“Explorar a ligação lusófona e ter um papel mais interventivo”
A dupla formada pelos irmãos Bruno e Leonardo Guichon (Leo) está de volta aos discos com Língua, um trabalho em que quiseram dar um passo em frente e aproximarem-se de uma vontade que tinham de criar laços mais próximos da cultura lusófona. Assumem que, para este disco, estiveram mais preparados, com outra bagagem, e que isso lhes permitiu chegar a novas ideias e a novas pessoas que os ajudaram a criar este trabalho. Tal como em Oito, o disco de estreia, os manos Guichon – filhos de pai uruguaio – contam com vários convidados: Tó Trips, Batida, Cachupa Psicadélica, Cátia Sá, Maria João, Ary, João Gomes, Braima Galissa, Alex (Terrakota), AF Diaphra, Gospel Collective e outros ajudaram os Octa Push a levar o conceito de Língua até ao sítio que os dois desejavam: uma música lusófona de cariz eletrónico. Partir das batidas graves para uma música que pretende também confrontar preconceitos.
Como é que passaram estes últimos três anos, desde o lançamento de Oito?
Leo – Este novo disco começou a ser pensado em 2014, logo a seguir a alguns concertos do Oito. Sentámo-nos e falámos sobre aquilo que queríamos fazer e demos por nós a chegar a um consenso: não queríamos fazer a mesma coisa que fizemos no primeiro disco. Queríamos explorar mais esta ligação lusófona e ter um papel mais interventivo. O primeiro álbum foi feito com amigos – como o caso do Alex Klimovitsky dos Youthless, a Catarina Moreno…
Bruno – E não foi um álbum muito pensado. Acabámos por juntar alguns temas, enquanto neste caso já pensámos mais no conceito. Também houve mais preocupação na escolha dos convidados.
Quem ouve o disco consegue perceber que há um conceito muito bem definido à volta deste Língua. Era mais ou menos isto que já queriam fazer no primeiro disco, com esta ideia de música lusófona a dar o mote às composições?
Leo – Antes do primeiro disco já tínhamos feito uma tentativa. Lançámos um EP pela Optimus Discos que era uma tentativa de fazer alguma coisa assim. Convidámos o Karlon dos Nigga Poison, mais o Tony dos Mundo Complexo, só que foi um EP feito um bocado em cima do joelho. Não gostámos muito do resultado e por isso, no disco seguinte, fugimos um bocado com receio de voltar a cometer esse erro. Com este disco, acabámos por sentir-nos mais preparados.
O que é que mudou? O primeiro álbum correu bem e isso permitiu-vos chegar a outras pessoas?
Bruno – Ganhámos alguma bagagem após o primeiro disco, sim. Mas também houve a vontade de experimentar outras coisas.
Leo – É aquele desafio de trabalhares com pessoas que admiras: se pensares em Dead Combo, no Tó Trips, sobretudo no Lisboa Mulata, vai um bocado ao encontro daquilo que queremos fazer. E todos os convidados trazem isso. A Maria João, nos anos 1980, já andava a criar álbuns com o Mário Laginha com muita influência de Moçambique – que acho que foi onde ela nasceu [a cantora nasceu em Lisboa, mas é filha de pai português e mãe moçambicana].
Bruno – O Brahima Galissá [Guiné Bissau] que é um herói local daqui de Lisboa…
Leo – Já tínhamos feito uma música com ele no Oito, mas aí não lhe demos tanto espaço: pegámos na gravação e adaptámos um bocado à nossa música depois de um corte e costura. Aqui no Língua já lhe demos a liberdade, a ele e aos convidados, para gravarem e fazerem o que quisessem sem nós estarmos a pensar muito no resultado da música. Se é um conceito de fusão e mistura, não podemos chegar ali e dizer o que podem ou não podem fazer ou andar a cortar bocadinhos. Se é mistura, se é fusão, é dar espaço. Com isso, temos noção que podemos perder o lado de perder um pouco o formato canção – quer dizer, não é bem perder: é deixar de ter uma coisa para passar a ter outra.
Além de que essa fusão faz-vos aproximar das intenções iniciais.
Leo – Neste álbum sim. A ideia continua a ser a mesma: partir de uma base rítmica – que pode ser a batida, mas também podem ser umas teclas, um baixo ou samples. Qualquer coisa que tenha algum ritmo. E a partir daí o convidado dá o que tem de dar. O primeiro disco teve um caminho mais pop por causa dos convidados, mas a ideia é a mesma.
Bruno – No primeiro disco talvez tenhamos dado predominância a algumas influências mais inglesas. Aqui não: procurámos mesmo trabalhar os nossos sons de outra forma, não ir buscar clichês da música de dança, mas trabalhar os sons à nossa imagem.
“Por sermos irmãos, a nossa relação com a banda é quase como um casal que está junto e faz planos para o futuro”
Lisboa é o vosso agregador das influências lusófonas?
Leo – Hoje em dia fala-se muito de Lisboa, mas se formos ao Porto já se começam a ver bandas – Morutumba é um DJ que faz kuduro, ou os Throes + The Shine. Nos últimos anos também participámos no programa “Escolhas” em que estivemos a produzir para miúdos no Algarve e no Norte, onde sentimos que também já há muito disto. Mas também sentimos, durante as digressões, que ainda existia algum preconceito – para não dizer racismo – em relação a esta música. Estávamos a tocar e ainda ouvíamos dizer que era “música de pretos”. Ao sermos confrontados com isso, dá-nos mais vontade de fazer alguma coisa, confrontar e continuar a tocar porque só assim é que consegue mudar alguma coisa. Em Lisboa há mais abertura, mas também há preconceito e só confrontando as situações é que se consegue lutar contra elas. Se calhar este disco também é isso: dar o peito a estas situações.
Entre o Oito e o Língua tiveram a experiência de ir ao Quénia participar no projeto “Ten Cities”. Essa experiência também marcou a abordagem deste disco?
Bruno – Acabou por influenciar, sim. Quando começámos Octa Push samplávamos muita música do Mali, por exemplo. No Quénia tivemos oportunidade de ir directamente à fonte.
Leo – E neste disco temos músicas feitas com artistas do Quénia. Na “Intro”, o Isaac é do Quénia, e conhecendo-o através desse projecto, a música “Lgs-Lx” conhecemos o Afrologic e a Temi, que são nigerianos, e conhecemo-los na final do Ten Cities, em Berlim. Mas também conhecemos outros artistas que futuramente até podemos vir a fazer coisas com eles.
“Se é um conceito de fusão e mistura, não podemos chegar aos convidados e dizer o que podem ou não podem fazer ou andar a cortar bocadinhos. Se é mistura, se é fusão, é dar espaço”
Na vossa cabeça já há ideia daquilo que querem fazer daqui para a frente?
Bruno – Passa por irmos experimentando e tentar vários caminhos.
Leo – É o que temos feito ao longo dos anos. Este é o álbum certo, mas que, se calhar, não aparece na altura certa. O segundo disco costuma ser aquele em que se analisa o que se fez de bem no primeiro e tentar melhorar algumas coisas. Mas não foi isso que fizemos: fomos por um caminho completamente diferente. Acho que, de futuro, vai ser assim. Nós somos irmãos e, por isso, a nossa relação com esta banda é quase como a de um casal que está junto e faz planos para o futuro – mesmo que daqui a uns anos se decidam separar. Mas por sermos irmãos vamos sempre pensar que vamos fazer isto durante mais tempo. Este é um álbum que gostávamos de ter, com este tipo de conceito e convidados. Mas também gostávamos de poder continuar a fazer coisas com vocalistas ingleses e não ficar só focados nesta linguagem. No próximo, se calhar, vai apetecer-nos fazer algo com alguém do fado ou de outra cena qualquer!
Quando convidam outro artista para colaborar convosco, têm já com uma ideia em mente ou dão-lhe espaço para a criação?
Leo – Nós temos uma conversa antes e falamos sobre o conceito, sobre o que poderia ser interessante falar no tema. A partir daí são as ideias do próprio convidado.
Como é a vossa relação enquanto irmãos? Ainda moram juntos?
Bruno – Já não moramos juntos, mas temos um computador onde cada um vai despejando ideias e fazendo “save as” em cima uns dos outros.
Leo – É uma espécie de estúdio. Cada um tem uma chave, entramos à hora que queremos e vamos deixando as ideias. Mais tarde acabamos por nos juntar e decidir o que fazer com cada ideia que está gravada no computador.
“Estávamos a tocar e ainda ouvíamos dizer que era ‘música de pretos’. Ao sermos confrontados com isso, dá-nos mais vontade de fazer alguma coisa, confrontar e continuar a tocar porque só assim é que consegue mudar alguma coisa”
Querem contar-nos o contexto em que nasceu esta vontade de fazerem esta música, esta intervenção social e artística?
Leo – Nós crescemos nos arredores de Lisboa, em Carcavelos. Hoje o meu irmão já mora aqui em Lisboa e eu continuo na zona, na Parede. Eu sou mais velho e ainda vivi ainda na Guiné com os meus pais. Mais tarde, quando voltámos para Portugal, lembro-me de os meus pais terem a sala decorada com koras. Antes de mexer numa guitarra mexia em koras.
Bruno – Havia muitas máscaras africanas a decorar as paredes.
Leo – E os almoços de família recordavamos muito o tempo a falar sobre as recordações de África. Não somos uma família que ao fim de semana come cachupa, mas houve sempre muitas memórias.
Bruno – E outras pequenas coisas que nos influenciaram: crescemos ao pé do bairro das Marianas, onde havia uma comunidade africana muito grande. Os meus amigos eram cabo-verdianos e indirectamente ouvia muito funaná, muito kuduro. São essas pequenas coisas.
Leo – Há uma altura na adolescência que não pensamos muito nisso, quando temos as bandas de rock, de metal, hip hop, drum ‘n’ bass… Agora se calhar estamos a ficar um bocado mais velhos e a agarrar-nos às memórias!
O puzzle começa a ficar completo. Tudo o que nós somos, e tudo aquilo que nos formou, começa a fechar-se.
Leo – Começas a voltar à origem das coisas. E às vezes até pode ter começado de uma forma não consciente e de repente dás por ti e já estás ali no meio, meio por acaso, mas já faz parte de nós.
Leo Guichon conta como são os almoços de família dos Octa Push