1855 dias depois do lançamento de DAMN., Kendrick Lamar trouxe-nos um novo disco, Mr. Morale & the Big Steppers, trabalho que foi considerado pela equipa da 3 como o melhor álbum internacional de 2022. Nestes quase cinco anos, K.Dot estabeleceu-se como o mais relevante rapper da sua geração, sendo a primeira estrela pop a conquistar um Pulitzer, assinando uma inesquecível presença na Super Bowl e, bem mais importante do que tudo isso, construindo ao mesmo tempo uma família com a companheira Whitney Afford. Mr. Morale & the Big Steppers é tudo aquilo de que estávamos à espera.
O Luís Oliveira viajou pelas canções do quinto de originais de Kendrick Lamar, começando pela música de abertura, “United in Grief”.
A primeira faixa marcou musicalmente o tom do disco de Lamar. Ouvimos o piano minimal e percutido de Duval Tymothy e uma estrutura de canção rap não convencional, ao melhor estilo de Kendrick Lamar. Embora o tema do luto surja logo no título e seja várias vezes abordado, com o autor a defender que todos fazemos o luto de maneiras diferentes, é também o tema em que Lamar confessa que tem estado a lidar com dilemas pessoais e até visitado o psicanalista. Não será o único momento em Mr. Morale & the Big Steppers em que vários dilemas são evocados.
A música que se segue é “N95”. “N95” volta a ter uma introdução a cappella, mas as mudanças de tom, tempo e ritmo fazem desta faixa uma das mais vitaminadas de Mr. Morale & the Big Steppers. É também um dos temas em que temos a marca de Baby Keem, rapper, produtor, habitual colaborador de K.Dot e primo do músico de Compton. N95 era o modelo de máscaras recomendado nos Estados Unidos da América durante os períodos de confinamento. Kendrick Lamar fala de todos aqueles que pareciam mais preocupados em ter uma máscara de um designer famoso do que em cumprir as regras sanitárias. Num tema carregado de humor e one-liners, há um verso a fixar: “What the fuck is cancel culture?”
A terceira faixa é “Worldwide Steppers” e abre com um número de sapateado, algo que se repete ao longo do álbum. Logo depois, o acelerado, mas claustrofóbico e denso, sample de “Break Through”, dos nigerianos The Funkees, a preparar o ouvinte para mais uma montanha-russa no flow de K.Dot. O tema, novamente carregado de nuances, vai ainda reciclar a soul mais vintage dos Soft Touch, e o piano voltará a fazer das suas, num tema em que as memórias do passado recente de Kendrick Lamar nos chegam numa torrente complexa, confusa e dispersa, com reflexões sobre uma espécie de reclusão pós-lançamento de DAMN. e sobre episódios de infidelidade.
“Die Hard” é o tema seguinte. E, se os nomes nos créditos de produção se multiplicam em todos os temas, entre parceiros habituais como Sounwave ou Bēkon e estrelas como Pharrell Williams ou The Alchemist, esta é a primeira faixa dividida nas vozes e traz a cantora dos Barbados Amanda Reifer e ainda Blxst, que Lamar apadrinhou desde o arranque da carreira do rapper e produtor de Los Angeles. “Die Hard”, apesar do nome, é, até agora, a faixa mais segura do álbum, com Lamar a expandir a paleta de sons ao R&B mais sofisticado. “Die Hard”, quando pronunciado como se de uma palavra apenas se tratasse, significa “extremamente apaixonado”. Escrito de forma separada, como é o caso, aumenta ainda mais essa devoção. Lamar quer amar e ser amado, sem mas nem meios mas, com todas as suas falhas e virtudes.
A paternidade é um assunto que trespassa as canções de Mr. Morale & the Big Steppers. Está, aliás, literalmente retratada na capa do mais recente de K.Dot, na qual o rapper surge com o filho mais velho ao colo enquanto o mais novo descansa no colo da mãe. “Father Time”, o tema que mistura os dilemas dessa paternidade com a relação de Kendrick com o seu próprio pai, conta com a participação de Sampha. Os “daddy issues” confessados por Kendrick reportam a um passado fora-da-lei do progenitor que lhe aguçou a capacidade de sobrevivência e a competitividade. O rapper não deixa de esclarecer que, no mundo em que cresceu, muitas crianças cresceram sem pai, e a história de encontrar justificação para os laivos de masculinidade tóxica ainda o deixam confuso. O arranque do tema traz um luxuriante arranjo de cordas e uma voz feminina que aconselha terapia a um Kendrick Lamar em negação.
A seguir, ouve-se o interlúdio “Rich”, canção com os créditos menos preenchidos de Mr. Morale & the Big Steppers. Os versos a agigantarem-se para um clímax não deixavam antever que “Rich Spirit”, que obviamente se segue, fosse, com espaço para pouca discussão, uma das mais suaves do novo disco de Kendrick Lamar.
Chega então “Rich Spirit” e chega também o todo-poderoso e arrogante Kendrick, lembrando ao mundo quão famoso e rico é. Não é fácil encontrar explicações simples e óbvias, mas este tema exemplifica bem as suas metáforas e alegorias. Kendrick é rico e poderoso, mas quer também encontrar o equilíbrio necessário e, talvez mais importante ainda, quer que o mundo saiba que valoriza a espiritualidade.
O tema seguinte, “We Cry Together”, é talvez a mais estranha, criativa, impositiva e controversa faixa de Mr. Morale & the Big Steppers. Lamar escolhe a música “June”, de Florence and the Machine, para entrarmos na canção em que nos avisam, no primeiro verso, que “this is what the world sounds like”. Chamar esta canção de “conversa” parece um enorme eufemismo, já que Kendrick Lamar e a atriz Taylour Paige nos levam para uma horrível discussão. Como ouvintes, sentimo-nos como se estivéssemos a ouvir a discussão do casal vizinho através de finas paredes, chegando mesmo a ser desconfortável.
Num dos temas que mais tinta fez correr por parte de todos os que procuravam uma resposta para algo tão inusitado, ouvimos demasiadas vezes a n-word e a b-word sem nenhum recurso estilístico invocado para além dessa mesma repetição. Alguns dos críticos musicais que escreveram ou falaram sobre o tema, nem sempre no lugar de fala mais correto, entendem que K.Dot pode querer estar a abordar a dificuldade de os casais afro-americanos perpetuarem relações amorosas — algo que vai surgindo na cultura popular, mas é também estudado na chamada Black Academy.
O título da canção, “We Cry Together”, pode deixar subentendido uma outra moral associada: a de que ninguém sai vencedor de uma discussão como a que ouvimos, e melhor mesmo será ouvirmos, expressarmo-nos, celebrarmos juntos e, se necessário for, chorarmos juntos.
A música “Purple Hearts” fecha a primeira parte de Mr. Morale & the Big Steppers. Temos participações da estrela em ascensão na cena R&B de Atlanta (Summer Walker) e, de Staten Island, Nova Iorque, chega Ghostface Killah, lenda dos Wu-Tang Clan. É, na melhor tradição de Kendrick Lamar, uma canção de amor. Amor pelo nosso semelhante, mas também amor próprio, que nos deve valer quando não for mais possível seguir um caminho a dois.
Kendrick Lamar não é um rapper como os outros e faz, de forma encriptada, tenções de o mostrar. Enquanto Summer Walker fala de relações recentes que deram para o torto, mas ainda deixam mossa, Ghostface Killah traz a espiritualidade, provando a ideia de que a idade é um posto.
Lamar deixa claro que podemos achar piada quando são as drogas a falar, mas devemos ouvir quando é o amor a falar.
A música “Count Me Out” inicia a segunda parte do mais recente de Kendrick Lamar e é não só das mais introspetivas canções do rapper como uma das que misturam mais temas diferentes, com destaque para a pressão, a depressão e a busca de uma certa espiritualidade que traga paz. K.Dot confessa que houve tempos em que não conseguia encontrar Deus, e o tema traz até uma espécie de coro gospel que talvez o aproxime do céu quando Kendrick se propõe a deixar o ego de lado. E, antes de ouvirmos o sapateado que já conhecemos da primeira parte do disco, o rapper parece mais pacificado quando assume a sua identidade e espiritualidade.
A seguinte é “Crown”, que começa mais uma vez com o subtil piano de Duval Timothy e é o tema que carrega uma simbologia mais direta.
Na capa do disco, Kendrick Lamar surge com uma coroa de espinhos, a mesma que tem usado nos espetáculos ao vivo, e a lírica do tema lembra-nos que nem Jesus Cristo agradou a todos quanto canta “I can’t please everybody”.
Ultrapassado o bloqueio criativo que durou quase dois anos, talvez K.Dot já tenha feito a sua Via Sacra. O músico norte-americano não se quer comparar a Cristo nem afirmar que é mais famoso do que o filho de Deus, como em tempos disse John Lennon sobre os Beatles, mas deixa claro que uma cabeça que carrega uma coroa fica sempre mais pesada e, com a grandeza que lhe é atribuída, resta-lhe retribuir.
“Silent Hill” traz Kodak Black. A sua presença é talvez a menos esperada no último disco de Kendrick Lamar, não só por não ser conterrâneo de K.Dot, mas porque Kodak Black é da Florida. A isto, soma-se o facto de o cidadão nascido Dieuson Octave ter acumulado, nos curtos 25 anos que leva de vida, um já extenso historial com as autoridades, adicionado a uma série de episódios e declarações menos felizes. “Silent Hill” é também um popular videojogo da década de 90, no qual impera um certo mistério e cinzentismo. Há muitas leituras possíveis para este tema. Uma delas coloca os dois rappers no cume da montanha: Kendrick, sem rival no que diz respeito ao sucesso; Kodak, sem rival na sobrevivência nas ruas.
No interlúdio “Savior”, temos uma definição de ironia que não se encontra em nenhum dicionário: uma das melhores performances de Baby Keem surge num tema de Kendrick Lamar em que K.Dot nem sequer se ouve.
O arranjo de cordas ajuda e abre de forma sublime o caminho para o tema “Savior”. De tempos a tempos, a música popular engrandece de tal forma os seus heróis, que os quer elevar a patamares messiânicos. Assim foi com Bob Dylan e a folk; assim é com Kendrick Lamar e o hip hop. Na cultura popular e, particularmente, na comunidade afro-americana, em que a história dos heróis foi tantas vezes apagada ou deturpada, essa tendência é ainda mais notória.
Em “Savior”, Kendrick Lamar deixa transparecer todo o seu orgulho negro, mas recusa o papel de redentor e estende essa impossibilidade a outros rappers, como J. Cole ou Future, e mesmo a lendas do desporto, como LeBron James. Esta não é a única referência ao basquetebol neste tema: Kyrie Irving não sai bem na fotografia, já que K.Dot questiona a postura negacionista da COVID-19 do atleta dos Brooklyn Nets, que durou até Kyrie ter contraído o vírus.
Ao recusar o papel de salvador, Kendrick aproveita também para justificar o seu silêncio no que aos assuntos quentes que marcaram a América diz respeito, em particular os que envolveram a comunidade afro-americana como o assassinato de George Floyd. O rapper de Compton entende que o seu lugar de fala é a música, não se identificando como porta-voz de coisa nenhuma nem um cidadão com especiais tendências tribunícias.
Depois da masculinidade tóxica, da paternidade, da representatividade e dos protagonistas dentro da comunidade afro-americana, Kendrick Lamar traz a homossexualidade e as mudanças de género para o seu discurso em “Auntie Diaries”, servindo as suas reflexões.
“My auntie is a man now” (“a minha tia agora é um homem”): Kendrick já tem idade para o compreender, e assim começa o tema em que conhecemos também a história de Demetrius, o primo do rapper que agora se tornou Mary-Ann. Lamar entra num território quase nunca explorado pelos seus pares no hip hop. Reflete sobre a maneira como, convencionalmente, estamos mais preparados para tolerar a homossexualidade entre mulheres do que entre homens e, refletindo sobre o carácter e a personalidade dos parentes, não deixa de criticar as instituições religiosas, para as quais o exterior parece mais importante do que o interior dos seres humanos. Mas não se pense que há aqui alguma aproximação estratégica a uma qualquer causa. K.Dot aceitou as mudanças mesmo que não as tenha nunca encorajado.
Em jeito de conclusão, o rapper discorre sobre o poder do amor contra o preconceito que se manifesta nos laços familiares de uma forma inequívoca. “Auntie Diaries” é uma canção tão rara quanto necessária.
Em “Mr. Morale”, voltamos ao consciente e ao arrogante. Ouvem-se sintetizadores em arpejos, e o tema leva-nos a um ambiente denso, em que K.Dot parece estar a acordar de um pesadelo. Estes servem o tema-título, no qual Kendrick quer fugir dos moralismos, mas quer dar moral à comunidade negra.
O tema arranca com uma falsa vaidade sobre as mulheres com quem já esteve e dá a volta num flow frenético — até que se perceba que canções sobre sexo, violência e dinheiro seriam demasiado fáceis. Nesta altura da vida, o músico tem coisas bem mais relevantes a tratar, como traumas geracionais e de comunidade (de Oprah Winfrey a R. Kelly), numa reflexão entre o empoderamento e o discurso de identificação dos afro-americanos e sobre a maneira como se exige que levem a vida para a frente, apesar de todo o complexo passado. Mesmo que seja um recente e pessoal.
“Mother I Sober” traz um colaborador já de longa data (Thundercat) e uma voz improvável (Beth Gibbons, dos Portishead). É uma das mais tocantes canções de toda a carreira de Kendrick Lamar. Há uma espécie de viagem histórica entre os traumas da comunidade negra, que nos leva da escravatura a um racismo sistémico que não pode nunca ser visto como uma evolução satisfatória. O tema traz um piano terno e repetitivo, cama perfeita para o discurso completamente direto, em que o californiano recorda um episódio de violação da mãe quando tinha apenas 5 anos.
Há um primo visto como um pervertido, que Kendrick garante nunca ter abusado dele, mas mesmo assim gera dúvidas numa família que não está livre de uma toxicidade latente. Um episódio que o despertou para uma busca da masculinidade que haveria de condicionar durante muito tempo a maneira como se relacionou com o sexo feminino. Kendrick assume que seguiu o caminho mais difícil para ultrapassar todos os dramas: o caminho da sobriedade, que, ao fim de todo este tempo, o libertou. A canção ganha universalidade quando todos percebemos que estas histórias não têm todas o mesmo tom de pele.
“Mirror” tem um sample de Marvin Gaye e uma entrada sem rodeios. A primeira audição de “Mirror” deixou os fãs em pânico. Depois de se olhar ao espelho, temos Kendrick a dizer algo como: talvez seja tempo de parar, fugir da cultura e seguir o meu coração. Seria o fim da carreira musical de K.Dot.
A digressão de 2023, que tem aliás Portugal na agenda em junho, no Primavera Sound Porto, dá ideia contrária, e “Mirror” pode só anunciar um futuro mais tranquilo e mais autoconsciente. Se, por um acaso, este fosse mesmo o capítulo final da carreira discográfica de Kendrick Lamar Duckworth, teria sido já uma incrível viagem.
Este faixa-a-faixa também pode ser ouvido, em duas partes, no arquivo do Defeitos Especiais na RTP Play: aqui e aqui.