Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
UHF – Jorge Morreu
Era punk, sim senhor, mas feito com botas alentejanas, explicou certo dia António Manuel Ribeiro.
Falava do que distinguia os UHF. Eram tipos de Almada crescidos entre os operários da Lisnave e as suas lutas pré e pós-25 de Abril, mas tinham os ouvidos sintonizados no que se ouvia, tão libertador, lá desde longe: podia ser o country-rock do “Harvest” do Neil Young, podia ser o dramatismo psicadélico dos Doors, podiam ser os Ramones a apresentarem algo novo desde Nova Iorque. António Manuel Ribeiro, Renato Gomes, Carlos Peres e Américo Manuel sabiam que Almada parecia mais longe de Lisboa do que aparentavam os poucos quilómetros que separavam as duas cidades. Sabiam também que esse contexto os tornaria obrigatoriamente diferentes. Punks, sim senhor, mas de botas alentejanas e sem dinheiro para ir comprar roupas a Londres.
Sabiam, porque tinham ouvido o punk chegar, que não era preciso encher o palco de instrumentos caros para comunicar o rock’n’roll – bastava a guitarra, o baixo, a bateria, a voz. Sabiam, porque assim o imaginou António Manuel Ribeiro, que aquilo que queriam dizer estava mesmo ao seu lado, na vida que viviam e viam viver nas ruas de Almada. Eram, ao mesmo tempo, a modernidade que despontava em Londres e Nova Iorque, o presente vivido em Portugal e um elo mais na longa corrente dos cantores folk de todas as latitudes.
Os concertos puseram-nos no radar de uma nova cena em formação. Atraíam os temas abordados, crus e duros como o são a toxicodependência, a prostituição, a violência policial, e a forma visceral como os cantavam. Banda de palco, os UHF haveriam inevitavelmente de chegar ao estúdio. A primeira vez foi na Primavera de 1979.
Três canções: “Jorge Morreu”, “A Caçada”, “Aquela Maria”. Editado pela Metro-Som em Outubro do mesmo ano, o EP falhou em sucesso comercial o que teve de respeito da crítica e do público atento. Seguiram-se os concertos com os Dr. Feelgood ou Elvis Costello, seguiram-se digressões nacionais quando nenhuma banda rock portuguesa as fazia. Continuavam banda de palco, continuavam com as botas alentejanas calçadas e o punk como rastilho para o que se seguiria – vocês sabem do que estamos a falar: “Rua do Carmo”, “Cavalos de corrida”, aclamação popular e toda uma aura de pioneiros. Mas isso foi depois. Antes estava aquela figura trágica e misteriosa que “andava por aí / como eu e tu andamos / queimando o cigarro / queimando os nervos”. Estava Jorge, o que morreu.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso