“O novo disco tem um bocadinho de tudo o que já fizemos para trás e apresenta coisas novas”
Estivemos à conversa com Bruno Miguel, dínamo criativo do projeto do Porto, em vésperas da sua partida para Gronigen, na Holanda, integrado na comitiva portuguesa do Eurosonic. No final do mês de dezembro, o grupo editou um primeiro avanço para o novo álbum, King Ruiner, com o single “Trust/Surrender” a levar os :papercutz até um universo mais expansivo e dançante, com a voz de Catarina Miranda, mais conhecida como Emmy Curl. Bruno Miguel fala-nos desta nova faixa e daquilo que representa no processo criativo do álbum que vai começar a sair aos poucos.
Acabaste de editar, há um par de semanas, o tema “Trust/Surrender”. Que faixa é esta?
Essa faixa é o princípio da amostra de um trabalho novo, o novo disco, King Ruiner, que conta com a colaboração da Catarina Miranda – e que se estende a todo o álbum. Estamos numa fase em que decidimos ir mostrando o álbum aos poucos em vez de fazer o típico lançamento do álbum, com concertos de apresentação. Este tema, “Trust/Surrender”, tinha duas coisas que eu acharia que seriam interessantes: elementos que são de fácil ligação às pessoas em termos de melodias e vozes – e que estão presentes em todo o trabalho – e é um tema comprido. Nem consideramos um single naquela verdadeira aceção da palavra nem sequer vamos trabalhar o álbum dessa forma. A nossa ideia é fazer com que os temas apresentem os vários lados do álbum. É um tema com uma certa força e euforia, com distorção ao mesmo tempo que tem bastante melodia. Não creio que seja aquelas música que se esgotem à primeira audição.
Além deste “Trust/Surrender”, dizes que a Catarina Miranda vai ter uma presença mais preponderante neste disco. Porquê?
Ela tornou-se um elemento muito importante neste álbum porque anda muito à volta da voz, mas não com o princípio de cantora, mas mais num conceito de coro. Aliás, até há um tema que se chama “Choral”. A voz da Catarina já é melódica e harmoniosa por natureza – já é conhecida do projeto dela Emmy Curl. É uma voz que funciona muito bem em termos de texturas, harmonias e melodias.
Mas a voz em :Papercutz nunca teve um papel de destaque, certo? Sempre funcionou como mais uma camada sonora.
Sim, não é normal.Habitualmente, em grupos que tens voz, costuma ser colocada num plano superior aos outros instrumentos e arranjos. Mas eu nunca fiz isso: sempre difundi mais a voz num instrumental. Aqui também faço isso, tento evitar a ideia de cantora ou solista e tratar a voz como uma instrumentação melódica e harmónica. E a Catarina, nisso, é fundamental: é preciso uma vocalista que tenha conhecimento do seu próprio registo, que se sinta confortável, para conseguirmos experimentar a partir daí.
“‘Trust/Surrender’ é um tema com uma certa força e euforia, com distorção ao mesmo tempo que tem bastante melodia. Não creio que seja aquelas músicas que se esgotem à primeira audição”
Como é que chegaste à Catarina? Porquê ela nesta altura de :papercutz?
Foi uma coisa do momento. Eu já tinha trabalhado com uma outra vocalista que não pôde seguir o trabalho a tempo inteiro e por isso procurei pessoas que já estavam mais perto de mim, daqui do Porto. Creio que vi um vídeo da Catarina no site do Bodyspace e entrei em contacto com ela. Eu não fui à procura de alguém como a Catarina: ela é que me apareceu à frente e ainda bem! Inicialmente, começamos a tratar logo de coisas como tocar ao vivo – porque ainda tinha concertos para dar – e só depois é que começamos a criar a ideia do álbum, aí já com ela. Ou seja, os concertos permitiram-me saber aquilo com que eu podia contar da Catarina e o que poderíamos fazer melhor.
Uma das primeiras impressões com que ficamos ao ouvir este “Trust/Surrender” é que há uma derivação no som dos :papercutz. Parece ser um som mais expansivo, mais dançável e eletrónico.
Concordo com isso, claro. Eu gosto sempre de dizer que é difícil dar um resumo daquilo que é o álbum através de um tema, mas de facto essa conclusão a que chegas expande-se a outros temas no álbum – não à totalidade. Acho que o disco tem um bocadinho de tudo o que já fizemos para trás e apresenta algumas coisas novas. Sem dúvida que traz esse lado mais dançável, mas isso também tem que ver com algumas coisas que tenho ouvido e também com a experiência em palco. Temos sido convidados para tocar, sobretudo, em cenário em que esse tipo de entrega é mais natural. O tipo de artistas com que normalmente tocamos também nos terá influenciado.
“As bandas não necessitam de sair do seu país para terem uma carreira que os preencha, que os desafie e complete. Mas no nosso caso, sempre foi algo muito natural”
Por exemplo: a tua experiência na Red Bull Music Academy (RBMA), em 2013, também pode ter marcado essa derivação no vosso som?
A parte dançável passa muito por alguma da música que tenho ouvido, sem dúvida, e muitas das referências até passa pela música portuguesa – algo que é fantástico, como as coisas que saem da Príncipe Discos ou da Enchufada. Mas faz sentido o que dizes da Red Bull Music Academy em termos de música eletrónica, sobretudo na parte de poder explorar outras coisas que não tinha pensado e que acabei por fazer neste disco. São coisas que se vão vendo com algum distanciamento. Pessoalmente, a RBMA marcou-me muito nas várias metodologias de outros artistas que conheci, que tinham coisas interessantes, pequenos truques que usavam para ajudar na parte da composição.
Também chegaste a novos instrumentos de trabalho com essa experiência?
Aquilo que me propus a fazer neste álbum foi explorar duas coisas: a parte acústica tento reutilizar coisas que faz lembrar a nossa sonoridade, como a percussão; mas na parte eletrónica tentei utilizar alguns instrumentos analógicos, como sintetizadores que fui comprando ao longo do tempo e que acabei por utilizar neste disco.
Referes a experiência de palco como sendo muito importante em :papercutz e o grupo, além de tocar muito, tem atuado bastante fora de Portugal. Essa experiência internacional é também fundamental na vossa carreira?
A primeira resposta óbvia é “não”: as bandas não necessitam de sair do seu país para terem uma carreira que os preencha, que os desafie e complete. Mas ao mesmo tempo, no nosso caso, sempre foi algo muito natural. Com o tempo acabamos por refletir nas coisas que se calhar fazia sentido fazermos para continuarmos esse caminho – que ainda tem muito para acontecer, até porque somos um país pequeno e somos uma banda pequena! Mas em termos criativos, abre-nos muitas perspetivas novas. Lembro-me que a primeira vez que toquei no South By Southwest, tive contacto com formas de estar na música, em palco, promoção e edição que nunca tinha visto em Portugal: abre muitas perspetivas do que é estar na música não a nível médio, como num nível indie, e lança uma série de desafios!
“Sei-me ao trabalho de ir ouvir outras representações de outros países noutros anos do Eurosonic e acho que estamos ao nível – ou até melhor. Temos artistas novos e artistas mais velhos, com a ideia de que Portugal já não é só um país a tentar furar na música”
Estão prestes a embarcar para Groningen, Holanda, para mais uma internacionalização, desta feita no festival Eurosonic. Este festival também se reveste de particular importância por ser uma montra europeia e destinada a profissionais e agentes da música?
O Eurosonic tem uma coisa que tenho-me vindo a aperceber aos poucos: há uma pergunta que é recorrente nas minhas entrevistas, que é “Como é que é a cena musical em Portugal?”. O cartaz português, este ano, é muito interessante, com muitas coisas que eu quero ouvir. Eu dei-me ao trabalho de ir ouvir outras representações de outros países noutros anos e acho que estamos ao nível – ou até melhor. Temos artistas novos e artistas mais velhos, com a ideia de que Portugal já não é só um país a tentar furar na música, mas há pessoas que estão com carreiras internacionais, com coisas interessantes para mostrar. Acho que daqui a um par de anos, e com iniciativas como as do Eurosonic, vou deixar de responder à pergunta “como é a cena musical em Portugal” e passar a responder: “O que é que saiu este ano de interessante em Portugal que nós ainda não ouvimos?”
Entrevista: Bruno Martins