Foto: Anastasia Lukovnikova
“Sempre fui à procura de algo novo, mesmo que o novo esteja no passado”
Mariano Marovatto atravessou o Atlântico há pouco mais de seis meses. O músico luso-brasileiro trouxe na sua bagagem o seu mais recente disco, Selvagem, um trabalho de recolha de canções que fazem parte do cancioneiro lusófono, tanto do Brasil e de Portugal. A investigação deste poeta, escritor e arquivista doutorado em Literatura Brasileira – neto de portugueses de Barcelos e de Vila Nova de Foz Côa – levou-o a descobrir aquilo que já tinha sido feito por nomes como Michel Giacometti, em Portugal, ou Mário de Andrade, no Brasil. Selvagem é um disco de aparente simplicidade, onde as palavras são quem mais ordena, pontuadas pelos arranjos eficazes da guitarra de Pedro Sá que levam o folclore lusófono a um outro patamar das descobertas. O disco chega às lojas no dia 3 de fevereiro, mas já pode ser escutado online.
Como é que nasce este disco, uma espécie de mistura entre os folclores brasileiro e português?
O disco nasceu no final da gravação do meu disco anterior, chamado Praia. estava à procura de uma canção indígena de “ninar” [embalar]. Encontrei uma canção do Acre, do Norte do Brasil, mas para encontrar essa canção deparei-me com um arquivo imenso do lado português – por acaso – e de indígenas brasileiros, das Smithsonian Folkways, dos EUA, que têm uma vasta biblioteca de LPs na Internet que se pode comprar. E é engraçado pensar que o Brasil está tão perto e ao mesmo tempo tão longe de Portugal: tive que ir para os EUA à procura destes disco e encontrar as recolhas do [Michel] Giacometti que são uma preciosidade e totalmente desconhecidas do público brasileiro. Por outro lado, no Brasil, o folclore é desconhecido: não está na memória normativa, é uma palavra gasta, muito impregnada de coisas ligadas à política. Não é um material que dialoga muito com a cultura direta, a não ser pela via normativa da música evolutiva brasileira, que vai do samba até à bossa nova. Nas recolhas da Smitsonian Folkways, na parte brasileira, encontrei uma caixa com as recolhas feitas pela Missão de Pesquisas Folclóricas de São Paulo, datada de 1938, que o Mário de Andrade, enviou para o Nordeste do Brasil. E de repente tinha esse material imenso da lusofonia e que estava completamente distante daquilo que é conhecido da música tradicional portuguesa – daquilo que é fado ou que é samba.
O que é que sentiu de fascinante nesses registos ao ponto de querer re-interpretá-los?
A primeira é uma coisa ancestral ou genética – nem sei bem: a minha família é toda portuguesa e escutar as pessoas de Portugal remete-me muito para a minha própria família. E, a outra coisa, é perceber a riqueza desse material. Lembro-me que quando mostrei esse material ao produtor do disco, Martin Scian, argentino que mora no Rio de Janeiro e, por isso, distante deste universo, ele respondeu: “A mim parece-me que é destas canções que vem a língua portuguesa. Parece que estás a ir buscar à fonte”. O disco tem um conceito que pode parecer imenso, mas, no fundo, são cantigas em que as pessoas cantam em várias versões. É tudo muito simples.
O Mariano, neste trabalho, dá primazia, sobretudo, às palavras. As guitarras vêm com arranjos muito simples. Recorde-nos como é que eram musicados os tais registos da origem?
A maioria eram vozes a capella, com pessoas a interpretar cantigas de memória. Eram poucas as faixas que tinham instrumento. Em Selvagem são arranjos muito simples e limpos que prezam o silêncio, o som do instrumento e da voz. É a língua portuguesa acima de tudo e a olhar para isto como um meio de repensar a cultura, não de uma forma iconoclasta ou a pensar como um resgate cultural, como um museu, mas antes mostrar o valor através de arranjos simples e eficazes.
“São arranjos muito simples e limpos que prezam o silêncio, o som do instrumento e da voz. É a língua portuguesa acima de tudo e a olhar para isto como um meio de repensar a cultura, não de uma forma iconoclasta ou a pensar como um resgate cultural, como um museu, mas antes mostrar o valor através de arranjos simples e eficazes.”
As canções originais têm uma raiz rural. Já as do disco foram reinterpretadas com a influência de um centro urbano, o Rio de Janeiro. Isso tem alguma influência na forma como o Mariano abordou estas re-interpretações?
O centro urbano é uma antena e eu recebi as recolhas todas pela Internet, claro. Os músicos também são todos de centros urbanos: o Pedro Sá, guitarrista, mora no Rio de Janeiro; a Ami Yamasaki mora em Tóquio – e não há nada mais urbano no Planeta Terra do que Tóquio! São pessoas que vivem nos centros urbanos, mas que entendem o poder do silêncio e da simplicidade sonora da coisa.
Sempre teve esta abordagem musical na sua carreira, a de ir remexer nas raízes ou este é um caminho que começa agora a traçar?
Eu sempre fui à procura de novo, mesmo que o novo esteja no passado. O que importa é evoluir na carreira musical: bater sempre na mesma tecla é sentir-se confortável por uma coisa que funcionou no primeiro momento, mas a arte é pesquisa, procura, entender o que é que está a acontecer no horizonte. O planeta roda, não vai para a frente: as coisas voltam para nós de uma outra forma e conseguimos entender isso de forma ainda mais potente. Eu tenho também a veia de pesquisador: trabalhei muito tempo como arquivista no Museu de Literatura Brasileira, tenho doutoramento em Literatura Brasileira… vasculhar papéis sempre foi uma espécie de paixão. Unir a música ao arquivo, entender de onde veio e por que veio é a grande pulsão deste trabalho.
O mundo gira e nós giramos com ele. O Mariano, recentemente, fez uma nova rodagem na sua carreira que o trouxe até Portugal. Porquê?
Não houve um motivo específico: foram questões pessoais, profissionais e musicais. O disco também me motivou a vir para cá. No início não pensava, mas era uma ideia que já tinha dentro de mim por causa da cidadania portuguesa e da família portuguesa. Sempre estudei a língua portuguesa, vinha muitas vezes a Portugal e sempre me senti em casa. Neste momento esgotou-se um pouco o Rio de Janeiro e o Brasil para mim. Fui até onde poderia ir. Os meus amigos perguntavam-me porque é que eu estava a vir para cá e eu respondia: “a vida é curta e o mundo está logo ali fora”. Portugal tem essa coisa maravilhosa de se falar português (risos). É de um extremo bom senso quando no planeta terra se fala português!
“O produtor do disco, Martin Scian, é argentino e mora no Rio de Janeiro, e quando lhe mostrei as canções, sendo argentino e distante deste universo, ele respondeu: ‘Para mim parece-me que é destas canções que vem a língua portuguesa, parece que estás a ir à fonte’”
Quer-nos explicar a sua ligação de sangue a Portugal?
Não tem muito mistério: como grande parte da população branca do Rio de Janeiro sem ancestralidade fidalga, por causa da corte, a minha família é de portugueses do Norte de Portugal que foram para o Rio de Janeiro no início do século XX, tal como para São Paulo foram os italianos e os japoneses; e para o Sul foram os alemães e polacos. A proposta do Governo era, precisamente, embranquecer a população. Era racista. Chegaram todos os meus bisavós no Rio de Janeiro e todos portugueses: um de Barcelos, outro de Vila Nova de Foz Côa e todos se conheceram no subúrbio carioca, todos portugueses, casaram-se, tiveram filhos – a minha mãe tem uns quatro avós portugueses e eu uns seis bisavós de Portugal. As minhas tias são todas umas portuguesinhas maravilhosas. E todas as tradições foram mantidas. E fiz ainda uma outra coisa: na busca pelas minhas raizes, durante este processo de Selvagem fiz um exame de DNA mitocondrial que pretende saber, exatamente, as nossas origens. É uma espécie de Google Maps que mostra de onde vem a sua família. Eu queria, de facto, ter algum sangue indígena brasileiro, mas não tenho nada! Sou 94% mediterrânico, 3% mouro e 3% negro, mas está um bocado na história do Brasil o branco ter sangue negro, mas não por vias românticas.
Está em Portugal há cerca de seis meses. Tem vontade de fazer o roteiro pelas suas raízes?
Eu já fiz isso com a minha mãe. Fomos ver algumas cidades e conhecer os primos distantes. Já fui a Barcelos e a Foz Côa, mas tenho que ir ainda a Bragança – à cidade de algumas das canções que estão no disco. É uma busca sentimental, de certa forma, mas o olhar mais para o futuro do que para o passado, entender como me posso colocar no mundo enquanto pessoa lusófona. Lisboa, embora vocês digam que é muito pequena, mas é a capital da lusofonia no mundo e isso não se encontra no Brasil: indianos falando português, não tem africanos lusófonos no Brasil. O Brasil é um lugar que fala português, imenso e gigante, e depois tem o resto. É uma ilha, muito distante, mas ao mesmo tempo muito próximo. É uma relação muito impactante.
“Os portugueses conhecem muito da música brasileira – é quase como se fosse vossa. mas escutar música portuguesa no Brasil é algo que não acontece e é uma grande falha de caráter do brasileiro. Mas o Brasil acha-se maravilhoso e precisa de um pouco mais de humildade”
Neste período em Portugal tem aproveitado para conhecer mais música portuguesa?
Sim e tem sido uma felicidade enorme! Os portugueses conhecem muito da música brasileira – é quase como se fosse vossa – e lá no Brasil não há nada. Sabemos que há Amália Rodrigues, Roberto Leal – porque vive no Brasil (risos). Os Madredeus também lá chegaram, mas escutar música portuguesa no Brasil é algo que não acontece e é uma grande falha de caráter do brasileiro – e das políticas culturais dos dois países, talvez. Mas o Brasil acha-se maravilhoso e precisa de um pouco mais de humildade. Mas sim, estou a descobrir vários outros artistas que fizeram este tipo de pesquisa, como o caso de Zeca Afonso ou Banda do Casaco. Podia nomear mais, mas posso errar porque ainda sou novo no assunto!~
Entrevista: Bruno Martins
Podes ouvir o disco Selvagem no Spotify.