“Se não fizer sacrifícios e não me entregar à música vamos estar aqui a fazer conversa de elevador, de circunstância, a falar sobre o tempo”
Não demorou muito para que Slow J se tivesse tornado numa das maiores figuras da música portuguesa da atualidade. “Bastou” um EP de estreia, The Free Food Tape, editado em 2015 e que apanhou o mundo meio de surpresa. Cresceu devagarinho, com o passa-a-palavra de temas incríveis como “Portus Calle”, “Tinta da Raiz” ou a impressionante “Cristalina”. E, de repente, já todos sabiam quem era João Batista Coelho: um verdadeiro alfaiate de palavras e pensamentos, que fazia-o de forma ágil e sábia, que sabia ser delicado e agressivo — tudo ao mesmo tempo. Foram com todos esses predicados, mas sem pressas, que o produtor e MC cresceu para o seu álbum de estreia: The Art Of Slowing Down, que confirma o talento para a escrita de canções. Já lhe sabíamos do sangue sadino; das viagens entre Setúbal, Alenquer, Carcavelos e Londres — para estudar engenharia de som. Agora quisemos saber mais da sua arte: se é arte, se é ar de duro e se também arde — se obriga a muitos sacrifícios. Slow J responde a tudo: diz que quer andar cá mais 20 ou 30 e não lhe interessa a conversa de circunstância ou sobre o estado do tempo.
O título do teu disco, The Art of Slowing Down, remete para a ideia de um abrandamento. Porque é que sentiste que foi necessário abrandar?
Por várias razões na minha vida pessoal. Quando era miúdo era muito trapalhão, era daqueles que andava sempre a deixar cair tudo. E lembro-me que houve um dia específico que levei um grande sermão e dei por mim a pensar que se fizesse as coisas mais devagar, ia correr melhor. É a partir desse momento em criança que começo a sentir o início do trajeto enquanto Slow J (sorri) ainda que na altura não estivesse a pensar nem em fazer rap ou música! Hoje de manhã vinha para cá e vinha a pensar como o sucesso pode ser uma coisa que dificulta tanto: às vezes é pior que uma música tua corra muito bem, do que muitas a correr mais ou menos. Quando uma corre muito bem, para um artista é muito mais complicado ir ao segundo assalto reinventar-se, não fazer quase a mesma coisa que correu muito bem.
E enquanto preparavas este disco sentias que as coisas estavam a correr-te bem?
Sim, estava a sentir que as coisas estavam a sair bem, mas sinto que consegui não cair em nenhuma fórmula. Ao mesmo tempo nenhuma das minhas músicas foi desmesuradamente maior do que as outras. O trabalho tem sido sempre de aumentar a consistência, acima de tudo. De cada vez que lançamos uma música nova, todas elas sobem mais um bocadinho. E quando forem muito grandes, vão ser todas muito grandes!
É o que procuras: ter canções grandes?
Procuro ter canções que impactem as pessoas de formas que eu considero positivas, que influenciem a sociedade no sentido de alterar a mentalidade sempre em direções que eu considero positivas. Namoro um bocado com a ideia de um concerto onde toda a gente canta todas as letras do início ao fim e não aquele concerto onde há aquele hit que toda a gente canta e depois há aqueles gri-gris.
O primeiro concerto deste The Art of Slowing Down aconteceu um dia antes do disco sair. O que é que sentiste da parte do público?
O objetivo era poder apresentar todas as músicas ao mesmo nível, sendo que algumas já tinham saído, por isso as pessoas já conheciam melhor.
Mas sentiste gri-gris ou sentiste qualquer coisa no ar, impactante nas novas canções?
Achei interessante porque as pessoas estão habituadas a que um grande concerto seja uma coisa sempre aos saltos do início ao fim e ali tivemos, claramente, de introduzir uma nova maneira de fazer as coisas. No tema “Biza”, por exemplo, no solo de dois minutos de trompete, o pessoal estava mesmo a ouvir, à espera das notas finais para mandar um grande aplauso; ou o “Às vezes”, em que entra o Nerve, e estou eu a cantar e sentia bué as pessoas a sentirem a música, mas como quem está a ouvir a música nos phones pela primeira vez.
Além da arte do abrandamento do título, também falas de Arte logo no primeiro tema. Perguntas se é “arte ou ar de duro”. Permite-me um outro trocadilho: a tua arte também te arde? Também te arde quando contas os teus segredos?
Às vezes o exercício é de eu tentar ser ainda mais honesto do que aquilo que eu queria realmente ser. E nessa situação até me ponho a pensar: “será que é mesmo isto que eu devo dizer?” Mas depois também há o contrário: quando um sentimento é de muita tristeza ou alegria é tão forte que se torna num simples deitar cá para fora. O tema “Às Vezes”, por exemplo, foi escrito muito rápido. A única do EP que foi desse género foi a “Cristalina”. Estava tão triste e chateado com a situação que foi escrever até ao fim. O arder já tinha acontecido!
O teu rap é muito confessional — já tinha sido assim no teu primeiro EP. Isso às vezes pode ser um sacrifício? Não tens embaraços e dúvidas para expores o teu interior de forma tão declarada?
Eu tento mesmo fazer esse exercício. Eu tenciono estar aqui a fazer uma carreira durante 20 ou 30 anos e se não fizer esses sacrifícios e não me entregar à música vamos estar aqui a fazer conversa de elevador, de circunstância, a falar sobre o tempo. Tanto na música como nas minhas relações, com os meus amigos todos, tento fazer um bocado esse exercício de falar com uns e com os outros sobre aquilo que penso e sinto realmente, o que quereo mudar.
“A música é também a minha maneira de deitar cá para fora. Há pessoas que vão ao psicólogo todas as semanas. Se eu passo três dias sem fazer música perco um bocado o meu equilíbrio. Há pessoas que vão correr, eu tenho de fazer música. E por acaso também ganho dinheiro com isso. É ótimo”
Além do lado mais confessional do teu rap, há também um olho atento àquilo que se vai passando à nossa volta. Já o tinhas feito no Free Food Tape e depois num dos primeiros singles deste The Art of Slowing Down, “Pagar as Contas”. Mas também me parece que falas dos sacrifícios no início do tema “Biza”: primeiro a tua bisavó, depois a tua avó e depois o teu pai.
Exatamente. É como um ciclo, não é? Alguém dizia que os filhos dos ricos vão ser burros, os filhos dos burros vão ser pobres, os filhos dos pobres vão ser inteligentes e os filhos dos inteligentes vão ser ricos. O ciclo da vida estabelece-se assim e foi à volta dessa ideia que escrevi a canção, não levando o conceito à letra.
O tema “Sonhei Para Dentro” é o mais declarado sobre as dores de crescimento de uma geração. E escolheste um sample de Carlos Paredes para te guiar nessa música. O que é que esse sample, aquela volta de guitarra, te fez sentir?
O que me atraiu no sample foi a agressividade, ao mesmo tempo que é etéra. Tem um brilho. O agudo daquela guitarra não te magoa o ouvido como magoa uma guitarra elétrica. E vem com a identidade portuguesa: é o som que mais sentes, enquanto português, o da guitarra portuguesa.
“Muitos manos querem, muitos manos têm, poucos querem suficiente”, dizes nessa música. Não é só uma questão de oportunidades, é também uma questão de vontade?
O sucesso é uma questão de trabalho consistente. Se mantiveres um trabalho da mais alta qualidade durante dez anos vais ter sucesso — é um bocado inevitável. Seja no YouTube, na rádio ou na televisão, algum rádio vai ter de dizer. Eu sinto que a música tem papéis muito diferentes na vida de muitas pessoas, mas eu sinto que tudo o que vou concretizar depende sempre tudo de mim.
O que é que a música hoje representa para ti?
(pausa) Hoje estava a sair de casa à pressa, já vinha atrasado. Vinha da Parede até à rotunda grande de Carcavelos e é horrível fazer aquilo sem música! (risos) Estava em silêncio, a fumar o meu cigarrinho e depois de tomar o meu batido, mas não era suficiente! Eu tenho um rádio do carro bué podre, liguei o jack ao telefone e começa a fazer interferência e em vez de desligar o rádio andei com o telefone no ar à procura do ponto em que não fizesse interferência, só para continuar a ouvir música. Isso descreve o que a música representa para mim?
“O sucesso é uma questão de trabalho consistente. Se mantiveres um trabalho da mais alta qualidade durante dez anos vais ter sucesso — é um bocado inevitável. Seja no YouTube, na rádio ou na televisão, algum rádio vai ter de dizer. Tudo o que vou concretizar depende sempre tudo de mim”
Isso é do ponto de vista de um ouvinte. Mas a música para ti não tem uma importância só como ouvinte.
A música é também a minha maneira de deitar cá para fora. Há pessoas que vão ao psicólogo todas as semanas. Se eu passo três dias sem fazer música perco um bocado o meu equilíbrio. Há pessoas que vão correr, eu tenho de fazer música. E por acaso também ganho dinheiro com isso. É ótimo.
Então como é que consegues chegar à arte de abrandar?
Pois… (risos) Interessante, não é? O próprio processo do disco forçou-me a isso: estava previsto ter lançado o disco em outubro, mas houve um ponto no fim do verão em que eu estava a entrar em colapso mental, de tanta informação e das horas por dia que passava a lidar com a aquilo. Tive de tirar férias, mas quando cheguei a Bristol — fui ter com a minha namorada — e adoeci, imediatamente.
“O que me atraiu no sample de Carlos Paredes foi a agressividade, ao mesmo tempo que é etéra. Tem um brilho. O agudo daquela guitarra não te magoa o ouvido como magoa uma guitarra elétrica. E vem com a identidade portuguesa: é o som que mais sentes, enquanto português, o da guitarra portuguesa”
Tiveste de abrandar. Foi daí que nasceu o título do disco?
Não, o título já existia. O que foi um bocado profético para a minha vida: depois de saber que ia ser esse o título, eu próprio tive de experienciar o que é abrandar. Parecia que o disco me estava a ensinar à medida que eu passava pelo processo. Comecei a ter uma prática de meditação mais regular e a ter mais calma com as coisas.
O Fred Ferreira e o Francis Dale acompanham-te, já há algum tempo, ao vivo. Também te ajudaram na produção?
Mais ou menos. Na produção acabámos por trabalhar pouco uns com os outros. Mas tínhamos salas uns ao lado dos outros, por isso tínhamos os ouvidos atentos. Na prática, o que ficou do Francis foi a voz no final do tema “Às Vezes”…
“Este disco é uma perspetiva sobre o meu processo de crescimento pessoal, desde que nasci até aqui…”
As guitarras?
Também, na guitarra acústica que entra a meio da “Casa”.
A “Serenata” és tu a tocar guitarra? Ainda não te conhecíamos esses dotes.
(risos) A pouco e pouco vai sendo revelado! Não percam os próximos episódios!
Se tivesses de tirar uma fotografia panorâmica a este disco, como é que sairia na revelação?
Este disco é uma perspetiva sobre o meu processo de crescimento pessoal, desde que nasci até aqui…
E em comparação com o The Free Food Tape?
O EP é um bocado mais distante das pessoas. É como se me conhecesse pior a mim do que me conheço agora. Só consegui ser honesto comigo até certo ponto, logo consegui ser honesto com as pessoas também até certo ponto. Se bem que eu sinto que aquilo que disse na The Free Food Tape foram honestas, mas sinto que há frases que não diria da mesa forma. Está mais escrito como uma pessoa que escreve para quem vai ler e neste álbum está muito mais coloquial. E esse era um dos meus objetivos, porque a música não é para ler, é para ser ouvida.
No tema “Às Vezes” dizes: “Eu estou perdido entre o que eu quero ser e o que ainda não sou”. Tens noção de tudo o que queres ser?
Eu tenho estado a tentar deixar de controlar isso. A gente faz a nossa parte e depois os resultados têm sido ainda maiores do que aquilo que planeávamos. Então mais vale deixar de tentar afunilar os resultados porque depois vêm surpresas boas. Dos nossos objetivos para o EP, superámos tudo o que tínhamos estabelecido e com o álbum para lá caminha.
Entrevista: Bruno Martins