“Nos últimos dez anos estivemos a tratar do negócio de família: a oficina de reparação de veículos Auto-Estima Lda”
Dez anos depois, os Repórter Estrábico estão de volta. A banda de Luciano Barbosa, Paulo Lopes, Anselmo Canha e Manuel Ribeiro deu o seu último concerto em 2007 e regressa no domingo, dia 30 de abril, ao palco do Sabotage, em Lisboa, que está a celebrar o quarto aniversário.
Aproveitando a data, conversámos com Luciano Barbosa para recordar a última década e ficar a perceber que os Repórter Estrábico nunca pararam verdadeiramente: estiveram foi ocupados com outras coisas. “O negócio de família”, responde Luciano. “A oficina de reparação ‘Auto-Estima Lda’”, responde. As máquinas estão a ser desenferrujadas e já se começa a pensar num regresso mais a sério, com direito a músicas novas e tudo. Para já é altura de recordar uma parte da história de mais de três décadas dos Repórter Estrábico num concerto para percorrer a discografia de uma das bandas portuguesas pioneiras do eletro-rock.
Como é que está a ser preparado este regresso dos Repórter Estrábico ao palco? São dez anos sem tocar ao vivo…
Começou tudo por termos de desenferrujar as máquinas: ligá-las e desenferrujá-las. E durante o processo, desenferrujar-nos a nós também. Só o prazer de nos juntarmos os quatro outra vez já é, de si, um ato criativo. É sempre bem vindo quando nos juntamos e, neste caso, foi o convite do Carlos [Costa], do Sabotage. E foi ele que contactou o nosso guitarrista, o Paulo Lopes — que tem outra banda, e que fará a nossa primeira parte, os Sacapelástica — para ele ir lá tocar. Foi nessa altura que lhe perguntou: “E os Repórter, não tocam mais?” Nós estávamos nesse momento num processo de suspensão… suspensão de atividades; suspensão criogénica…
O que é que significava essa suspensão? Não era um fim, pelos vistos, mas iam falando sobre este regresso, sobre novas canções?
Nós nunca parámos. O processo criativo, dada a simbiose que acontece connosco, nunca pára. Eu continuo sempre a imaginar letras, a juntar frases melódicas. Havia era a dificuldade de nos encontrarmos, porque cada um estava a olhar pelo negócio de família de cada um e agora estamos a olhar pelo negócio de família do Repórter. Nunca realmente parou, mas estava em suspensão.
Que negócio de família era esse?
Era a dita oficina de reparação de veículos chamada “Auto-Estima Lda.” que é muito importante. Uma pessoa nunca pode deixar de se enxergar e olhar para si e perder nunca a vontade de trabalhar. As ideias funcionam todas e a melhor forma de as ter a funcionar é ter várias coisas em aberto e depois manter cada uma delas, porque senão esmorecem e acabam por morrer. É como aqueles exercícios chineses no circo, com as varinhas e os pratos a rodar em cima: é manter as ideias abertas, premiáveis, e elas, por osmose, arranjam maneira de se encaixar.
“Para estes espetáculos que se adivinham foi escolher um best of, o melhorzinho do Repórter Estrábico que vamos mostrar com novas roupagens e com a nossa maturidade acrescentada (risos)”
Os pratinhos chineses em cima das varas nunca deixaram de rodar, no caso dos Repórter Estrábico?
É verdade. Nunca deixaram de rodar e é engraçado porque reunimo-nos, juntámo-nos e parece que foi ontem que nos separámos.
Ficas com a sensação de que já deviam ter-se reunido há mais tempo?
Sim… entretanto uma pessoa fecha os olhos e já passaram dez anos (risos). Mas temos já várias coisas para serem começadas. Criar é um projeto paralelo: os espetáculos é onde se vai buscar os proventos — já não é nas edições discográficas. E é importante dar espetáculos, porque é preciso arejar as ideias e mostrá-las ao público para que elas possam modificar-se e serem mais experimentadas. O disco é uma coisa estática.
A ideia é fazer só concertos ou começar a fazer música nova?
Como digo, é um projeto paralelo: manter os pratinhos a rodar. Tem que ser feito: temos que dar espetáculos, servindo-nos dos 32 anos de carreira e das edições discográficas — são muitas canções. E para estes espetáculos que se adivinham foi escolher um best of, o melhorzinho do Repórter Estrábico que vamos mostrar com novas roupagens e com a nossa maturidade acrescentada (risos).
“A ideia do rock eletrónico sempre nos agradou imenso e fomos, por assim dizer, pioneiros. Se não foi o primeiro sampler que existiu em Portugal, nós fomos dos primeiros a comprar um e utilizámo-lo logo. Era como um quinto elemento”
Há alguma previsão de quando poderemos ter novo disco?
Não será propriamente um disco… porque já com o Eurovisão a ideia era irmos lançando singles e todas as canções foram pensadas como singles. A não ser que apareça uma editora que queira pôr cá fora todo o trabalho em conjunto, eu prefiro o imediato de fazer canções e lançá-las.
O que é que custou mais neste processo de desenferrujamento? Houve algum disco, em particular, que tenha sido mais difícil de desenferrujar?
Todos são difíceis, mas houve uns mais fáceis que saíram de imediato. Mas o processo de gravação é todo ele um ato criativo em si: quanto mais uma pessoa puder gravar “live”, mais se aproxima daquilo que realmente desejamos em vez de estarmos a dar grandes voltas na composição para se conseguir uma aproximação àquilo que se faz em palco. Por outro lado, como somos bastante eletrónicos, há também uma exploração que aí se possibilita por estarmos face a face com as máquinas, só a ouvi-las a tocar.
Os Repórter Estrábico regressam aos concertos — e à criação — numa altura em que o uso dos sintetizadores parece estar na moda. É um regresso na altura ideal?
Nós sempre utilizámos as máquinas, sempre com a componente da caixa de ritmos e dos sintetizadores e sequenciadores. A ideia do rock eletrónico sempre nos agradou imenso e fomos, por assim dizer, pioneiros. Se não foi o primeiro sampler que existiu em Portugal, nós fomos dos primeiros a comprar um e utilizámo-lo logo. Era como um quinto elemento. É curioso como conseguimos encaixar aí o rock ‘n’ roll: no nosso caso funciona bem.
“Lembro-me de um concerto que correu especialmente bem, durante o Mouse Music nas Noites Ritual. Estava bastante bem ensaiado e o público era especialmente numeroso e aderente porque o “Mama Papa” tinha rodado muito naquele canal entretanto extinto… o “Sol Música”. Foi um grande impulsionador”
Como é que, na década de 1980 quando as drum machines, os sequenciadores os samplers ainda eram uma miragem, os Repórter Estrábico mostraram logo tamanho à vontade com essas máquinas?
Foi a partir de escutas e grande apreço pelas bandas pioneiras, como os Kraftwerk, Alan Vega — recentemente falecido — os Suicide. Faz parte do processo criativo uma pessoa munir-se melhores influências possíveis. são coisas que não se ensinam, mas que podem encaminhar-se. Nós, felizmente, sempre tivemos muito bom gosto musical, portanto isso reflete-se nas influências que fomos tendo. Espero que com o ressurgimento das máquinas que nós sirvamos de influência para quem estiver por aí a enveredar.
Há algum período, dos últimos 32 anos, que tenha sido mais marcante?
Sim, sempre que os espetáculos correram bem. Lembro-me de um concerto que correu especialmente bem, durante o Mouse Music nas Noites Ritual, porque estava bastante bem ensaiado, o público era especialmente numeroso e com bastante adesão, porque o “Mama Papa” tinha rodado muito naquele canal entretanto extinto… o “Sol Música”. Foi um grande impulsionador.
O “Mama Papa”, até por causa disso, é o vosso maior grande êxito?
Talvez, se bem que agora, ao juntarmos este compêndio de best of para o concerto, encontro grandes temas. Quer dizer: chegamos à conclusão de que temos imensas canções e temas grandiosos. Todos os temas marcaram o disco, mas o “Mama Papa” foi pensado como um single.
Como é que nasceu o “Mama Papa”?
Foi a pegar em chavões, em frases com uma linguagem fácil e imediata. E da parte musical também bastante simples e imediata. Surgiu pela necessidade: rodeados de consumismo como sempre estivemos — e continuamos — a crítica social não deixa de ser necessária, sempre. Nós também somos intervenientes pela nossa passividade, ou não, em tudo o que nos rodeia.
O estado das coisas na última meia década, mais coisas menos coisa, também poderá vir a ter uma marca forte num novo disco de Repórter Estrábico?
Sim, sem dúvida. Vamos continuar no nosso papel sardónico, introspetivo-extrovertido; intergalático extra-galático… de abrir as consciências tanto quanto possível. Porque é um processo de abertura mental, sobretudo havendo tantas mentes cada vez mais fechadas. Com o surgimento de facções políticas verdadeiramente perigosas é preciso cada vez mais uma resistência — e sempre a resistência ao capitalismo que é o veneno, a desgraça humana…
O Repórter é estrábico, mas tem um olho bastante apurado…
(risos) É um estrábico divergente e não convergente. E estrábicos dissidentes!
Entrevista: Bruno Martins