Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Gang Of Four – At Home He’s A Tourist
Eles não estavam propriamente a esconder o que quer que fosse. Baptizaram-se com uma referência explícita ao “Bando dos Quatro”, o grupo mais radical durante a Revolução Cultural chinesa. Já a capa e o título do primeiro álbum, “Entertainment!”, mostravam a influência da Internacional Situacionista e da acção estética e política do Maio de 1968. Nela, na capa, um índio e um cowboy apertavam as mãos. Na legenda, líamos: “O índio sorri, ele acredita que o cowboy é seu amigo. O cowboy sorri, ele está feliz porque o índio foi enganado. Agora, ele pode explorá-lo”.
Nós, os que ouvíamos, nós, os que estávamos do lado de cá, desligados das hierarquias de poder, éramos os índios. Eles, os Gang of Four, nascidos em Leeds, Inglaterra, em 1977, também eram peles vermelhas como nós, mas sabiam muito bem como se fazerem ouvir e queriam que despertássemos – eles queriam mesmo muito que despertássemos.
Os Gang Of Four nasceram no ano em que o punk explodiu e são resultado dessa explosão. Foram, em todos os sentidos, uma banda de acção política. E foram, felizmente, uma banda que recusou seguir o caminho mais fácil. Os Sex Pistols e os que lhes seguiram rapidamente no encalço, já tinham tratado de recuperar o cadáver moribundo do rock’n’roll e de lhe dar nova vida. Se isso já estava feito, os Gang Of Four não poderiam ser apenas mais uma voz a reunir-se ao coro – não é assim que se faz implodir a sociedade do espectáculo, como bem sabiam os ideólogos da banda, o guitarrista e vocalista Andy Gill e o vocalista e ocasional tocador de melódica Jon King.
O ataque dos Gang Of Four far-se-ia bem no coração do hedonismo (supostamente) apolítico. Em frente para a pista de dança, e sem contemplações.
As guitarras eram metálicas e cortantes, a voz seca debitava versos como palavras de ordem repleta s de ambiguidade, enquanto a bateria de Hugo Burnham desenhava padrões rítmicos mecânicos e o baixo de Dave Allen, arma preciosa, arma poderosa, revolvia o funk e o dub e agitava-os até se transformarem numa outra coisa, ainda tremendamente física, mas com algo de agressivo, de ameaçador, de inquietante.
A revolução cultural dos Gang of Four começou com um single, “Damaged goods”, que os transformou em preferidos de John Peel e lhes abriu as portas de uma multinacional, a EMI. Se o objectivo era amplificar a mensagem, não havia nada de errado em aproveitarem-se dos meios de produção capitalistas para o fazerem.
Chegou então, em 1979, “Entertainment”, um dos mais emblemáticos e influentes álbuns da história do punk, verdadeiro tratado de invenção musical e de intervenção política em formato canção.
“Entertainment” eram pessoas alienadas a olhar para a televisão, era o prazer ilusório que a cultura de massas vende a todos para que todos se mantenham consumidores passivos, muito quietinhos, e, ao mesmo tempo, era um par de lambadas bem dadas no conforto alienado da sociedade consumista. “At home she’s looking for interest / she said she was ambitious / so she accepts the process”, cantavam eles em “At home he’s a tourist”, cantavam eles na canção cujo início se tem ouvido, semana após semana, na abertura desta nossa viagem pelo punk.
40 anos depois, o punk continua experiência que inspira e frutifica. 40 anos depois, o groove dos Gang Of Four continua a ser lição activista e fogo na pista de dança. 40 anos depois, seremos ainda turistas em casa?
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso