voz?
Sempre foi uma coisa que me causou muito pudor — e daí eu começar a fazer música instrumental. Eu também nunca tive o hábito de escrever e ainda hoje tenho uma relação desconfortável com a escrita. É quase como quando ouvimos a nossa voz pela primeira vez.
A escrita também é um fantasma?
Não um fantasma, mas um bloqueio. A voz era uma coisa que me fazia imensa confusão e foi o obstáculo mais difícil de ultrapassar. Foi um processo longo. A única canção que tinha a letra era a mais antiga, chamada “House” — em que também participa a Márcia. Sempre foi um tema de lamento/desejo, uma canção para algo que gostava de alcançar, mas que me causa algum desalento. Quando a gravei, a minha vida estava no sítio oposto… hoje canto-a como uma canção de reconhecimento de onde estou agora, da casa que tenho, da mulher que tenho e dos filhos que tenho.
E há coisas que não podem ser cantadas por outros: têm que ter a nossa voz.
Tinha que ser eu. Quando comecei a imaginar que haveria canções cantadas no disco, pensei em chamar várias pessoas para o fazer, porque não tinha nem coragem ou talento. É algo que quero fazer no futuro, porque não quero que o projeto dependa só da minha voz. Eu também não me sinto um cantor — nem o sou. Só que as coisas tornaram-se complicadas: era tudo tão pessoal que não me fazia sentido ter outra pessoa a cantar aquelas palavras.
Para a tua filha tens que ser tu a cantar. Não pode ser mais ninguém.
Aí teria que ser (risos). E a canção que canto com a Márcia também. No final de contas fico contente de ter conseguido dar esse passo e ter ultrapassado esse medo. Se ouvisse agora estas canções interpretadas por outra pessoa, ia ficar muito feliz, mas iria sentir que tinha ficado um passo por dar.
“Hoje ainda sinto estas canções em inglês, mas não deixo de sentir a importância se elas fossem em português. É claro que hoje quando fazes uma canção ela pode ser ouvida em todo o lado, mas quanto mais globais estamos, mais local eu me sinto”
O nome do projeto é em português: Tomara. Mas a expressão é em inglês. Porquê?
Eu pensei imenso nisto e nos últimos cinco anos a minha opinião sobre a música cantada em português alterou-se em tudo. Hoje ainda sinto estas canções em inglês, mas não deixo de sentir a importância se elas fossem em português. É claro que hoje quando fazes uma canção ela pode ser ouvida em todo o lado, mas quanto mais globais estamos, mais local eu me sinto. Mais vontade tenho de falar para o meu país e para as minhas pessoas. A língua tem o efeito de âncora e adoraria introduzir o português em próximos discos, mas não sei se tenho coragem de o cantar…
É mais um fantasma para combater no futuro?
Mas esse é violento (risos). É um dos maiores.
Tens de te amigar primeiro desse fantasma.
Sim, ir beber um copo. Perceber o que aconteceu nos últimos 38 anos. Cantar é difícil. Escrever em português até poderia pedir, já que tenho tantas pessoas que escrevem incrivelmente bem…
“Para o disco chegar a bom porto teve que haver um acordo tácito entre as várias partes! E daqui a 20 anos, quando ouvir o disco, não vou sentir vergonha nenhuma do que está aí gravado”
Além da Márcia, és muito amigo do Samuel Úria.
Ele é nosso padrinho de casamento e uma das minhas pessoas preferidas neste meio todo. Ele teve para ser um dos convidados do disco para tocar — e cantar — mas à última da hora tive pudor porque achava que estava a fazer o primeiro disco e não queria estar a pôr-me em biquinhos de pés… sei lá… foi uma coisa meio parva, porque olho para trás e acho que tive demasiados pudores em relação a envolver outras pessoas neste processo.
Nós estamos a chamar fantasmas aos medos. E ao ter esta conversa contigo fico a sensação que existe entre ti e os teus medos uma espécie de acordo diplomático entre vocês: tu cedeste de um lado e eles cederam do outro e chegaram a um entendimento.
(Sorri) Sim, é uma relação pacífica, porque não consigo escrever ou compor se estiver no meio de uma crise ou num pico de felicidade. Quando estou consumido não é a minha música que me vai salvar: quanto muito é a música dos outros. E aí sim, já fui salvo de fossas muitas vezes pela música dos outros. É como se fosse o feiticeiro que não consegue usar a magia em seu próprio favor. Para o disco chegar a bom porto teve que haver um acordo tácito entre as várias partes! E daqui a 20 anos,quando ouvir o disco, não vou sentir vergonha nenhuma do que está aí gravado.
Tomara que sim.
Tomara!
Entrevista: Bruno Martins