“A Miopia não é só nos olhos. Também é uma miopia de entendimento”
A vocalista e letrista Ana Deus e o guitarrista e compositor Alexandre Soares estão de volta ao projeto Osso Vaidoso. Cinco anos depois de Animal o regresso acontece com Miopia, uma coleção de onze poemas musicados num encontro de som e palavras, orgânico e fluido.
A dupla conversou connosco sobre o disco, sobre a forma como foi nascendo com a irreverência nas cordas das guitarras de Alexandre e com as apaixonadas interpretações de Ana que, além de cantar Gastão Cruz, Sá de Miranda, Natália Correia, Rainer Maria Rilke, Jesus Lizano, Nicolau Tolentino e Jorge Luís Borges, escreveu os temas “Dramo-me” e “Princípio da Incerteza”.
Além disso, fica também a confirmação de que já estão a começar a pensar na reunião dos Três Tristes Tigres para um concerto no Teatro Rivoli, no Porto, em março do próximo ano, 21 anos depois do lançamento de Guia Espiritual.
O vosso segundo disco chama-se Miopia. A miopia, clinicamente falando, é uma doença no olho que não deixa ver ao longe. Qual era o vosso objetivo? Aproximarem-nos mais das letras e das músicas para conseguirmos ver um bocadinho melhor?
Ana Deus [AD] – Também pode ser! Acho essa ideia muito boa. (risos) É sempre difícil dar o nome a um disco e tentámos resumir a ideia dos poemas todos. E sim, tem que ver com a dificuldade de entendê-los: a miopia não é só nos olhos. Também é uma miopia de entendimento. Reporta um bocadinho ao poema do Alberto Pimenta que acabámos por não meter integralmente no disco, que fala da dificuldade que temos em perceber o tempo presente. Às vezes tem que passar algum tempo sobre as coisas para nós entendermos o que se passa – se é que alguma vez vamos entender! Com a idade cheguei à conclusão que há muitas coisas que ainda não percebemos, mas que já percebemos que temos de relativizar as coisas e, às vezes, não nos importarmos com ninharias.
Ana, de que poemas é que foi à procura para interpretar?
AD – Eu chamo-lhes poemas filosóficos, mas não só. Isso seria simplificar a questão. Em cada projeto tento adequar os poemas à música. Foi meio intuitivo, mas foi o que me pareceu. Poemas que falassem lá do alto, da nossa relação com a vida, com a morte, com deus ou com a invenção de deus, com a guerra, com a devoção. Aqueles temas do quem somos, para onde vamos (risos). É um balanço de vida que é feito ali. São poemas com várias leituras, como o “Continuarei”, do [Rainer Maria] Rilke que não percebemos muito bem, mas que calculo que esteja a falar da relação com deus, mas que pode ser uma canção de amor. Aqui não letras – tirando as que eu escrevi: são poemas, mesmo poemas, difíceis de musicar, sem aquela regularidade canção.
Os Osso Vaidoso tocam hoje à noite, no Porto, no Café Au Lait (22h); e em Viana do Castelo, nos antigos Paços do Concelho, no dia 17 de novembro
Num trabalho em que foram à procura de se aproximar mais das canções, de fugir da tal miopia, acabamos por nos aproximar de textos mais filosóficos, que não nos dão certeza de nada, nos deixam a pensar e a brincar com as nossas intuições.
AD – Acho que sim.[Quem os escreveu] são pessoas bastante mais velhas, com bastante sabedoria e isso a mim ajuda-me. A minha maneira de estudar, investigar, passa sempre pelos poemas. A pesquisa para as canções é uma espécie de mergulho em pessoas que sabem muito mais do que eu e que têm uma maneira maravilhosa de as viver. São almas velhas
Alexandre, também trabalhou desta forma intuitiva, em resposta a algo que ia nascendo em si a partir de textos?
AS – Eu tenho, diariamente, esta coisa de pegar na guitarra ou em qualquer coisa que produza som, e improvisar. Improviso muito. Não parto nunca de textos: parto sempre do som. Desta vez encontrámo-nos mais vezes, trabalhámos muito a dois, e a Ana trazia textos preparados. Eu fazia som, experimentava coisas, e as composições encontravam-se muitas vezes. A Ana tinha o texto que achava que já cabia em material que estávamos a improvisar. Não era uma ilustração, mas antes um encontro entre o som e o texto. Depois tentámos manter-nos muito próximos do momento em que houve o encontro: quando os temas saiam, não limámos muito, mas deixámos o que saiu com uma roupagem rude.
Como é que acontece a busca pelo som?
AS – Não é sempre igual. Eu tenho sempre o exercício de ligar a guitarra ao amplificador, tocar uma ou duas horas todos os dias e ver o que tenho ali naquele dia. Mas também pode partir de ideias que se vão formando. Outras vezes formo mesmo, na minha cabeça, sons. Depois, quando pego na guitarra, tento pôr cá fora. Mas também pode nascer de conversas que tenho, de coisas que leio ou vejo que me sugerem o som. O silêncio, para mim, é a grande base de trabalho.
“A minha maneira de estudar, investigar, passa sempre pelos poemas. A pesquisa para as canções é uma espécie de mergulho em pessoas que sabem muito mais do que eu e que têm uma maneira maravilhosa de as viver” – Ana Deus
É um trabalho muito diferente daqueles que faz para outros géneros, como a composição para palco?
AS – Depende. Quando posso, gosto muito de fazer como fiz neste trabalho. Em dança, quando o coreógrafo chega com os bailarinos e começam a improvisar para exercitar ideias, tento montar o material nesse mesmo dia e trabalho ao mesmo tempo que eles, como se fossem músicos. Da mesma forma que eles evoluem a dançar, eu evoluo na peça a tocar. Para mim é a forma ideal de trabalhar. Noutras vezes são encomendas.
Este trabalho com Osso Vaidoso é de muitos ensaios ou preferem manter tudo meio improvisado, à flor da pele?
AS – Acaba por ter bastantes ensaios. Mas acontece muitas vezes que, na forma de experimentar e de trabalhar músicas que já estão mais ou menos encontradas, acabamos por começar a criar outras. A Ana tem textos que vai procurando, ou eu os sons, e é assim que vamos trabalhando. É no meio das que estão praticamente feitas que nascem novas.
AD – Eu preciso de ensaiar porque preciso de as naturalizar. Agora em relação ao disco já noto muitas coisas que, se fosse agora, já faria de outra forma. Aquilo é uma fotografia, e também vale por isso. Mas agora já me estou a afastar e preciso que fique muito mais fluído, muito mais solto, porque noto que a métrica já está um bocado mais solta do que no início e isso vem, sobretudo, dos concertos – mais do que dos ensaios. Ou porque te esqueces de algo – e esqueces-te muito quando tens pessoas à frente (risos) – e acabas por inventar outro caminho.
“Tenho, diariamente, esta coisa de pegar na guitarra ou em qualquer coisa que produza som, e improvisar. Improviso muito. Não parto nunca de textos: parto sempre do som” – Alexandre Soares
É quase um processo de mecanizar para depois “desmecanizar”?
AD – Podemos dizer que sim.
AS – Tem essas duas partes, sim.
Ao vivo, temos os poemas escritos, mas com a interpretação livre da Ana e a interpretação livre do Alexandre?
AS – Sim, estamos habituados a fazer isso. Estamos sempre prontos e atentos ao que o outro faz. É um trabalho para tocar e ouvir o que o outro está a fazer. Nós mudamos muito as coisas ao vivo: vou alterando, porque os dias fazem de mim uma pessoa diferente. Mas gosto disso: gosto de ir para um espetáculo sem saber o que vai acontecer. Por isso é que gosto de ensaiar: para chegar ali e ter a liberdade de fazer outras coisas. E sei que a Ana está pronta para isso também.
No meio dos poetas interpretados – Gastão Cruz, Sá de Miranda, Natália Correia, Rainer Maria Rilke, Jesus Lizano, Nicolau Tolentino e Jorge Luís Borges – temos dois poemas escritos pela Ana: “Dramo-me” e “Princípio da Incerteza”. São textos que já tinham sido escritos ou só nasceram em resposta ao seu trabalho no disco?
AD – O “Princípio da Incerteza” foi escrito para o disco. O “Dramo-me” foi o reaproveitar de coisas que escrevo quando estou com sono (sorri). Muitas das vezes, de manhã, não me lembro que escrevi, não me reconheço, e isso é giro porque parece que foi outra pessoa a escrever. Quando escrevo essas coisas, depois ninguém as percebe, então o trabalho foi de deixar o texto não tão criptado. Mas é um texto onde falo da minha vida como artista e como cantora, da relação com as canções – se continuo ou não continuo, se vale ou não apena. Porque de manhã fazemos sempre um exercício de avaliação, como se estivéssemos sempre a nascer: “vale a pena ou não?”
“[Sobre a reunião dos Três Tristes Tigres] Neste momento fazemos as coisas de outra forma. Na altura não estávamos agarrados a nada e agora também não vamos estar. Não pode ser uma coisa do passado”
Li que vão voltar a ser os Três Tristes Tigres já no próximo ano. Como vai ser o processo de recuperação e recriação das canções? Vai ser semelhante ao trabalho de Osso Vaidoso ou vai ser algo mais fiel ao passado, mais fechado, de trabalhar a partir de arquivos.
AS – Olha, parte do que lhe deu origem, alguns DATs que aqui tenho, até já estiveram debaixo de água. Algumas coisas já nem existem mesmo. Nós fomos convidados para fazer um concerto.
AD – É numa programação que se está a fazer no Rivoli, chamada Porto Best Of, que reúne várias bandas e nós somos uma delas [o concerto será em março].
AS – Depois, se houver vontade, talvez façamos mais concertos. Já que a coisa fica montada! Eu não vou fazer um trabalho muito fechado: já falámos com o Kiko, que é o teclista, e que também nos ajudava; o João Pedro Coimbra, que estava na percussão, também vai estar presente. E em conjunto vamos começar a trabalhar e a ver o que sai. Acho que ser fiel ao disco [Guia Espiritual, de 1996]…
AD – … eu acho difícil! (ri-se)
AS – Neste momento fazemos as coisas de outra forma. Na altura não estávamos agarrados a nada e agora também não vamos estar. Não pode ser uma coisa do passado.
AD – Eu estou curiosa para perceber como vamos fazer aquilo passados estes anos todos. Mas não vou fazer igual.
Já começam a conversar muito sobre esse reencontro?
AD – Um bocadinho, mas ainda estamos aqui no Osso!
AS – A conversa ali vai ser nos sons e nos textos. Só quando começarmos a tocar é que vamos ver o que fazer. Não há muito um “antes”.
Entrevista: Bruno Martins