“Para mim é essencial criar um espaço onde a história da música decorre”
O último ano de Keso foi recheado daquela boa agitação. Dois mil e dezasseis marcou o regresso do rapper do Porto aos discos: lançou KSX2016 três anos depois de ter editado O Revólver Entre As Flores, o álbum de 2013 (mas que já estava pronto desde 2009); voltou aos palcos; recebeu convites para festivais de música e foi até ao Brasil participar no festival Terra do Rap. Hoje tem também um programa de rádio e lançou, há poucas semanas, o seu primeiro videoclipe que também realizou.
Marco Ferreira, 30 anos, tripeiro de gema, regressou a casa depois de cinco anos a morar em Lisboa e de mais uma temporada emigrado em Inglaterra, num bairro no Norte de Londres. “Saí de um gueto para acabar num gueto”, queixa-se em “Defeito Sério”, tema que abre KSX2016, composto já no regresso ao seu Porto, finalmente. “Se me vês a acenar a mano, diz ao Porto que eu o amo, diz ao meu país que eu o amo”, ouve-se em “Bruce Grove”.
É um disco de passado e presente. A marca de uma emigração, com a saudade escrita e descrita de forma emocionada. “Londres acaba por associar o disco a uma experiência no exterior, mas acho que o álbum deve focar-se, e isso é claro de uma ponta à outra, na precariedade, nas condições de trabalho, a desonestidade”, diz-nos Keso — feliz hoje por estar em casa e a trabalhar, “constantemente”, naquilo que mais gosta de fazer: música.
Um ano depois do lançamento de KSX2016 — “vai fazer um ano no dia 6 de maio”, sublinha — Keso continua a mostrá-lo ao vivo. Diz, a rir, que lança discos de seis em seis anos — esperemos não ter de esperar tanto para um próximo.
No próximo sábado vai estrear-se em Braga, no espaço TOCA – Trabalho de uma Oficina Cultural e Associativa — onde vai tocar com o DJ Spot e dividir a noite com o amigo Nerve.
Qual é o balanço que fazes deste último ano?
Como deves imaginar isto foi novo para mim. Embora tenha já três discos, esta foi a primeira vez, ao que parece, que consegui chegar mais às pessoas. Foram vários canais que se abriram para mim e para a minha música. Isso notou-se na comunicação e nos concertos. O KSX2016 marca, se calhar, um ponto de viragem na minha carreira nesse sentido.
Isso é de um ponto de vista artístico. Mas pessoalmente o que é que o KSX2016 significou para ti?
Se calhar não vejo grandes diferenças enquanto pessoa. Continuo a pensar e a fazer as coisas da mesma forma. Acima de tudo trouxe-me a possibilidade de estar constantemente a lidar com a área de que gosto, que é a música e o som. Do lado mais artístico eu acho que até estou menos sensível… se calhar estou menos empenhado na parte da criação, a aproveitar aquilo que o disco me trouxe de bom. Estou a fazer um equilíbrio entre a parte prática do KSX2016 e a minha vida.
“Este disco aparece mesmo com a ideia de regressar ao método de produção mais simples possível, como era antigamente: pegar na MPC, criar e fazer as coisas simples. Rappar e cantar em cima daquilo”
Ainda não há vontade de voltar aos discos?
Eu tenho imensa vontade. Estou a trabalhar num projeto que estou a fazer com muita calma, depois da minha visita ao Brasil, em dezembro. Mas não tenho a intenção de fazer já um disco, mas sim crescer com os espetáculos e com estas experiências. Aproveitar tudo o que o que o disco me deu até agora, que está a ser incrível.
Como é que foi voltar às edições? Passaram-se sete anos desde o teu disco anterior, O Revólver Entre As Flores — um disco feito em 2009, mas editado só em 2013.
Eu lanço disco de seis em seis anos (risos). O KSX chama-se assim para fazer referência ao meu primeiro nome que usei em disco, em 2003: KS Xaval. O KSX2016 faz a referência ao Xaval hoje em dia, porque quando parti para disco fui com a ideia de voltar à essência da produção do rap e ao rap em si, ao contrário do que andava a fazer nos últimos anos, no interregno entre o Revólver… e o último disco, em que estava mais envolvido com sonoridades novas, a fazer muitos testes e a experimentar muitas coisas. Este disco aparece mesmo com a ideia de regressar ao método de produção mais simples possível, como era antigamente: pegar na MPC, criar e fazer as coisas simples. Rappar e cantar em cima daquilo.
“O Nerve, além de ser meu amigo, é um artista que admiro muito”
Viveste em Lisboa entre 2005 e 2010. Depois mudaste-te para Londres, onde viveste mais um par de anos até regressares ao Porto. Essa mudança teve uma importância especial neste disco.
Eu não faria da experiência de Londres o mote do disco, mas sim da experiência do mercado de trabalho. O Revólver Entre As Flores é lançado numa altura em que eu termino os meus estudos e entro para o mercado de trabalho — e daí este interregno de praticamente seis anos em que praticamente só estive a trabalhar: dediquei muitas horas ao trabalho extra-música. O KSX2016 ficou muito associado, se calhar, a dois temas não menos fortes — o “Bruce Grove” e “Defeito Sério”. Londres ajudou, mas a minha relação com Londres já era antiga. Há quem diga que eu tenho influências do grime e de artistas como o James Blake e aquela malta toda que surge ali nas malhas de Dalston e de Shoreditch…
Trouxeste isso de lá contigo?
Não, porque já lá estava. Eu já conheço Londres há muito tempo, já tinha essa identificação com essas bandas inglesas há muito tempo, algumas delas ainda antes de serem o que são hoje, como os Mount Kimbie ou do próprio James Blake. Londres acaba por associar o disco a uma experiência no exterior, mas acho que o álbum deve focar-se, e isso é claro de uma ponta à outra, nos temas da precariedade, das condições de trabalho, na desonestidade.
Não só em Londres…
Não. No mundo inteiro e em Portugal, principalmente.
O teu primeiro vídeo — de sempre! — foi filmado e apresentado há muito pouco tempo…
O “Brucegroove”, precisamente. O KS Xaval foi editado há 14, quase 15 anos. Nunca tinha feito um videoclipe e fiz questão que fosse realizado e editado por mim.
E marcou o teu regresso a Londres.
Exatamente. O regresso foi bom. Eu vivi sempre na zona norte, em Seven Sisters — no Bruce Grove. São zonas que não são muito frequentadas nem muito turísticas. São zonas com grande habitação, mas essencialmente para classes baixas, zonas um bocado… perigosas. Aliás, o Bruce Grove é precisamente onde começam os riots de 2008, em Tottenham. São zonas maioritariamente negras, hoje com uma grande presença do leste. São zonas pobres. Eu voltei a Londres três anos depois e encontrei tudo mais ou menos igual, o que nem é muito habitual, porque estas cidades sofrem mutações constantemente: as zonas podem tornar-se, muito rapidamente, trendy; centrar as atenções por investimentos… a zona está mais ou menos igual a como eu a deixei. O Bruce Grove tem agora uns ledzinhos que colocaram por baixo da estação… isso foi bom porque voltei a ver mais ou menos o mesmo tipo de pessoas, os mesmos hábitos… é sempre bom voltar.
Ainda te lembras como encontraste o Porto há três anos, quando voltaste de Londres?
O Porto, quando regressei, vim com uma perspetiva um pouco diferente porque nunca tinha tido a experiência da emigração. E quando se regressa, é com uma perspetiva diferente: comecei a olhar para outras coisas aqui que são melhor, a perceber que isto aqui é que vale a pena. Esse tipo de sensações são boas, mas não é eterno nem ficam sempre contigo. Mas ajuda-nos a compreender que em relação à ideia que tinhas, há coisas muito melhores. Mas a mutação do regresso ao Porto, a que senti, foi a que senti quando fui estudar para Lisboa em 2005 e regressei em 2010 — ainda que com visitas frequentes. O Porto alterou-se muito nos cinco anos em que estive em Lisboa.
“O Revólver Entre as Flores foi lançado numa altura em que eu termino os meus estudos e entro para o mercado de trabalho. O KSX2016 ficou muito associado, se calhar, a dois temas não menos fortes — o ‘Bruce Grove’ e ‘Defeito Sério’. Londres ajudou, mas a minha relação com Londres já era antiga”
Em Londres também trabalhaste no meio audiovisual.
Fiz trabalhos sempre com audio, mas volta e meia se tenho que fazer assistência a realizador ou produção também o faço.
O KSX2016 é, a meu ver, um disco muito descritivo. Acho que quem escutar com atenção vai conseguir criar cenários. Também crias os teus cenários quando escreves as tuas letras e as tuas histórias? Tens uma escrita cinematográfica?
Se pensarmos na escrita cinematográfica como escrita de guião, imagino que ando ali perto — ao fazer a descrição das situações em si. Posso fazer uma espécie de descrição poética… mas nas músicas, para mim, é essencial criar um espaço onde a história da música decorre. Às vezes com detalhes pequenos, outras mais detalhadas, mas imagino sempre a música como um espaço.
O disco também já ganhou vida no palco. Já fizeste concertos só com DJs, já fizeste concertos a solo e até já fizeste concertos com uma banda, os Oliveira Trio. Agora, em Braga, como vai ser?
Mediante os orçamentos vamos percebendo que tipo de espetáculo podemos fazer. Na maior parte dos casos, acabava por querer levar mais do que podia — com acréscimos na banda… Decidimos fazer um espetáculo em modo backpack, como lhe chama o DJ que me acompanha, o DJ Spot: é o espetáculo clássico de rap, com DJ e MC. Pensámos em sofisticá-lo, com uma parte de vídeo e de luz que é muito forte e que temos vindo a trabalhar. O concerto com Oliveira Trio poderá repetir-se, no Norte, porque só aconteceu em Lisboa e há muita gente a pedi-lo.
“Do lado mais artístico eu acho que até estou menos sensível… se calhar estou menos empenhado na parte da criação, a aproveitar aquilo que o disco me trouxe de bom. Estou a fazer um equilíbrio entre a parte prática do KSX2016 e a minha vida”
O Nerve vai estar presente nessa noite de Braga. Eu creio que vocês têm os dois muito a ver um com o outro…
Achas? Nós achamos que não temos nada a ver um com o outro (risos).
Digo isso porque sinto que criam ambientes poéticos muito próximos, intensos e dramáticos. Mas vocês já dividiram presenças em discos…
Sim, ele entra no Revólver Entre As Flores, com voz [no tema “Nunca o que me vem à cabeça”] e eu entro no último disco dele [“Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta e Ninguém Merece a Tua Confiança”], com produção. E sempre que ele está por perto, em dias de concerto, faço questão que compareça para fazer o “Gainsbourg“, que é a tal faixa que produzi e de que gosto muito. Além de ser meu amigo, é um artista que admiro muito.
Achas que irão tocar esse tema que fizeste com ele em 2009, ou já é de um universo distante?
Não… Vamos fazer dois concertos. É possível que haja um cruzamento a determinada altura, mas vão ser concertos em separado: o meu e o dele. Vamos aproveitar poder, finalmente, partilhar na mesma noite o palco com os nossos repertórios. Quanto a um projeto em conjunto: é uma coisa que nunca esteve fora da ideia, mas para já vamos os dois a Braga pela primeira vez!
Entrevista: Bruno Martins