“Da bateria para o piano, a diferença maior é mesmo o instrumento e não o músico”
Mudra é o nome do primeiro disco a solo de Marco Franco. Há muitos anos que se senta atrás de bombos, tarolas e pratos para projetos com uma grande proximidade ao universo jazz: os Mikado Lab e, mais recentemente, os Memória de Peixe. Agora dá corpo físico a uma outra expressão: o piano. Confessa que nunca pensou em ser concertista de piano, mas a verdade é que com este álbum instrumental, profundo reflexo de uma íntima expressão interior, apareceram também os primeiros convites para subir ao palco. Estreou-se no festival Rescaldo, com o desconforto essencial e previsível das primeiras vezes, e a coisa correu muito bem. Prepara-se agora para levar Mudra a outros pianos do país – o do Maus Hábitos, hoje à noite, no Porto, e o das Magasessions, no domingo, em Lisboa.
Há muitos anos que te sentas atrás da bateria. Neste disco mudas o teu percurso e sentas-te ao piano. Como é que se dá essa mudança?
Eu sempre gostei de transitar de instrumento em instrumento, apesar de a bateria ser o que me é mais familiar, digamos assim. Mas sempre tive a curiosidade de tocar um bocadinho de cada coisa. O piano é algo relativamente recente, ainda que tenha tido sempre teclados em casa – isto sem comparar os instrumentos, claro, já que a única parecença que há é mesmo o teclado em si e a organização das notas. Mas a prática do piano tem vindo a ganhar mais tempo. Isto não é bem uma mudança da bateria para o piano: é mais um outro instrumento onde me sento que não é a bateria.
Exprimes-te da mesma forma atrás de ambos os instrumentos?
Eu acho que sim. E isso acontece com qualquer músico que mude de instrumento ou que toque mais do que um instrumento. Não consigo distinguir muito a energia de um de outro, mas claro que há diferenças – ainda que da bateria para o piano a diferença maior seja mais o instrumento e não o músico. 02:50.
“Sozinho consigo estudar e aprender, e depois aprendo com todas as influências e pessoas que conheço e músicos, mas não num contexto de escola de música”
Como é que começa a nascer a tua vontade de tocar piano?
O apelo do piano deve-se em primeiro lugar à quantidade de música que ouço e consumo, na área também da música clássica e erudita e em particular no interesse que comecei a ter pela música para piano solo. Pensei que não ia ser um concertista de piano, mas como componho e escrevo música há muito tempo, levou-me a poder escolher o piano como instrumento de eleição.
Para descobrires coisas novas?
Sim. Os instrumentos são sempre objetos de investigação e descoberta.
Estudaste piano?
Eu nunca consegui estudar seja o que for, talvez desde os meus cinco anos. Chegando ali à terceira classe não conseguia tomar atenção a nada. Só queria que tocasse a campainha para ir para o recreio e isso acompanha-me até hoje. Sozinho consigo estudar e aprender, e depois aprendo com todas as influências e pessoas que conheço e músicos, mas não num contexto de escola de música.
Tens o chamado bom ouvido, que apanha e desenvolve só com a escuta.
Sim, penso ter alguma facilidade nisso, embora se não exercitar isso também não se consegue desenvolver. Prezo muito a minha audição.
“Se houvesse uma hierarquia – que não há – o bom ouvido é uma ferramenta fundamental para qualquer tipo de trabalho que tenha que ver com tocar um instrumento”
É também uma ferramenta de trabalho, para lá dos braços e dos dedos.
Se houvesse uma hierarquia – que não há – o bom ouvido é uma ferramenta fundamental para qualquer tipo de trabalho que tenha que ver com tocar um instrumento.
Este disco, Mudra, também nasceu muito dos teus exercícios de audição?
Sem dúvida que este disco é culminar disto tudo – de eu ouvir música, escrever e interpretá-la eu próprio – e de ter guardada muita música que não gravei. Agora optei por eleger dez faixas que achei que fariam sentido.
Cada piano tem o seu próprio som. Sabias também qual era o piano que queria usar neste teu primeiro disco, Mudra?
Eu tenho uma ideia clara do tipo de som que gosto mais: mais abafado, mais escuro, ao invés de um piano mais brilhante e aberto. Gostei sempre das gravações mais antigas, dos anos 40 e 50. Parecem ser mais inundadas de bass, mais graves, misteriosas. Mas esta não é a minha primeira abordagem à composição: isto é uma história mais antiga do que eu posso sequer precisar em termos cronológicos. Mas quando se grava há sempre um prazo, temos sempre que fechar as ideias. Depois de fazer uma gravação e encaixá-la num suporte físico, os concertos é que vão dar-lhe vida.
Antes de irmos ao lado ao vivo, explica-nos o que significa este título, Mudra.
Mudra refere-se a gestos manuais e posturas corporais, muito ligado ligado ao ioga. E pensei que o piano e a forma como as mãos têm que entrar dentro do teclado estava relacionado com esses gestos de mãos.
Também relacionado com algum lado de meditação?
Não porque eu sou demasiado ateu. A meditação é natural em mim – eu pratico sem estar associado a qualquer corrente ou escola. Este título, Mudra, ajudou-me a canalizar a ideia de fazer este disco.
“Eu tenho uma ideia clara do tipo de som que gosto mais: mais abafado, mais escuro, ao invés de um piano mais brilhante e aberto. Gostei sempre das gravações mais antigas, dos anos 40 e 50. Parecem ser mais inundadas de bass, mais graves, misteriosas”
Já estiveste a tua primeira experiência como pianista de concerto durante o Festival Rescaldo. Como é que te sentiste nesse papel?
A experiência do Rescaldo foi iniciática: foi a primeira vez que entrei num palco, sozinho, a tocar um instrumento.
Mas sentiste-te confortável nesse papel?
Não me senti muito confortável, mas também não era suposto sentir-me muito confortável. Fui bem preparado, mas houve um estado semi-fernético com que estava a contar. Mas à parte disso correu muito bem. Pela experiência que tenho de subir aos palcos, há sempre uma primeira vez – e é única! Espero não voltar a sentir o que senti nesse primeiro concerto. Mas se voltar a sentir, e se isso não me desconcentrar, tudo bem. É um desconforto natural e previsível.
Tens mais concertos marcados para breve?
Sim, toco dia 10 de março, sexta-feira, no Maus Hábitos – eles têm lá um piano vertical. E dia 12 de março, domingo, toco nas Magasessions, uma casa no Saldanha com programação da Inês Magalhães – às 18h.
Além de Mudra estás com mais projetos: em Memória de Peixe, com o Miguel Nicolau.
E tem sido a maior aventura de sempre ter conhecido o Miguel Nicolau, ter a honra e privilégio tocar com ele. O tempo parece que não passa, é uma alegria grande tocar com ele.
E Mikado Lab?
Os Mikado Lab têm um terceiro disco pronto, que foi gravado há cinco anos. Finalmente está pronto. Estou a sondar algumas editoras que possam ter interesse em editá-lo.
Bruno Martins