“Em 1992 havia uma atmosfera muito boa nos EUA. Havia um elogio à diversidade de pensamento”
Quando Speech nos atendeu o telefone lá do outro lado da linha, em Atlanta, nos EUA, nem queria acreditar quando lhe dissemos que o primeiro disco dos Arrested Development estava a celebrar 25 anos. É verdade: temas como “People Everyday”, “Mr. Wendel” ou “Tennessee” celebram hoje, dia 24 de março de 2017, o vigésimo quinto aniversário de edição. Foi neste dia, em 1992, que saiu para a rua o álbum de estreia dos Arrested Development, 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of… Num ano muito especial para o rap, em que saíram discos como Check Your Head, dos Beastie Boys, The Chronic, de Dr. Dre, Business Never Personal, dos EPMD, ou ainda Mecca and the Soul Brother, de Pete Rock & CL Smooth, foi este disco — que vem com o título do tempo que os Arrested Development demoraram até conseguir um contrato discográfico — que deu ao grupo o Grammy de Melhor Performance de Rap e também de Melhor Novo Artista. Foi também com este álbum que os Arrested Development receberam o troféu da revista Rolling Stone de Banda do Ano.
Ao contrário do que estava a ser prática para uns — hip hop com uma mensagem mais violenta, o chamado Gangsta Rap — os Arrested Development nasceram com uma outra intenção: a proposta de uma mudança pessoal, interior, harmoniosa para se conseguir almejar uma mudança política e social baseada no afrocentrismo, que também já era apregoado por bandas como De La Soul, Jungle Brothers ou A Tribe Called Quest.
Speech, figura de proa dos Arrested Development, recuou até 1992 para lembrar como eram então os Estados Unidos e de que forma inspiraram a criação deste 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of… Mas esta não é só uma conversa sobre o passado: em 2016 os Arrested Development editaram dois discos, Changing The Narrative e This Was Never Home, por isso também quisemos saber, e num período em que as motivações políticas e sociais fervilham em solo americano, de que forma é que Speech olha para os ritmos e para a poesia como defensoras de causas.
O que é que têm feito ultimamente? O ano passado editaram dois discos novos…
Estivemos em estúdio durante quatro anos. Gravámos com o produtor Khao, que é um grande produtor. Estivemos muito tempo a gravar, mas também passámos muito tempo em digressão: estivemos em África, Europa, na Austrália… passámos pela Nova Zelândia, pelo Canadá… andámos por todo o mundo. Foi muito bom.
O que é que o público vos diz do vosso regresso aos palcos?
O que eu adoro na nossa carreira é que as pessoas gostam muito dos vários períodos dos Arrested Development. É claro que gostam de ouvir “Tennessee” e a “People Everyday”, mas o público também aprendeu a escutar temas como “Bloody” ou “Let Your Voice Be Heard”. Estas canções também se tornaram importantes nos nossos alinhamentos.
Têm feito discos nos últimos anos, é certo, mas a vossa carreira passou por um grande hiato. O que é que vos motivou a voltar aos discos?
Várias coisas: uma é que todos estávamos com muita vontade de fazer música juntos. Sentimos que o nosso tempo juntos, no início dos anos 1990, foi muito pouco, não nos permitiu atingir o nosso potencial, e por isso quisemos juntar-nos e tentar fazer outra vez coisas. Tenho que dar crédito à Eshe, a nossa bailarina: foi ela que me ligou: “Speech, precisamos de fazer um novo disco de Arrested Development”, e isto foi em meados de 1999. E eu concordei com ela. Foi nessa altura que aquelas coisas que nos tinham feito irritar uns com os outros começaram a dissipar-se. Só dois elementos é que não se quiseram reunir: o Headliner e o Aerle Taree. O resto foi para estúdio trabalhar em disco novo — o Heroes of the Harvest, em 2001.
“O nosso tempo juntos, no início dos anos 1990, foi muito pouco, não nos permitiu atingir o nosso potencial, e por isso quisemos juntar-nos e tentar fazer outra vez coisas”
Achas que hoje é importante voltar a escutar aquilo que se fez em discos como 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of…? É importante voltar aos clássicos?
Sem dúvida. Eu não digo isso por causa dos Arrested Development — diria o mesmo que não tivéssemos tido sucesso. Quando estávamos a fazer música, naquelas canções que viriam a tornar-se clássicos, prestámos homenagem aos Sly & The Family Stone, ao Prince, ao Bob James. Prestámos homenagem a toda a gente que nos antecedeu porque era isso que o hip hop sempre fez. É muito recente este conceito de uma geração de novos miúdos que nem sequer sabem que são os Public Enemy, os Arrested Development. Nunca ouviram Run DMC, não conhecem o LL Cool J a não ser como ator, ou no Ice T e Ice Cube enquanto atores. É muita reeducação que tem de acontecer para ajudar a nova geração a perceber que é importante prestar homenagem a estes artistas que existiram no passado. Foi assim que nasceu o hip hop.
E as temáticas que abordavam em 1992 ainda fazem sentido hoje em dia?
Acho que hoje ainda fazem mais sentido. Há muitos artistas no chamado universo underground que falam desses temas, mas os mais populares não falam sobre nada disso, sobre política ou sobre mensagens mais edificantes. O que nós oferecemos ainda é bastante relevante.
Sobre o que é que falam os vossos mais recentes discos?
Foram muito fáceis de escrever: canções como “Devoted To The People”, em que queríamos mudar a narrativa da devoção ao dinheiro, ao sexo e drogas para a devoção das pessoas. Mudar o poder dos indivíduos e da humanidade. Uma espécie de ativismo local. As pessoas continuam a falar da forma como as músicas batem na discoteca e com quantas mulheres estão a andar, mas depois há tantos assuntos que são importantes de que ninguém fala!
Achas que para as pessoas tomarem atenção, é preciso acontecer coisas mesmo muito graves?
Se as pessoas estiverem a dormir, só vão acordar com experiências muito difíceis. Mas se as pessoas estiverem conscientes, não vai ser difícil. No início dos anos 1990, tínhamos muitos grupos de sucesso, como os Public Enemy, KRS-One, X Clan, A Tribe Called Quest, Arrested Development… e não havia como presidente uma pessoa como o Donald Trump! Não é preciso haver uma situação horrível, mas quando as pessoas decidem adormecer, tornam-se inconscientes — e aí sim, é preciso uma situação grave para despertarem. É o que está a acontecer nesta altura.
“Quando estávamos a fazer música, naquelas canções que viriam a tornar-se clássicos, prestámos homenagem aos Sly & The Family Stone, ao Prince, ao Bob James. Prestámos homenagem a toda a gente que nos antecedeu porque era isso que o hip hop sempre fez”
O nome Arrested Development nasceu a partir da teoria de que havia uma espécie de impedimento do desenvolvimento da comunidade afro-americana. Isso voltou a acontecer — e hoje não só com a comunidade afro-americana?
Com o Donald Trump há um novo movimento de medo. Ele propaga uma mensagem de medo de tudo aquilo que não é percebido: os negros, os mexicanos, os islâmicos, os homossexuais, imigrantes… medo de tudo que não seja os homens brancos. Foi esse medo que fez com que tantas pessoas tenham ido votar nele.
Mil novecentos e noventa e dois foi um ano muito importante na história do hip hop, em que foram editados grandes discos que se tornaram clássicos: Beastie Boys, Dr. Dre, Pete Rock e CL Smooth… e este 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of…. O que é que aconteceu nesse ano para haver tantos discos incríveis e, ainda assim, terem sido vocês ganharem o Grammy de Melhor Novo Artista e a vender quatro milhões de discos?
Nunca podemos subestimar a atmosfera das coisas. Em 1992 havia uma atmosfera muito boa nos EUA. Havia um elogio à diversidade de pensamento: quanto mais diverso fosses, melhor eras. Por exemplo: no hip hop, se eu viesse do sul, era esperado que eu trouxesse um som que era próprio; se fosses de Nova Iorque ou Los Angeles a mesma coisa. Todos tinham o seu próprio som, um pensamento diverso que era trazido para a mesa. Hoje, se ouvires o hip hop mais mainstream soa, praticamente, tudo ao ao mesmo — tirando honrosas excepções: J.Cole, Kendrick Lamar, Childish Gambino… mas 90 por cento do hip hop parece que vem do mesmo local em vez de se celebrar a diversidade.
“Todos tinham o seu próprio som, um pensamento diverso que era trazido para a mesa. Hoje, se ouvires o hip hop mais mainstream soa, praticamente, tudo ao ao mesmo — tirando honrosas excepções: J.Cole, Kendrick Lamar, Childish Gambino… mas 90 por cento do hip hop parece que vem do mesmo local em vez de se celebrar a diversidade”
Qual era a marca do som dos Arrested Development?
Para nós era a celebração da música gospel, blues, hip hop de Nova Iorque. Mas eu sou de Milwaukee — nascido e criado no Midwest — e lá não havia, propriamente, um som. O que era fixe é que no Midwest celebrávamos todos os géneros! Antes de os Arrested Development aparecerem, eu era DJ e tocava tudo: desde Planet Rock, passando por Planet Patrol, Arthur Baker ou Malcom McClaren até aos Run DMC e Def Jam. Tudo o que possas imaginar! Por isso mesmo é que eu, enquanto produtor, também quis experimentar sons tão diferentes. Mas quando me mudei para o Sul, para Atlanta, fiquei fascinado pelo som que havia por lá: o velho gospel, o blues mesmo velho, lamacento, sujo que parecia que vinha dos barracões do passado. Canções como “Mama’s Always On Stage” vem dessa energia.
É essa marca sulista que vos continua a inspirar?
Acho que sim, especialmente no disco Changing The Narrative.
O que é que aconteceu depois de 1992? Venderam cinco milhões de discos e ganharam muitos prémios. Mas é relativo falar em sucesso? É tudo uma questão de perspetiva?
Sem dúvida. Para mim depende daquilo que cada artista quer cumprir e na forma como se vai atrás do sucesso — da fama e dinheiro. Eu não estava naquilo pelo dinheiro, mas pela arte, pelo impacto que pode criar algo. Quando atingimos a fama, foi difícil perceber como é que íamos navegar nesse universo: éramos um grupo mais preocupado por aquilo que se comia, ou preocupados em tratar mulheres com respeito, ir aos guetos e falar sobre empowerment [capacitação] da comunidade afro-americana… era tudo isso que me interessava, mas entretanto andávamos a navegar por sítios que só queriam saber de vendas de discos, de usar diamantes e roupas caras, e tornou-se difícil estar nos dois lados. Isso teve um peso nos Arrested Development. Quando o dinheiro se tornou no centro de tudo, parece que deu permissão a nomes como [Notorious B.I.G] Biggy ou Puff Daddy para andarem a aparecer em jatos privados, a usar fatos e a ser CEOs de empresas. O único grupo que ia contra essa perspetiva eram os Fugees. Nós já estávamos a separar-nos em 1994 e 1995.
O que é que estão a pensar fazer em 2017 para celebrar os 25 anos de 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of…?
Espera, celebramos 25 anos do primeiro álbum?
Sim! Foi editado a 24 de março de 1992!
Nem me tinha apercebido disso… Não sei bem, até porque temos canções novas, mas que acho que vai ser difícil de vender porque não soa à música de hoje. Eu também estou a trabalhar com uma guionista naquele que será um filme sobre os Arrested Development: sentimos que há uma história que tem que ser contada sobre o grupo. E é isso! Havemos de fazer digressão, também — Tailândia, Caraíbas, Europa… há muitos concertos para serem feitos, com os clássicos e com a música nova.
Entrevista: Bruno Martins