por Paula Guerra
O ano de 1976 foi um ano em grande para os Sex Pistols mas também o momento de formação e desenvolvimento de outros grupos que vieram a desempenhar um papel significativo para o movimento punk que então emergia. É nessa altura que Bernie Rhodes – produtor, manager, designer também ligado à emergência dos Sex Pistols – funda e explora uma outra dimensão do punk contribuindo para a origem dos Clash; Howard Devoto e Pete Shelley, que após uma viagem para ver os Pistols, formam os Buzzcocks; e os Damned se lançam numa carreira de cabaré punk. A semente que McLaren e os Pistols lançaram começava, portanto, a germinar na Grã-Bretanha (Colegrave & Sullivan, 2002). Existe realmente uma questão política por detrás dos Clash. Se os Sex Pistols estão associados a uma visão anarquista, com uma analogia ao caos e à ausência de perspetivas face ao futuro – “No Future” – os Clash, associam-se a um “protesto primitivo socialista” (Morris In Faulk & Harrison, 2014: 82), cujas letras – mais concretamente das canções White Riot e Career Opportunities – aludem a uma consciência de classe e têm atenção aos problemas da juventude britânica. Isto levou a que os Clash fossem tomados como um símbolo da revolução, com as suas canções a servirem de banda sonora para revoluções iminentes. Apesar disso, a banda considerava-se politicamente aberta, referindo apenas ser contra o fascismo, a violência e o racismo.
Certo é que a visão do punk como “dole queue rock” – música com um caráter contestatário – foi fortificada com o aparecimento dos Clash, cujas letras fazem referência a episódios de um país em crise, estabelecendo assim uma ponte política entre a música popular e as experiências de vida quotidianas. O reportório da banda, num primeiro momento, contesta o desemprego juvenil e, num segundo momento, demarca uma posição contra o racismo – estabelecendo uma ponte entre o punk e o reggae – dois géneros com capacidades ao nível da expressão da revolta cultural como reiterou Joe Strummer. Strummer que, no início dos anos 1970, estudou na London Central School of Art and Design e teve um tutor trotskista, assumiu que o punk pode arrogar-se como uma poderosa ferramenta de mudança de mentalidades e de vidas. Mais tarde, Strummer alerta para as limitações da visão do punk como uma arma política, pois, na sua perspetiva, os impactos em termos da mudança política foram medíocres.
Chuck Berry is dead. The Clash are alive.
Seria impossível situar e compreender o surgimento de um género musical como o punk sem levar em conta as condições sociais verificadas, em Inglaterra, na década de 1970. Efetivamente, nessa altura, a Inglaterra estava numa profunda recessão, marcada por uma inflação galopante, pelo desemprego em massa, pelas greves generalizadas – desde os mineiros até aos coveiros –, pelas tensões raciais e pelo crescente espaço para ideologias extremistas, como as partilhadas pelo National Front. Aliado a isto, existia um esvaziamento, por parte do rock’n’roll, no que toca à crítica da situação social. Os Clash entraram explosivamente na cena rock com Joe Strummer a cantar “No Elvis, Beatles or Rolling Stones in 1977”, enquanto ostentava nas suas roupas a mensagem “Chuck Berry is dead”. Como referiu Greil Marcus (2000): se os Sex Pistols estavam destinados a destruir o rock’n’roll, não só como um mito, mas também como um facto, os Clash estavam destinados a mudar o rock’n’roll, a assumi-lo, para se tornarem na Banda Número Um no Mundo.
Os Clash e Joe Strummer são reconhecidos como uma banda e uma figura que representam a essência do rock’n’roll, com um grande papel na construção da história deste género musical. Isto é essencial para os fãs da banda, que rapidamente também começaram a criar bandas rock, sob a influência dos Clash. A performance dos Clash era verdadeiramente inspiradora e autêntica, o que leva muitos a referirem uma mudança que foi despoletada pela banda, quer na cena rock, quer nas suas vidas: “esta foi uma experiência que mudou a minha vida” – diz Tom Morello (In Faulk & Harrison, 2014: 27). Strummer, quando questionado sobre a definição do rock’n’roll enfatiza a questão emocional que lhe está inerente – está associado a uma mudança de vida –, mais do que as questões relacionadas com o som ou com o estilo, é, pois, um género musical com efeitos naqueles que o ouvem.
The Clash: A única banda que interessa ou a banda que “matou” o punk.
Estamos a falar de uma banda que teve um início de carreira fulgurante. Após assistir a um concerto dos Sex Pistols, Mick Jones — apoiado por Bernie Rhodes — decide formar uma banda, cuja memória subsiste — apesar de várias mudanças— em torno de quatro membros emblemáticos: Joe Strummer, na voz; Mick Jones, na guitarra; Paul Simonon, no baixo; e Nicky “Topper” Headon, na bateria. Embora oriundos de famílias de classe média baixa britânica, os quatro membros da banda apresentam passados diferentes: Jones e Simonon provêm de famílias desestruturadas, enquanto “Topper” Headon provém de um ambiente familiar estável; Strummer, filho de um funcionário de baixa patente da embaixada inglesa na Turquia, enviado aos nove anos para um colégio interno fora de Londres, teve significativas dificuldades em inserir-se nesse meio, uma vez que não se identificava com os alunos mais ricos, acabando por abandonar o colégio para trabalhar numa fábrica e vindo, mais tarde, após o suicídio do irmão, a abandonar este emprego e a integrar uma banda pub-rock (Bindas, 1993).
A 4 de julho de 1976, os Clash estreavam-se na primeira parte de um concerto dos Sex Pistols, em Sheffield. Estiveram também presentes no mítico 100 Club Punk Special, dois dias de música punk na sala de concertos 100 Club (um evento tão mítico que se todas as pessoas que dizem ter estado presentes tivessem estado de facto lá, ocupariam no mínimo três 100 Club!). Nesta altura já o punk era um fenómeno musical, com as várias editoras majors a procurarem desesperadamente pelo próximo sucesso. Só desta forma se explica que a CBS, em 25 de janeiro de 1977, tenha assinado um contrato de 100 mil libras com os Clash —uma banda com poucos meses de atividade e poucos concertos dados. Mas como conciliar isto com as posições políticas da banda? Com o epíteto de “Thinking Man’s Yobs” cunhado pelo New Musical Express? Para Mark Perry — fundador do fanzine Sniffin’ Glue — o punk morreu a 25 de janeiro de 1977.
A banda, ao longo de toda a sua carreira, caminhou em gelo para conseguir explicar aquela decisão. E não só por palavras, mas também por ações, tais como a venda abaixo do preço de mercado de álbuns como London Calling e Sandinista!. A verdade é que a banda, assim como muitas outras, não estava preparada para lidar com as editoras, tal como posteriormente gritaram em Complete Control — “They said, we’d be artistically free/When we signed that bit of paper” — ou quando Joe Strummer confessou a Jon Savage (2002: 156): “Estávamos completamente no escuro. Nós deixamos o Bernie lidar com tudo. Nós éramos realmente as pessoas que deveríamos ser. O que nós sabíamos sobre gravadoras e contratos?”.
Contudo, e deixando de lado esta eterna discussão de se terem vendido ou não, o facto é que os Clash levaram o punk para outro rumo: direcionaram toda a raiva sentida em Inglaterra para as suas letras, mais elaboradas e politizadas, que rapidamente se tornaram músicas de protesto contra a situação social do país (situação ainda mais premente quando Margaret Thatcher, que representava o oposto do que os punks defendiam, subiu ao poder em 1979). Procuravam que as suas músicas despoletassem uma ação coletiva, baseada numa ética do-it-yourself (DIY), uma vez que acreditavam que o futuro em Inglaterra – como Johnny Rotten, dos Sex Pistols, cantava – estava nas mãos das pessoas.
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Biografia da banda The Clash, da autoria de Fernando Matos e publicado na revista Música&Som em 1986
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Tal como diziam na sua célebre música, “London Calling”, “Come out of the cupboard, you boys and girls / London calling, now don’t look to us”. Kenneth Partridge, na Billboard, afirmava perentoriamente que os Clash não queriam anarquia, mas sim progresso. Face a uma sociedade verdadeiramente materialista, em que as pessoas pouco controlo tinham sobre o seu futuro, os Clash surgiam como o único grupo musical capaz de “fazer a diferença” (Bindas, 1993). O papel da banda atingia, sem dúvida, o domínio político quando a sua música se tornou numa forma de combate contra a tirania e repressão, despoletando a revolta e a procura por justiça social (Ahern, 2012). Os Clash acabam por representar manifestamente a juventude londrina de então: conhecedora da vida da rua mas com ambições artísticas; politicamente empenhada; com uma visão da realidade da cidade multicultural dos anos 1970, negra, caribenha, asiática e com vontade de fazer a sua música, diferente da que ouviam na rádio oficial. Os sons que saíram dos Clash eram visceralmente urbanos. Nada havia aqui da rusticidade do folk rock ou da espacialidade alucinogénia dos progressivos. Logo desde o primeiro álbum (“The Clash”, 1977), começaram a incorporar elementos da Londres negra — reggae, ska, two-tone — sendo a incorporação da música “Police and Thieves”, de Junior Marvin, um claro exemplo disso.
A fusão perfeita seria feita em “London Calling”; os temas que tratavam — desemprego; as débeis “oportunidades de carreira”; os conflitos raciais; as rusgas a quem era ou se comportava de modo diferente; a vida noturna; a perda do último metro — constituíam-se emblematicamente paradigmáticos da realidade retratada. Cantando sobre a sua cidade, os seus habitantes, os seus jovens, e sobre temas que a quase todos tocavam, ou vieram a tocar, os Clash viriam a ultrapassar o gueto do punk, ascendendo ao posto de “banda de Londres”. “London Calling” é o tema conhecido e amado pelos londrinos, mesmo os que aí não se reconhecem musical ou geracionalmente, constituindo-se como um hino de unidade à volta de Londres (Monchique, 2004).
Excerto da canção “London Calling” (1979), dos Clash
London calling to the faraway towns Now war is declared and battle come down London calling to the underworld Come out of the cupboard, you boys and girls London calling, now don't look to us Phony Beatlemania has bitten the dust London calling, see we ain't got no swing 'Cept for the ring of that truncheon thing The ice age is coming, the sun is zooming in Meltdown expected, the wheat is growin' thin Engines stop running, but I have no fear ' Cause London is drowning, and I, I live by the river The Clash - London Calling (Official Video)
As posições políticas dos Clash colocaram-nos por vezes em situações delicadas. Por exemplo, a música “White Riot”, uma resposta aos motins do Carnaval de Notting Hill, em 1976 (em que Joe Strummer e Paul Simonon estiveram envolvidos, fracassando na sua tentativa de incendiar um carro; e, por isso, decidiram incendiar a situação através da música), foi, acredite-se ou não, entendida por alguns como uma música racista, uma espécie de música de apoio ao Front National. Noutra ocasião, no famoso concerto Rock Against Racism, em Londres, organizado para marcar uma posição contra a crescente discriminação racial na sociedade britânica, Joe Strummer usou uma t-shirt com o nome da organização terrorista italiana Brigadas Vermelhas e o logótipo do grupo alemão Baader-Meinhof.
Letra da canção “White Riot” (1977), dos Clash
White riot - I want to riot White riot - a riot of my own White riot - I want to riot White riot - a riot of my own Black people gotta lot a problems But they don't mind throwing a brick White people go to school Where they teach you how to be thick An' everybody's doing Just what they're told to An' nobody wants To go to jail! All the power's in the hands Of people rich enough to buy it While we walk the street Too chicken to even try it Everybody's doing Just what they're told to Nobody wants To go to jail! Are you taking over Or are you taking orders? Are you going backwards Or are you going forwards? The Clash - White Riot (Official Video)
Após uma carreira de 10 anos, entre 1976 e 1986, e seis álbuns de originais, podemos afirmar sem pruridos, e recorrendo a uma expressão promocional cunhada por Gary Lucas, que trabalhava para a CBS, que os Clash eram a única banda que interessava. Este statement surgiu num momento propício e com a mensagem certa para cativar milhões de jovens frustrados com o status quo, onde quer que estivessem, motivando-os a tomar o futuro nas suas mãos e a arriscar uma mudança social. Jon Savage, em 1977, quando era jornalista na revista Sounds, escreveu a propósito de um concerto dos Clash, The Jam e The Buzzcocks, o que pode ser generalizado para a posição dos Clash durante toda a sua carreira: “O rock ‘n’ roll pode ser uma das poucas coisas honestas neste mundo. Sim. Um evento, uma reunião dos clãs. Sim. Mas foi tudo feito por baixo dos Clash. Sim”.
O reconhecimento musical é praticamente unânime: desde álbuns em praticamente todas as listas de tops; a entrada, em 2003, no Rock and Roll Hall of Fame; múltiplos documentários e homenagens, até o estranho uso da música “London Calling” para promover as Olimpíadas de Londres, em 2012. Mais, nem todas as bandas têm direito a um dia de homenagem, mas os Clash tiveram-no: em 2013 surge um International Clash Day, em que estações de rádio dedicam todo o seu tempo a músicas e programas relacionados com a banda. A razão para tudo isto pode estar na explicação dada por Steve Mullen, descontando o interesse pessoal no assunto, uma vez presidente da Fundação Joe Strummer, “Qualquer pessoa com um bocadinho de humanidade consegue gostar dos Clash”.
A distintividade dos Clash sobressai precisamente ao nível político e social – ao abrir caminho para a inclusão das causas sociais na música e no apelo à mobilização – e ao nível cultural. A relação e interação mantida com os seus fãs afigura-se, igualmente, como assinalável: a criação do álbum de concertos From here to Eternity: Live, ao incluir citações dos próprios fãs, demonstra inequivocamente a construção de processos de identificação com relevante impacto ao longo do tempo; a banda conseguiria incutir nos seus seguidores e admiradores um maior criticismo face ao mundo circundante (Ahern, 2012).
Portugal Calling.
E qual é a história dos Clash em Portugal? Infelizmente, é curta. Remete-se a um concerto, a 30 de abril de 1981, no Pavilhão Dramático, em Cascais. Um concerto que provocou uma grande cobertura mediática, não só dos média especializados, mas também dos generalistas. Segundo o Se7e, a banda recebeu 10 mil dólares pelo concerto. A primeira parte do concerto estava a cargo dos Táxi (que receberam 15 mil escudos), cuja música “Chiclete” batia com a força toda na rádio nacional e, em seguida, os Pearl Harbour & The Explosions. Relatos da época falam de cerca de 10 mil espetadores, que pagaram 400 escudos pelo bilhete e que acorreram a Cascais para verem os Clash pela primeira vez em Portugal e, mal sabiam, também a última. A banda portuguesa Táxi afirma ter vivido um sonho naquela noite, em que para além de partilharem o palco com os seus ídolos e terem tido a oportunidade de conversar com eles, ouviram a multidão presente no Pavilhão Dramático a pedir encore depois de terem saído do palco com a “Chiclete”.
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Bilhete do concerto dos Clash em Portugal, no Pavilhão Dramático, em 1981
Fonte: Tumblr.: MASCARA DE ROCK
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Os Táxi com os Clash, no Pavilhão Dramático de Cascais, no dia 30 de Abril de 1981
Fonte: Blitz. Uma noite com os Clash em Portugal (Arquivo de João Grande)
Shoud I stay or sould I go?
Os Clash tiveram um enorme impacto na vida dos seus fãs ao longo de vários anos, pois foi – como já aludimos – através da banda que muitos dos seus seguidores adquiriram uma visão crítica do mundo que os rodeia. Para além disto, é fundamental sublinhar que a sua música aproximou as diferentes pessoas que gostavam deles, passando a ser uma forma destas se interligarem, visto que esse ponto em comum tem em si uma história e significado próprios (Ahern, 2012). No entanto, também há quem não se identifique com o posicionamento político da banda.
Álbuns, singles e compilações dos Clash editados em Portugal
Álbuns dos Clash editados em Portugal: Give 'Em Enough Rope, em 1978 (CBS Portugal); London Calling, em 1979 (CBS Portugal); Sandinista!, em 1980 (CBS Portugal); Combat Rock, em 1982 (CBS Portugal); Cut the Crap, em 1985 (CBS Portugal). Singles editados em Portugal: This is England, em 1985 (CBS Portugal). Compilações editadas em Portugal The Story Of The Clash Volume 1, em 1988 (CBS Portugal).
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Artigo sobre a banda The Clash, com um pequeno apontamento acerca do seu concerto em Cascais em 1981, da autoria de Pedro Ferreira e publicado na revista Música&Som, em 1981
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Analisemos, desta feita, as representações em Portugal em torno da banda, tendo por base um conjunto de entrevistas (vide nota), onde procuramos compreender como foram recebidos os Clash num Portugal recentemente saído de ditadura e ainda culturalmente opaco. A grande maioria dos entrevistados (92,5%) afirma gostar da banda, o que nos conduz a asseverar uma identificação praticamente unânime. A dimensão política – ou politização das letras musicais da banda – assume-se como incontornável, tanto mais quando mote indelével de identificação. Estamos a considerar, como vimos anteriormente, uma politização mobilizadora e incisiva, não niilista, que tornava as músicas extremamente apelativas para quem as ouvia, como aquelas referidas nas entrevistas: “White Riot”, “Tommy Gun”, “All the Young Punks” ou as presentes no álbum London Calling. A esta politização das letras – ativista e mobilizadora – há que associar a capacidade das mesmas em ultrapassar as fronteiras inglesas e gerarem, segundo os entrevistados, significado particular em Portugal. Ao mesmo tempo, surge como justificação de identificação a questão da autenticidade: a banda é valorizada pela “sua” autenticidade, independentemente de ter assinado pela CBS e da posição de Mark Perry. Para os entrevistados, a banda conseguiu manter a sua coerência e independência, tendo tal opção – para alguns – sido benéfica, pois permitiu que a mensagem dos Clash chegasse a mais gente e a influenciasse.
É com algum interesse que verificamos que existe a necessidade, entre os entrevistados, de recorrer a um exercício comparativo com os Sex Pistols, assumindo estes como um padrão a partir do qual as restantes bandas são perspetivadas. Neste caso, em particular, a comparação subvaloriza esta banda a favor dos Clash. Os Clash são percecionados como uma banda punk intelectual e bem-pensante, com uma mensagem assente num profundo conhecimento da realidade. Seriam os tais Thinking Man’s Yobs, uns anti-Sex Pistols, que apesar de terem assinado por uma major, tal não os impediu de se manterem coerentes e de procurarem soluções para alterar a situação social que combatiam. Savage (2002) dá-nos conta desta comparação que é negativa para os Sex Pistols, quando afirma: “Os Sex Pistols eram baseados no Soho, um pouco em Chelsea, mas os Clash tinham origens em North Kensington. Os Sex Pistols situavam-se eles próprios como irredutivelmente fora de tudo, ao passo que os Clash eram mais calorosos e próximos das pessoas; se os Sex Pistols abordaram implícita, e depois, explicitamente, a destruição de todos os valores, os Clash eram mais humanos, mais próximos do diálogo e do realismo social – mais arreigados ao mundo” (Savage, 2002: 267). Os entrevistados portugueses partilham da mesma opinião:
Digo-o e repito… e em termos, por exemplo, de política… os Clash fizeram muito mais do que os Pistols alguma vez fizeram.
Os Clash foram uma influência para todas as bandas da atualidade, para bandas de punk rock. Os Clash são cultura musical (…). Os Clash sempre tiveram autonomia criativa, e isso é importante para uma banda.
Mais pelas letras, pelo impacto que tiveram, porque sou aficionado do Joe Strummer; pela junção do que faziam, pelas bandas que conseguiram influenciar. Tinham uma approach muito maior nos estilos das outras bandas. Os Clash metiam reggae, e outros estilos…
Os Clash são uma banda tão boa que era impossível ficar alternativa. É uma banda que pode ser uma banda punk mas que, a nível sonoro, tem músicas que toda a gente gosta. E portanto, como toda a gente gosta, é impossível ficarem alternativos.
Por outro lado, se The Clash, tal como Sex Pistols e Ramones, por um processo de metonímia, passou a significar o punk – através dos vários artefactos musicais –, a verdade é que neste caso, Joe Strummer significava os Clash e, por conseguinte, o punk. Pelo menos uma imagem, a imagem correta, do punk. Um punk como todos deveriam ser: informado, politizado, coerente e inovador. Vários entrevistados, quando elogiam os Clash, nomeadamente as suas posições políticas, não elogiam a banda per se, mas sim Joe Strummer, o único membro da banda que é praticamente referido ao longo das várias entrevistas. Ele acaba por se tornar maior que a banda e até maior que o punk.
Para mim, o Joe Strummer significa a credibilidade no punk.
O Joe Strummer é quase considerado um herói nacional em Inglaterra; cada vez mais lhe dão valor. É uma figura mítica.
Uma outra posição dominante, que interessantemente não acarreta nenhuma crítica, é a que considera que os Clash foram punk apenas nos seus dois primeiros álbuns (The Clash e Give ‘Em Enough Rope); depois seriam rock’n’roll ou rock, mas um rock interventivo e mais punk que muitos outros punks, o que estaria relacionado com a sua opção por uma maior diversidade musical, que segundo vários entrevistados, fez com que deixassem de ser punks, mas que levou, por outro lado, a comprovar a inovação e coerência artística da banda. Inovação que abriu caminhos para vários tipos de experimentação musical e fez com que a música da banda nunca fosse repetitiva e aborrecida.
Clash é uma das bandas que continuo a ouvir sempre… Porquê? Porque os Clash foram uns dos que evoluíram. Não se deixaram enrolar naquele formato.
Os Clash, se formos a ver, o pessoal chama-lhes punk, mas eles não se chamam punks. Se a gente ouvir bem o som dos Clash, eles misturam rap, eles misturam reggae, eles misturam música caribenha no Sandinista!. Eles têm uma abertura tão grande musicalmente que é fantástico. O que pode ser mais punk do que isso?
Interessantemente, a identificação com uma maior experimentação musical levou a que, para alguns, não houvesse um amor à primeira vista com os Clash. Era algo que fugia aos cânones musicais considerados verdadeiramente punks. Vários entrevistados admitem que só vários anos depois é que começaram a desfrutar e a compreender a complexidade e interesse da música dos Clash. Uma explicação poderá ser encontrada na pressão grupal para recusar uma banda entendida como traidora por ter assinado pela CBS ou pela sua sonoridade diversificada e pouco punk:
Por mais incrível que pareça, eu só aprendi a gostar de Clash agora. Os Clash, na altura chamavam-nos traidores do punk (…) porque começaram a tocar reggae, vê lá! Foram classificados como os traidores do punk porque começaram a variar.
Os Clash são enormes! Se bem que eu aprendi a gostar dos Clash bem mais tarde. Eu gostava dos Clash, dos hits, mas só comecei a dar atenção a alguns discos mais tarde porque musicalmente são muito mais avançados e é uma cena que, para aquela mentalidade de punk, saloia, custa a entrar.
Porém, nenhuma banda é unânime e os Clash não são exceção. As razões de desidentificação, paradoxalmente, derivam das principais razões de identificação até agora mencionadas. Segundo a maioria dos entrevistados, as principais características positivas identificadas nos Clash são a sua posição politizada e a sua diversidade musical; porém, certos entrevistados veem aqui motivos de desinteresse: a política, por exemplo, pode ser um motivo de identificação apenas se os indivíduos partilharem os mesmos posicionamentos políticos que a banda; caso contrário, estaremos na presença de uma característica de claro distanciamento.
Dos Clash, só gosto dos dois primeiros. Quando eles começam a experimentar com skas, reggae, rockabillys, começo a desatinar, não é para mim, não tem nada a ver com as minhas raízes nem com as minhas ondas.
As letras dos Clash já não são muito a minha onda, até porque aquilo é a extrema-esquerda e nunca me identifiquei muito com isso.
Posto isto, e tendo em conta o que foi mencionado até ao momento, consideramos ser possível construir uma tipologia das posições face aos Clash, constituída por cinco posicionamentos dos punks portugueses, que passamos a descrever sucintamente. Um primeiro posicionamento – know your rights – assenta no facto da paixão pela banda advir essencialmente da mensagem transmitida e das suas posições politizadas, entendidas como um veículo para a mudança social. Nesta posição, denota-se, ainda, que a paixão pela banda é reforçada pela atração que o vocalista, Joe Strummer, provocava, representando a imagem ideal do ethos punk. The guns of Brixton – segundo posicionamento – reflete a paixão pela banda justificada na diversidade e experimentação musical levada a cabo pelos Clash, especialmente nos álbuns London Calling e Sandinista!. A experimentação musical da banda fez com que a música nunca fosse repetitiva e aborrecesse.
O terceiro posicionamento – should I stay or should I go – é o dos fãs tardios, que apenas anos após o contacto com a banda é que começaram a apreciá-la, por diversas razões, desde a pressão grupal, que via os Clash como pouco punk, até ao afastamento que a experimentação musical provocava. Uma quarta posição – cut the crup – reveste um maior criticismo em relação à banda, designadamente pelas suas posições políticas e experimentação musical, que a afasta da “norma” punk. De igual modo, criticam-se algumas contradições entre a mensagem e a comercialização da mesma. I’m so bored with the USA – último posicionamento considerado – respeita ao conjunto dos que não criticam propriamente a banda, mas realçam o facto de a música não ser, para si, apelativa.
Independentemente dos gostos, das posições e dos atributos que se podem referenciar relativamente aos Clash, algo perdura – a relação inextrincável da banda não só ao punk, mas a tudo (muito!) o que este possa ainda hoje representar enquanto marca social da rutura, da alternativa e da mudança; neste caso, seguramente se pode afirmar que os Clash fizeram a diferença ao assumirem um compromisso indubitável com a crítica social, a mobilização, o ativismo e, claro está com a música. Os excertos que se seguem – afirmações de Joe Strummer – são ilustrativos de tudo isto.
Acho que o rock’n’roll existe para transmitir uma verdade que precisa ser transmitida sempre. Rock, hip-hop, seja qual for o nome. Essa mensagem singular lembra-nos que é divertido estar vivo. É muito melhor do que estar morto (In Colegrave & Sullivan, 2002: 145).
Foi Bernard Rhodes que me apresentou a Mick e o Paul disse: “Por que não escreve sobre o que vos afeta? A insatisfação entre os jovens. O facto de todos estarem sem perspetivas”. Fomos rotulados como pensadores mais otimistas. Os Pistols destruíam tudo e nós apresentamos outro conjunto de valores ou de modos de ser, pensar, sentir. Era um elo forte (In Colegrave & Sullivan, 2002: 203).
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Notícia sobre o falecimento de Joe Strummer, com homenagem que inclui depoimentos de várias personalidades do mundo do espetáculo, publicado pela revista Raio-X em 2003
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Hemeroteca Municipal de Lisboa.
As entrevistas (semi-diretivas realizadas a 53 indivíduos) que estão na base desta abordagem foram realizadas entre janeiro de 2013 e dezembro de 2014, no âmbito do projeto KISMIF – Keep it Simple, Make it Fast!. O KISMIF é um projeto de investigação, de cariz sociológico, desenvolvido no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (IS-UP), em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research (GCCR), a Universitat de Lleida (UdL), a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), a Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto (FPCE) e as Bibliotecas Municipais de Lisboa (BLX). Tendo por objetivo analisar as manifestações punk em Portugal desde o seu surgimento até à atualidade, a abordagem do KISMIF é transdisciplinar (Antropologia, História, Psicologia, Comunicação, Jornalismo e Sociologia) e articula tempos e espaços diversos, de forma sincrónica e diacrónica, de modo a levantar o véu que oculta um objeto de estudo manifestamente complexo e socialmente pouco visível. http://www.punk.pt/projeto-3/
Referências || Para Saber Mais
AHERN, Sean Xavier (2012) – The Clash and mass media messages from the only band that matters. Master of Arts. Bowling Green, Ohio: Graduate College of Bowling Green.
BINDAS, Kenneth J. (1993) – “The Future is Unwritten”: The Clash, Punk and America, 1977-1982. American Studies. 34, no. 1 (1993), pp. 69-89.
BLITZ (2017) – Uma noite com os Clash em Portugal. Blitz [em linha]. 22 de abril de 2017. Disponível em http://blitz.sapo.pt/principal/update/2017-04-22-Uma-noite-com-os-Clash-em-Portugal.
COLEGRAVE, Stephen; SULLIVAN, Chris (2002) – Punk. Hors limites. Paris: Éditions du Seuil.
FAULK, Barry J.; HARRISON, Brady (2014) – Punk Rock Warlord: the life and work of Joe Strummer. Londres: Ashgate.
GILBERT, Pat (2004) – Passion is a fashion. The real story of The Clash. Londres: Da Capo Press.
MARCUS, Greil (2000) – Marcas de Báton. Uma história secreta do século vinte. Lisboa: Frenesi.
SAVAGE, Jon (2002) – England’s dreaming: Les Sex Pistols et le punk. Paris: Éditions Allia. ISBN: 2844851029.
TEMPLE, Julien (dir.) (2007) – Joe Strummer: The Future Is Unwritten [documentário].