“Hoje faço rap porque gosto e porque me sinto bem a fazê-lo”
Blasph não dá ponto sem nó: veio à Antena 3 todo grifado e perfumado para uma conversa honesta sobre Stracciatella & Braggadocio, a sua mais recente edição que aparece dois anos depois de O Processo, disco feito a meias com Beware Jack.
A estreia a solo, em discos, aconteceu em 2013, quando editou Frankie Dilúvio Vol.1. Blasph, Frankie… são a mesma pessoa. Mas há muitas mais personagens sem nome no rap de Frankie, que carrega o orgulho da Margem Sul no peito e no storytelling das suas rimas. Mas nunca houve tanto de Fábio como há em Stracciatella & Braggadocio. Sem perder o registo das histórias de Almada, de sobrevivente e de hustler, este é o trabalho mais pessoal do rapper, com frustrações à mistura – as próprias de alguém que sonhou, que fez, que viu o tempo a passar, mas não viu muitos dos projetos ganharem forma. “Precisava de falar de mim. Era uma coisa que já tinha feito, mas até agora era um bocado vago. Se calhar consegui chegar agora onde queria, também com mais maturidade.”
Maturidade, bom senso e uma grande dose de realidade – sempre. Eis mais três sabores neste “rajá” servido por Blasph.
Nem sei como é que hei-de tratar-te… por Blasph ou por Frankie Dilúvio?
Mano, é como preferires. Podes tratar-me por Blasph, já que é para falar do disco.
Existe muita diferença entre o Frankie e o Blasph?
São “AKAs” que eu tenho. Blasph foi o primeiro, que vem de “Blasfémia”. Depois surgiu o Frankie Dilúvio, mas eu uso os dois.
Mas neste novo Stracciatella & Braggadocio optaste por usar o nome Blasph.
Mas olha que na capa do disco nem vem a dizer Blasph. A capa é só um gelado, nem vem com o título nem nada. Eu pedi ao Chico [Chikolaev], que faz a parte gráfica, para não ter o nome.
Mas quem quiser ouvir o disco por via de plataformas digitais vai chegar lá numa pesquisa por “Blasph”. A tua última edição foi há dois anos – O Processo, num trabalho colaborativo com o Beware Jack. Os temas deste Stracciatella & Braggadocio estão a ser criados desde essa altura?
Nessa altura já devia ter metade das músicas feitas. Há músicas que já têm uns três ou quatro anos.
“Consigo chegar aos produtores que quero, apesar de também ser abordado por alguns. Mas eu também não ando à procura do produtor mais badalado, mas sim daqueles que metem mais sentimentos e que me conseguem tocar”
Escrever rimas é um processo contínuo? És daqueles artistas que andam com um caderno de apontamentos?
Não, não… Para mim, primeiro que tudo, tem que surgir o beat certo. Eu sou um bocado esquisito em relação aos beats. Não sou aquele MC que está sempre a escrever: tem que haver um beat e tem que mexe comigo. Até pode ser do YouTube, de um outro MC… mas tem que mexer comigo. Até pode ser um filme! Ou uma conversa na rua. Não sou aquele gajo trabalhador, que está sempre a escrever. Também porque as minhas ambições, hoje em dia, enquanto rapper, não são as mesmas que tinha há uns anos. Hoje faço rap porque gosto e porque me sinto bem a fazê-lo. Não consigo passar sem isto… até posso estar uns anos sem fazer rimas, só na minha vidinha… mas entretanto acho que vai haver um clique qualquer nesse tempo que estiver parado.
Que ambições tinhas?
Eu gostava de fazer isto vida: de viver da música. Hoje em dia, com o panorama atual, acho que não me encaixo, mesmo sabendo que tenho seguidores.
Mas é interessante pensares dessa forma, sobretudo numa altura em que as oportunidades na música são cada vez maiores, em que cada um pode decidir as regras do jogo.
Concordo, mas eu na minha cabeça já não espero muito. Eu vou continuar a fazer como gosto de fazer e se surgir uma oportunidade de poder fazer isto da maneira que eu quero, claro que vou agarrar. Mas sem a ilusão que tinha de chegar onde, se calhar, nunca vou chegar.
Há alguma frustração?
Claro que sim. Mas existe frustração face à forma como as pessoas vêem a música hoje em dia. Quando comecei não era assim, apesar de não ser um gajo que já faz isto há 20 anos – o tempo passa rápido… Eu comecei a escrever rimas com os meus 14 ou 15 anos, ou melhor: a interessar-me pela escrita.
Dizes no tema “Fardo”: Desde o meu sétimo, que eu escrevo”.
Exatamente. Comecei a escrever rimas, mas nada elaborado. Só aos 17 ou 18, quando gravei a minha música, é que comecei a ganhar outro gosto. Até porque ouvi, nessa altura, a minha voz ao microfone. Hoje já tenho alguns anos disto, houve um amadurecimento natural. Eu só quero é fazer a música que me faça sentir bem, que eu gosto de ouvir. E ver que as pessoas conseguem perceber o meu ponto de vista – isso é muito importante para mim, porque há muita gente que não percebe a música.
Já vamos tentar perceber o que queres dizer com os teus discos e com as tuas letras. Neste mundo do hip hop em Portugal, a idade não é um posto, mas ajuda muito ser alguém com muita experiência. Permite que chegues a muitos produtores, que chegues aos beats que queres. É assim?
Sim, consigo chegar aos produtores que quero, apesar de também ser abordado por alguns. Mas eu também não ando à procura do produtor mais badalado, mas sim daqueles que metem mais sentimentos e que me conseguem tocar, ’tás a ver? Mas para mim sempre tive a sorte de trabalhar com os melhores produtores.
“Precisava de falar de mim. Era uma coisa que já tinha feito, mas até agora era um bocado vago. Se calhar consegui chegar agora onde queria, também com mais maturidade”
Costumas dar direções para o beat que queres ou recebes um “pacote” de beats dos quais vais escolher?
Pedir pacotes de beats é algo que faço cada vez menos. Porque hoje posso gostar de um beat, amanhã já não gostar e depois voltar a gostar. Não sei se é assim com toda a gente, mas é uma relação estranha que até tenho dificuldade em explicar.
Para este disco o que é que estavas à procura? Que ambientes querias para este disco?
Eu tive que alterar alguns beats…. problemas… vou-te dizer: um dos beats que me foi dado, já tinha sido utilizado por outro MC. Eu escrevi a música, gravei… e até fiz um videoclipe! Só depois é que soube que já tinha sido utilizado. Foi uma aventura do caraças: passei o a capella deste tema, o “Juros”, a outros produtores e acabou por ser o Stereossauro a fazer um beat e a mudar, por completo, o ambiente da música. Passou de um boom bap 90’s para um trap a abrir. Foi engraçado, mas fiquei atrapalhado.
O “Juros” foi o primeiro avanço deste disco. E fiquei surpreso quando ouvi esse primeiro tema que te levou a um género que não me lembro de te ver visitar: o trap.
Epá, eu gosto muito de boom bap, mas também gosto muito de trap. Apesar de não ser o meu estilo. Mas eu faço tudo! Eu cresci com o boom bap, o trap surgiu mais recentemente, mas também adoro. Apesar de muita gente criticar por se cantar da mesma maneira, acho que o fazem por terem limitações.
Ou são preguiçosos?
Exatamente. Eu até tive essa conversa com o Sam [The Kid] no Três Pancadas: cantei em beats traps, mas não precisei de mudar o flow. É algo que podes continuar a fazer, mas mas é preciso ter skills (sorri). Se tiveres o teu flavour não precisas de cantar como toda a gente canta.
Estávamos a falar dos ambientes deste disco, que arranca com um beat do dB.
Sim, que tem um ambiente um bocado dramático. Eu gosto muito de cenas assim e acho que consegui que, num todo, se pareça dramático. O dramatismo também obriga a ter atenção ao conteúdo e as letras também são assim. Isso torna-o, creio, no meu projeto mais pessoal.
Porquê um disco tão pessoal?
Porque precisava de falar de mim. Era uma coisa que já tinha feito, mas até agora era um bocado vago. Se calhar consegui chegar agora onde queria, também com mais maturidade.
“Estou um bocado mais crescido, não tenho problemas de falar de mim. E necessito que as pessoas conheçam um pouco da minha história. Isso é explícito no “Incandescente” e no “Botões”. Se tiveres atento há lá muita coisa por que passei. Muito da minha vida”
Há pouco dizias que as pessoas, às vezes, não percebem o que queres dizer com as tuas letras.
Sim, muita gente não percebe. Talvez porque eu gosto de usar o slang [calão], as metáforas, os duplos sentidos, mas também há muita gente que chega. E fico muito contente quando o pessoal vem ter comigo e começa a descortinar as rimas. Alguns não é bem o que eu queria dizer, mas também encontram um sentido! E gosto muito dessa aproximação com o ouvinte, que tenta mostrar-me até onde a cabeça dele o levou. Até pode não ser ao sítio onde eu queria, ou que imaginei, mas acaba por faz sentido por outro lado.
Não é preciso ser completamente explícito?
Eu acho que consigo misturar um pouco dos dois: ser explícito e usar metáforas. Às vezes até na mesma rima consigo fazer isso.
Dizes que este é um disco mais pessoal e acho que dá para sentir isso. Em discos anteriores – tanto em Frankie Dilúvio Vol.1 e n’O Processo tu fazes algo que eu gosto muito que é a construção de personagens. E neste aqui não sinto que haja tantas personagens à volta do disco. Pareces mais tu a falar de ti.
Bem visto. Mas eu faço uma cena que é: na mesma música encarno várias personagens. Tanto falo como narrador, como falo da pessoa em quem me inspiro para fazer aquela música… há ali vários pontos de vista. Talvez até seja confuso para o ouvinte, mas na minha cabeça faz todo o sentido ser o narrador, ser personagem… estar em várias frentes!
No meio desses enredos, das múltiplas camadas, tiveste a vontade de falar mais de ti.
Tem a ver com a segurança, com o à vontade que eu tenho de falar de mim. Estou um bocado mais crescido, não tenho problemas de falar de mim. E necessito que as pessoas conheçam um pouco da minha história. Isso é explícito no “Incandescente” e no “Botões”. Se tiveres atento há lá muita coisa por que passei. Muito da minha vida.
A talho de foice, pergunto: está previsto haver mais discos com o Beware Jack?
Neste momento ainda não nos reunimos para falar disso. Ele também está a fazer as coisas dele e é um gajo super-ativo. Acaba um álbum e começa logo outro. Eu preciso de respirar, de ter motivos, de ter coisas para falar. Mas isto nunca acaba!
Já sabemos da colaboração com o Stereossauro. Queres apresentar-nos quem é que trabalhou mais contigo neste disco?
Nas vozes temos o Stix, um MC da Margem Sul, já old-school, que participa no tema “Eu Jogo”, produzido pelo Syn – que já tinha produzido malhas do primeiro disco. O Stix tem um estilo muito diferente… lá está: tem o flavour dele…
Também com algum dramatismo na voz.
Sim, ele tem qualquer coisa na voz que mais ninguém tem. O MLk também aparece no disco, que aparece no “Discutir o Preço” como Mau Aluno – outro AKA dele – com um beat do John Miller. O John Miller é um produtor do Norte que produziu duas faixas. Nos beats tenho então o dB, no “Fardo”; o KESO no “Incandescente”; o Nerve, que produz e tem um host no “Apanha Game”. E acho que já está tudo! Ainda a propósito do dramatismo: a maior parte dos que aparecem no disco são produtores do Norte. Acho que eles já têm esse drama na música deles.
Isso foi algo premeditado?
Não tinha ainda pensado nisso, mas acho que acabam por trazer o cinzento do rap do Norte. Isso ajudou-me a chegar onde queria.
“A Margem Sul marca-me muito. O próprio território marca muito. Eu absorvo muito as pessoas, os maneirismos, a forma de falar. E na hora de fazer música vem tudo ao de cima”
O KESO e o Nerve já são amigos teus há muito tempo, não é?
Do Nerve já sou amigo há mais de dez anos. Andei com ele a dar concertos, participei no Eu Não Das Palavras Troco a Ordem. O KESO conheço há menos tempo, mas também já lá vão uns anos. Já éramos para ter trabalhado, porque já tinha enviado um beat que não cheguei a usar. Numa das minhas idas ao Porto estive com ele e disse-lhe que queria ter a voz dele no disco. A coisa não aconteceu assim, mas ele disse que ia fazer um beat para mim – e o beat tocou-me. É com o “Incandescente” que mais me identifico. Foi na mouche.
Como é que vai ser apresentar um disco tão pessoal, com as inseguranças e frustrações do Blasph, diante de plateias?
Eu acho que vai ser diferente – até porque nunca toquei este álbum. Mas acho que vou gostar de transmitir essa parte pessoal. Não vai ser só o ego-trip e a punchline. Vai ser bonito.
Já tens datas marcadas?
Sim, tenho dia 1 de fevereiro no Lux, nas noites C.R.E.A.M. do DJ Glue. Depois não tenho mais nada confirmado, mas gostava de fazer algo no Porto e na Margem Sul…
Em casa, não é? A Margem Sul também está presente nas tuas histórias, na tua música?
Completamente. A Margem Sul marca-me muito. O próprio território marca muito. Eu absorvo muito as pessoas, os maneirismos, a forma de falar. E na hora de fazer música vem tudo ao de cima.
O dramatismo que puseste no disco também vem dessa vida de bairro?
Não só de bairro. É o respirar. Eu tenho uma música com o Sanryse, no Frankie Dilúvio Vol.1, que diz: “Eu inspiro-me naquilo que respiro”. A Margem Sul, para mim, é uma grande influência, também por todos os MCs que surgiram naquela golden era portuguesa.
E há pouco tempo fizeste um tema com o TNT que é uma dedicatória à Margem Sul.
Sim, o “MS Pride“. Fiz o refrão; o vídeo é engraçado. Conseguimos fazer ali um hino, apesar de a Margem Sul ter muitos hinos e nenhum ser oficial.
Qual devia ser?
O “Rhymeshit Que Abala”, do Chullage!
Gostava que me falasses da bela capa deste teu disco, que é da autoria do Chikolaev. O que é que aqui vemos? O que é que pediste ao Chikolaev?
“Stracciatella” é um sabor de que eu gosto também. O “Braggadocio” é um tipo de rap que eu faço. E eu misturei os dois! Deu um novo sabor, roxo com umas pepitas de ouro (risos). Mas aquilo é mais do que aparenta: vês um gelado todo bonitinho, mas no final aparece todo esborrachado. Talvez seja essa a minha frustração.
Como é que tens combatido essa frustração?
Neste momento já é passado. Já ficou lá para trás. Eu acho que é seguir a vida, continuar a fazer música e sentires-te feliz. Quando deixar de me sentir feliz a fazer música, vou para a pesca ou outra coisa qualquer (risos). Mas, mais do que nunca, estou a divertir-me! Porque já não tenho pressão.
Entrevista: Bruno Martins | Fotografia: Ana-lógica