“Sinto-me mais vivo do que nunca”
Fuse é nome de um dos nomes clássicos na história do hip hop português. Há 20 anos que a “voz de trovão” vem do Norte, a partir do coletivo Dealema. Mas Nuno Teixeira, o seu nome verdadeiro, também tem feito questão de mostrar o seu lado mais solitário, em discos como Informação ao Núcleo ou Sintoniza…, além de outros projetos instrumentais enquanto Inspector Mórbido.
Caixa de Pandora é o álbum que nos traz Fuse de volta. Numa altura em que os Dealema estão parados em termos criativos — e não são há previsões para um regresso — o rapper edita um trabalho duplo, construído nos dois últimos anos, que se passeia entre a luz e as trevas. Com pena afiada, Fuse abre a caixa e o coração para deixar sair tudo o que sente, mostrar o que o revolta, mas também aquilo que o faz feliz e que o faz acreditar num futuro que nunca será monocromático, mas que não tem que ser só de tempestades.
Demoraste 13 anos a abrir até abrir esta Caixa de Pandora. Quando é que este trabalho começou a ser desenhado?
Foram 13 anos desde o Sintoniza…, mas de facto não estive parado. Dediquei-me mais a Dealema e foi aí que estive mais focado. Durante este período em que não lancei nada a solo, confesso que tinha já um ou dois discos no papel, já tinha feito uma ou duas tentativas de começar a escrever um disco, mas provavelmente não era suposto ser naquela altura, não tinha aquele feeling. De há dois anos para cá encontrei esse feeling e recuperei a força que precisava para fazer algo a solo, novamente. A minha vida, nos últimos anos, adquiriu uma bagagem de vivências que me permitiu começar a construir o disco e até agora ainda não tinha sentido isso. Sentia que já tinha feito muito de mim, tanto a solo como com Dealema, mas para começar um trabalho novo tinha que sentir que tinha conteúdo para deitar cá para fora.
O que é que aconteceu para ganhares tamanha força ao ponto de fazeres não um, mas dois discos?
São dois discos porque eu tinha muito para dizer. E com aquilo que eu tinha para dizer bem podia ter feito quatro discos! Os últimos sete anos foram uma viagem complicada também devido à saúde do meu filho e isso também fez com que eu perdesse um pouco da energia que eu precisaria para fazer algo a solo. Fez quase com que eu desacreditasse, mas nos últimos anos conseguimos tanto com ele que deu-me a tal força para seguir o meu caminho. Em Dealema já estamos juntos há 20 anos e sinto que já houve um quase esgotar de recursos… eu comecei a solo e sempre fui uma pessoa muito solitária e criativa e agora sinto a necessidade de voltar a explorar esse meu caminho a solo. E estou a lançar um disco aos 40 anos.
No primeiro tema dizes: “É o retorno ao prefácio da minha formação”. É o regresso ao lado solitário?
Sem dúvida. O hip hop está na moda — e não sei se é bom, se é mau — mas tendo em conta o artificial em que se encontra o panorama musical de agora, para mim faz mais sentido do que nunca voltar às origens. Sinto-me mais vivo do que nunca. Já comentei isto com a minha mulher: tenho 40 anos e nunca estive tão feliz na minha vida como estou agora e depositei isso no disco.
Dizes que não sabes se é bom se é mau o hip hop estar na moda. Mas como é que te sentes com isso? É disso que falas no tema “Sangue Frio”?
O que digo nesse tema é o completamente o que sinto e esse tema é apenas um dos exemplos de músicas que escrevi sobre esse estado de espírito. Mas lembro-me perfeitamente quando escrevi essa música, por aquilo que ouvia, por aquilo que via a acontecer nas redes sociais. O panorama hoje, por todo o mundo, é mais ou menos idêntico. Mas falando do rap em Portugal vemos uma tendência em que todos os miúdos de uma faixa etária cada vez mais nova consomem rap e temos uma nova geração de artistas de rap que aproveita essa moda e está numa completa corrida pelos likes. Hoje vemos muito mais a preocupação no imediato, nas visualizações e nos likes do que propriamente no conteúdo e isso a mim faz-me muita confusão. Já tive esta conversa com outras pessoas do meio musical e todos eles concordam que é um ciclo, algo que já se viveu nos anos 1980, 1990 — com o rock e com a pop e agora está a acontecer no rap em Portugal. Espero que seja um ciclo e que passe muito rápido. Espero que se voltem a fazer discos com qualidade e que os ouvintes voltem a dar valor ao conteúdo e à qualidade das músicas.
“É um disco real e sincero. Tudo o que me saiu da caneta — para o bem e para o mal — é o que eu sinto e aquilo que eu penso. Sempre baseado na minha personalidade tanto escura como luminosa”
O tempo pode funcionar como uma espécie de peneira em que por cima ficam só os que dão mais valor a essa paixão? Ou tens uma visão mais pessimista?
Houve uma fase em que tive uma visão muito pessimista. A viagem destes últimos dois anos foi muito intensa. Teve altos e baixos, teve a fase do acreditar, do desacreditar e quase perder a força e a motivação para fazer o disco. Mas acho, sem dúvida, que os bons vão prevalecer. É um ciclo que vai passar e as pessoas vão voltar a saber apreciar boa música e apoiar a música. Neste momento, o hip hop não é um movimento cultural. Já foi! Vejo artistas que estão a explorar esta cultura, que estão completamente a marimbar-se se é um movimento cultural ou não, porque as carreiras são baseadas no ego e no mediatismo.
O que é que é preciso para o hip hop voltar a ser o tal movimento cultural?
Para mim, a arte — a música — é partilha. E a partilha é universal: é fazeres amigos, é partilhares a tua música com alguém, é receberes a partilha de alguém para ti. Os fãs fazem toda a diferença para manter este movimento cultural vivo, mas os artistas têm que voltar a ser o que eram nos anos 1990. Eu tenho saudades da altura da [compilação] Rockaforte, da altura em que os MCs do sul se surpreenderam com o rap que surgiu no Norte nos anos 1990. O que é que é feito do rap do Norte? Da força com que surgiu? Agora vejo pelas redes sociais, pelo YouTube, e vejo maioritariamente rap do Sul… Não sei o que se passa.
Vamos tendo alguns surgimentos e regressos: O Keso, a Capicua, os Corona, o Logos, o Virtus, o Minus, o Puro-L, o Cálculo… Achas que há pouco mais do que estes?
Acho que há muito mais, sem dúvida, agora não sei se os projetos que há perderam a motivação ou se, simplesmente, não encontraram mecanismos para saltarem cá para fora. Realmente, vemos que há lobbys na música e se calhar são eles que fazem com que meia dúzia de projetos estejam sempre na mó de cima. Não sei se é por falta de motivação, se é devido à centralização das coisas apenas em Lisboa, mas o facto é que tenho recebido provas de que há muitos bons projetos — e não é só no Norte do País — que não têm ferramentas, mecanismos ou espaço para mostrar aquilo que valem.
“Neste momento, a nível de discos de Dealema, vamos estacionar. Estamos focados nas carreiras a solo. O que estamos mesmo a acabar é o DVD que é projeto comemorativo dos 20 anos de carreira”
Tendo tu 40 anos, mais de 20 de carreira e sendo um dos mais antigos em Portugal nesta arte do hip hop, também sentes que tens que ter um papel de formador?
Eu não sinto que tenha de ter esse papel. Mas a minha personalidade faz com que eu, instantaneamente, sem ser forçado, transmita alguma mensagem às pessoas sempre que tenho a possibilidade de estar pessoalmente com alguém, seja em concertos, workshops ou palestras. Não concordo que o artista que vende o seu ego, que são só eles e os discos deles e não oferecem mais nada. Como te disse: música e arte são partilhas. As vivências são para partilhar e é isso que deixa marca nas pessoas.
Foi por isso que fizeste um rap como o “12 Magníficos” em que convidaste 11 rappers para partilhar espaço no teu disco?
Sem dúvida alguma. Nessa música temos pessoal do Algarve, de Lisboa, do Porto, de Barcelos e o objetivo foi mesmo esse. Houve quem me tenha perguntado porque não convidei o Sam The Kid ou o Valete, mas isso seria, supostamente, o que toda a gente faria. Fazia sentido partilhar uma música com projetos que eu admire e que eu ache que estão a dar cartas no momento e que ainda não tiveram oportunidade para ter os holofotes para eles.
Mas há mais convidados no disco, entre produtores e vozes. Há duas que saltam ao ouvido: a de Allen Halloween e a da Mafalda Veiga. Dois artistas de dois mundos opostos!
Durante esta viagem do disco, à medida que as músicas iam surgindo, faziam-me lembrar alguém. A Mafalda Veiga é um sonho muito antigo que eu tinha — já a admiro desde que eu era criança — e consegui concretizá-lo, felizmente. Quando fiz a “Obsessão ou Lucidez” percebi que tinha de ter comigo o Halloween — e só faria a música se o Allen aceitasse entrar nela. Foi assim com todos os outros. E é muito bonito quando há esta química, acho que isso sente-se. As pessoas que tenho no disco, naquele espaço da minha vida, fizeram todo o sentido.
A mitologia da Caixa de Pandora conta a história da mulher de Zeus que abriu um jarro e deitou cá para fora todos os males do mundo, ficando lá dentro, apenas, a esperança. Nesta tua Caixa de Pandora também deixas sair a esperança ou só falas dos males que tu vês no mundo?
Eu não pensei duas vezes quando decidi chamar ao disco Caixa de Pandora e seguir essa direção temática no disco porque é uma rima minha muito antiga: “A mente é o aloquete para a caixa de pandora” e tem muito a ver com a minha personalidade. É um disco real, sincero e tudo o que me saiu da caneta — para o bem e para o mal — é aquilo que eu sinto e aquilo que eu penso. Sempre baseado na minha personalidade tanto escura como luminosa. Por isso é que dividi o disco nessa dualidade: um lado mais escuro e outro mais luminoso. Quando fiz o alinhamento foi difícil separar as músicas de um lado para o outro porque elas misturam-se entre si. Neste disco estão todas as minhas cores, sempre — sempre, sempre — com uma luz de esperança.
“Os últimos anos foram uma viagem complicada também devido à saúde do meu filho e isso também fez com que eu perdesse um pouco da energia que eu precisaria. Mas nos últimos anos conseguimos tanto com ele que deu-me a tal força para seguir o meu caminho”
Fiquei com a sensação de que no Lado A apresentas-te no teu lado mais reconhecível e clássico; no Lado B pareces apontar a uma digressão mais progressista, expressiva e inventiva.
É isso mesmo. É curioso que quando separei os lados, imaginei: “Como é que será que os fãs vão receber este disco? Será que vai haver quem me diga que se identificaram mais com um ou outro disco?” Por muito que possa soar assim, não foi estudado. Foi tudo construído de uma ponta à outra de uma forma instintiva e só quando tive as músicas todas é que as separei pelos discos. Mas, curiosamente, quem imaginar o disco dividido em duas partes, possivelmente vão identificar o disco 2 como sendo mais luminoso.
Noutro capítulo, como está o trabalho com os Dealema? Penso que tinham qualquer coisa prevista para este ano, mas que não se chegou a concretizar: um disco? Uma coletânea?
Neste momento, a nível de discos de Dealema, vamos estacionar. Estamos focados nas carreiras a solo. O que estamos mesmo a acabar é o DVD que é projeto comemorativo dos 20 anos de carreira. É muito difícil construir um documentário sobre a nossa história, sobre estas duas décadas, e felizmente estamos já na fase final. Vamos ver como o vamos oferecer ao público e esse é o próximo projeto.
“Durante este período em que não lancei nada a solo, confesso que tinha já um ou dois discos no papel, já tinha feito uma ou duas tentativas de começar a escrever um disco, mas provavelmente não era suposto ser naquela altura, não tinha aquele feeling”
Não vale a pena ficar apreensivos quanto à continuidade dos Dealema? É que já perdemos — eventualmente — os Mind Da Gap… Não nos assustes, Fuse!
(risos) Não sei o que o futuro nos reserva. Agora estou focado na minha carreira a solo e estou muito feliz. Estou muito ligado à minha família. Consegui ter força para escrever, pôr este disco cá fora e ganhar vida. Ainda bem que consegui fazê-lo. Cada vez tenho mais provas que o amor, a família e a amizade são os alicerces para tudo o resto.