1977 até pode ser conhecido como o ano em que o punk explodiu mas é também o ano em que saiu um dos discos eletrónicos mais importantes da história: Trans Europe Express (Trans Europa Express na versão original), o quinto álbum dos alemães Kraftwerk (sexto se contarmos o disco assinado pelos “fundadores” Ralf Hutter e Florian Schneider como Ralf & Florian, em 1973), à sua maneira também um disco punk, no sentido em que fazer musica pop sobre comboios, só com sintetizadores, era tão revolucionário como usar guitarras estridentes para expressar descontentamento. O ar aprumadinho dos Kraftwerk não podia ser maior antítese para as t-shirts rasgadas dos Sex Pistols mas, apesar da fama de bem comportados, toda a obra dos alemães acabou por ter eco na musica que sucedeu ao punk: pós punk, no-wave, new wave, electro e hip hop, neo românticos e pop eletrónica em geral, techno e house também, obviamente. Toda a gente foi buscar alguma coisa aos Kraftwerk – todos quiseram apanhar o comboio da musica eletrónica.
Os Kraftwerk, um dos nomes mais destacados do chamado krautrock, o rock feito na Alemanha no final dos anos 60, inícios de 70, assente numa base rítmica forte e dado a divagações cósmico-filosóficas facilitadas pelo uso de instrumentos electrónicos, mesmo sendo desalinhados de todos os movimentos (esse incluído), sempre gostaram de discos conceptuais (e nisso estavam muito próximos de toda a cena progressiva). Autobahn era sobre a autoestrada, Radio Activity sobre radioatividade e também sobre radio enquanto meio de comunicação, Computer World sobre um mundo dominado por computadores, Tour de France sobre ciclismo. As ideias de viagem, movimento e comunicação são fulcrais na obra dos Kraftwerk, por isso não é de estranhar que Trans Europe Express seja um disco sobre comboios, ou sobre o comboio como veiculo e símbolo de uma Europa unida.
O Trans Europe Express (T.E.E.) existiu mesmo, entre 1957 e 1984. Oferecia luxo, rapidez, segurança e uma união simbólica da Europa, extensão do otimismo pós-guerra e da dinâmica social e económica das décadas de 60 e 70. Em 1977, ligava 130 cidades europeias. Era perfeito para o imaginário de operários musicais que Ralf Hutter e Florian Schneider, dois alemães de Dusseldorf com formação clássica e fascínio por sintetizadores, gostavam de cultivar. A ideia foi sugerida por um jornalista durante um almoço em Paris com vista para a linha férrea. A sugestão original foi a de uma musica sobre o T.E.E., mas os Kraftwerk foram mais longe e usaram o comboio como mote para todo o disco.
A viagem começa com “Europe Endless”, uma celebração em tom nostálgico do sonho europeu, mas é em “Trans-Europe Express”, “Metal on Metal” e “Abzug”, três faixas que funcionam como um épico de quase 15 minutos, que a influência do comboio se faz sentir verdadeiramente, com o som dos carris a ser aproveitado para construir a base rítmica que nos embala num percurso imaginário entre o passado e o futuro e inclui paragens para encontrar Bowie e Iggy Pop (o que de facto aconteceu mesmo, antes da gravação do disco, fruto de admiração mútua e do facto de Bowie e Iggy estarem, nessa altura, em Berlim).
Trans Europe Express é um disco sobre o movimento e as máquinas, mas também sobre o desconforto da fama. Por alguma razão é também o ultimo disco em que os Kraftwerk surgem com forma humana, ainda que com aspeto de manequins. No disco seguinte, Man Machine, nascem os robots (alguém disse Daft Punk?). O fato de homens máquina certamente protegeu das luzes e da curiosidade alheia, os Kraftwerk, Ralf e Florian, sobretudo, claramente, não eram, nunca foram, animais sociais, davam-se mal na pele de estrelas pop e isso transparecia no hipnótico e arrepiante “Hall of Mirrors”, ou em “Showroom Dummies”, uma das canções mais conhecidas dos Kraftwerk e também um dos mais irresistíveis exercícios de ironia em redor da fama: “estamos aqui, a mostrar-nos, somos bonecos em exposição”, diz a canção.
(o “eins, zwei, drei, vier” do inicio, segundo declarações de Ralph Hutter, será uma homenagem ao “one, two, three, four” dos Ramones, o que, no fundo, torna a ligação ao punk mais efectiva do que poderia parecer))
Mecânico, sintético, repetitivo, desafiante, Trans Europe Express mantém todo o arrojo e fascínio 40 anos depois de ter sido editado (em 1977, o ano do punk, mas também o ano de “I Feel Love” de Dona Summer, outro dos grandes momentos da história de musica feita com máquinas, mas isto é só um aparte para sublinhar a importância simbólica de 1977 no estilhaçar de formatos musicais). Na verdade, a única coisa que não parece ter sobrevivido neste disco dos Kraftwerk é mesmo o T.E.E. ou até a ideia de uma Europa unida.
De um ponto de vista estético e também de método, Trans Europe Express é um dos discos mais influentes da história da musica popular. A faixa titulo, em particular, foi samplada por quase toda a gente do hip hop, de Afrika Baambata em “Planet Rock”…
…a Busta Rhymes e Pharrel em “Light Your Ass On Fire”.
Mas o efeito de contaminação foi alargado em termos de géneros. Incubus samplaram “Hall Of Mirrors”…
…e Siouxsie and the Banshees, uma das principais referências do pós-punk britânico de inclinação gótica, fizeram uma versão da mesma canção.
A lista de gente samplou diretamente, fez versões, copiou, citou ou foi simplesmente influenciado pelos Kratwerk é extensa e quase impossível de fazer. Inclui Dr Dre, Madlib, De La Soul, Frank Ocean, Diplo, Carl Craig, Depeche Mode, até Madonna ou Coldplay. A musica mecânica que a banda alemã criou multiplicou-se infinitamente na cultura popular, a simbiose homem-máquina que propuseram teve um efeito de contágio que se faz sentir até hoje. Trans Europe Express, em particular estendeu a sua influência por todos os territórios musicais conhecidos, as suas linhas melódica e rítmica disseminaram-se em todas as direcções, foram absorvidas pelo inconsciente colectivo e, de certo, modo fazem parte do ADN tecnológico-cultural em que vivemos. Senõr Coconut, alter ego latino do alemão Uwe Schmidt, também ele um herói da eletrónica (mas dos anos 90 em diante como Atom Heart, Lisa Carbon ou Los Samplers, entre uma imensidão de outros alter egos), no disco que dedicou a versões latinas dos Kraftwerk (El Baile Aleman, Emperor Norton, 1999), transformou a faixa titulo numa cumbia mutante e Showroom Dummies num infeccioso cha cha cha.
Kraftwerk actuam com espectáculo 3D no Festival Neopop 2017
Isilda Sanches