“Este disco não é uma ideia de exportação da nossa música, mas antes a edição comum de um disco partilhado”
Os Língua Franca são um projeto que junta músicos portugueses e brasileiros, Capicua, Valete, Emicida e Rael — todos eles próximos da matriz do hip hop. Mas este é, sobretudo, um trabalho de afinidades lusófonas entre várias vozes, várias estéticas, muitas geografias, latitudes e longitudes. Desenhado no Rio de Janeiro por Fred Ferreira, Kassin e Nave; e gravado em Lisboa, Língua Franca cresce a partir da vontade de derrubar fronteiras, de partilhar as mesmas palavras com diferentes sotaques, mostrando que é possível existir algo a que podemos chamar de rap lusófono. “Quem sabe se daqui a uns anos não estamos a falar de de um estilo línguo-franquista, luso-brasileiro…”, ri-se Valete que, juntamente com Capicua — a metade portuguesa deste projeto — nos contam agora como se desenrola esta Língua Franca.
O disco começou a ser preparado em 2015. Quem é que deu o primeiro passo?
Capicua — Foi uma ideia da Sony Brasil e Portugal, que decidiram fazer uma parceria e um disco para editar nos dois países simultaneamente. Pensaram numa equipa de produtores e rappers que pudesse cumprir a missão. Nós fomos convidados e — acho que falo pelos dois — ficámos muito contentes, porque a ideia do projeto é muito interessante: nós temos muito acesso à música brasileira, mas o inverso não é assim tão verdade e era uma oportunidade. Não é uma ideia de exportação da nossa música, mas antes a edição comum de um disco partilhado. É como se eliminássemos as fronteiras e, ao mesmo tempo, é a alegria de fazer um disco de rap lusófono com MCs tão talentosos.
Já havia uma afinidade entre vocês os dois…
Capicua — Sim, já tínhamos trabalhado juntos, no meu disco Medusa.
Valete — E havia uma certa relação minha e da Capicua com o Emicida.
Capicua — E o Emicida com o Rael! Nenhum de nós era estranho ao trabalho alheio dos outros, nem sequer na própria relação de amizade. E fazemos todos parte do mesmo subgénero dentro do rap: temos a mesma motivação e gostamos de misturar a nossa música com outras e fazia sentido trabalhar nesta equipa.
Valete — Para mim foi muito importante participar porque creio que o rap está a viver uma crise de valores. Estes quatro MCs — eu incluído (sorri) — trabalharam com a motivação de fazer um rap social. Creio que é também uma amostra de que este rap ainda existe e que este rap ainda é importante.
“Nós os quatro partilhamos o rap como ferramenta, como um megafone de denúncia, de reportagem e transformação. Encaramos o ofício do MC como uma missão, de transformar através da mensagem” — Capicua
Os beats que aqui aparecem nascem de um trabalho conjunto do Fred Ferreira, do Kassin e do Nave. As músicas que vos iam chegando também motivaram a escrita?
Valete — Sem dúvida. O Fred, o Nave e o Kassin estiveram um mês no Rio de Janeiro a produzir o disco. Fizeram à volta de 60 ou 70 batidas e depois nós fizemos a seleção para o disco. Tínhamos muita coisa, desde um MPB mais clássico até um hip hop mais clássico. Depois foi tentar escolher coisas que soassem diferentes entre elas. Se quisermos, pode dizer-se que é um disco de hip hop a explorar outros caminhos, outros géneros.
O que é que te seduziu mais no lado musical deste Língua Franca, Capicua?
Capicua — O que me seduz, no disco inteiro, é a mistura. Não só dos nossos quatro contributos líricos, mas também dos nossos sotaques diferentes, do nosso vocabulário diferente dentro da mesma língua e depois também, em termos sonoros, de explorar músicas que são muito diferentes dentro de si. O disco é muito versátil, com músicas de hip hop mais puro, mais boom bap, mais eletrónicos, outras músicas misturadas com uma sonoridade mais brasileira. Tens um bocadinho de todas as cores dentro do disco e acho que essa mistura também espelha o método, o processo de trabalho: houve um laboratório que foi feito pelos três produtores, que criaram as várias batidas, e nós, os MCs, que estivemos fechados em estúdio durante dez dias a escolher os beats e os temas, a escrever em conjunto, também. Fizemos quase 80 por cento do disco nesse ambiente de laboratório. Mas não me soa a disco feito por correspondência! É um disco muito misturado em todos os sentidos.
É um disco com várias latitudes, longitudes e geografias: dois portugueses, dois brasileiros; um dos portugueses tem fortes raízes em São Tomé, África. Temos também a voz da Sara Tavares… não foi só nas palavras que se uniu este projeto entre a Europa, a África e o Brasil: foi também nos ritmos.
Valete — Primeiro, a mentora do projeto é uma Moçambicana, por isso começa aí (risos). Acredito que é um projeto lusófono, mesmo que para as pessoas soe só a luso-brasileiro, mas eu, sendo português, tento também ser africano e levar isso para as músicas. O Emicida e o Rael são sempre africanos, também… A minha expetativa é que o projeto evolua, que tenha sequências e que se possa fazer aqui algo da lusofonia com a inclusão de artistas de África.
É um disco para abrir portas, derrubar fronteiras musicais, unir esta mesma língua?
Valete — Para mim é mais uma questão de aproximação. Creio que podia ter-se feito muita coisa em relação à língua portuguesa, principalmente na vertente do rap — podíamos ter feito mais. E acho que há aqui um momento em que é preciso aproximar porque sinto que em Angola ouve-se cada vez menos música portuguesa, em Moçambique igual… e no Brasil sempre houve esta questão de tentar absorver música portuguesa, que é muito difícil para um brasileiro. Então isto pode ser uma coisa bonita, pelo menos na área do rap.
“É um disco de hip hop a explorar outros caminhos, outros géneros” — Valete
Têm acontecido algumas iniciativas para levar rappers portugueses até ao Brasil.
Capicua — Sim, tens o festival Terra do Rap que faz essa tentativa. O Língua Franca é outra tentativa. Claro que há uma motivação com que a ponte entre Portugal e o Brasil tenha dois sentidos e não seja só no sentido Brasil-Portugal. Claro que são 200 milhões, nós somos dez… (risos) Eles sempre tiveram um grande cuidado a valorizar a sua música, o cinema, aquilo que é deles. Nós, nos últimos dez anos, estamos a fazer mais isso — há uma lua de mel com a música feita em Portugal que nos dá alguma auto-estima para exportar mais.
Os beats foram feitos no Rio de Janeiro, mas o disco foi gravado aqui em Lisboa. Quando partiram para estúdio já tinham tudo preparadinho, tudo afinado?
Valete — Não, pelo contrário. Nós já tínhamos as batidas pré-selecionadas e depois a ideia era construir quase tudo a partir do zero… tínhamos dez dias e houve quem exigisse mais dias à Sony (risos). Eu pensava que não seria possível fazer dez músicas em dez dias, sobretudo conhecendo o meu modus-operandi. Mas o Emicida e o Rael têm um drive muito fixe relativamente a isto tudo, a escrever no estúdio, a trabalhar muitas horas seguidas…
Capicua — E essa espontaneidade, a facilidade com que eles escrevem, puxou também por mim para ter que estar ao ritmo, à altura do desafio. Senti que tentei tornar a minha escrita mais intuitiva, mais cerebral e torná-la mais eficiente: escrever ali sentada na alcatifa do estúdio: “agora eu escrevo metade e tu escreves a outra”. Era assim que eu fazia o rap quando era mais adolescente! Puxou muito por mim e fez com que tenha ficado a admirar aquele jeitinho brasileiro de flirtar com as palavras, com a música… uma melodia, juntas duas palavras e está o refrão feito. E eu e o Valete, mais ponderados e portugueses (risos) com essa forma de estar com as palavras.
“A forma como absorvi a cultura hip hop, desde o início, tem muito a ver com isso, com o facto de tu dares verdade às pessoas através da tua música. Pores sempre verdade na tua escrita” — Valete
O Caetano Veloso, num texto que escreveu sobre este projeto, diz que Rael, Emicida, Valete e Capicua “falam a mesma língua: a língua franca do rap”. Essa é uma característica comum a todos, esta língua tão honesta?
Valete — É fixe estares a ver por esse ângulo! A forma como absorvi a cultura hip hop, desde o início, tem muito a ver com isso, com o facto de tu dares verdade às pessoas através da tua música. Pores sempre verdade na tua escrita. Mas com um objetivo sempre de transformar. Narrar o que existe, com verdade, sempre; às vezes estarmos a cuspir tudo na música, até as nossas vulnerabilidades, e depois sempre com intuito de poder transformar o que existe. Sinto que o hip hop tem cada vez menos disto, daí a importância deste projeto, com estes MCs, para dizer às pessoas que isto ainda existe, que isto é a matriz.
Capicua — Nós os quatro partilhamos o rap como ferramenta, como um megafone de denúncia, de reportagem e transformação. Encaramos o ofício do MC como uma missão, de transformar através da mensagem. É essa a nossa escola, mesmo que às vezes façamos música sobre temas mais ligeiros e música mais solar, por trás há um fundo de responsabilidade. Pode dizer-se que é a nossa zona franca de atuação.
E numa perspetiva mais global do que propriamente local…
Valete — Eu insisto que vejo este projeto como sendo lusófono. Há muitos problemas nas nossas cidades que são comuns.
“Senti que tentei tornar a minha escrita mais intuitiva, mais cerebral e torná-la mais eficiente: escrever ali na alcatifa do estúdio, eu a escrever metade e tu a escrever a outra. Era assim que eu fazia o rap quando era mais adolescente! Puxou muito por mim e fez com que tenha ficado a admirar aquele jeitinho brasileiro de flirtar com as palavras” — Capicua
Falaram sobre isso durante as gravações?
Valete — Sim, há temas sobre isso e há também uma oportunidade que é a questão de, apesar de haver uma abordagem clássica, o álbum é experimental, de risco, de mistura e inovação. É este o caminho do hip hop, porque nunca foi um movimento de exclusão, mas sim, sempre, de integração. Língua Franca, para misturar com coisas novas que se fazem no Brasil, em Portugal, e quem sabe, daqui a uns anos, falar de um estilo línguo-franquista, luso-brasileiro… (risos)
Capicua — Há temas que são universais: a amizade, o amor, a morte… depois temos temas mais políticos. Por exemplo, o “(A)Tensão”, comigo e com o Emicida, em que fala sobre a forma como vemos o mundo hoje, sobre o crescimento do conservadorismo, das desigualdades sociais, da Europa a fazer crescer os muros em vez de estender os braços a quem mais precisa, quando se sabe que não há paraísos privados!
Valete — E há aqui um papel muito importante aqui do Kassin: eu, a Capicua, o Rael, o Emicida, o Nave e o próprio Fred somos filhos do hip hop. Mas o Kassin, tentar absorver isto e dar o cunho próprio da MPB é das grandes marcas do disco. Há beats que recebemos que eram só esqueleto e depois do dedo do Kassin já estavam a soar de forma completamente diferente!
Como é que esta Língua Franca se vai desenrolar no palco?
Capicua — A primeira vez vai ser no Super Bock Super Rock — vai ser uma estreia, em que vamos estar nervosos e felizes, acho eu. Mas vai desenrolar-se no formato clássico com DJs e MCs, com o Fred também a acompanhar a tocar umas coisas. A ideia é misturar as músicas do Língua Franca com outras músicas de cada MC… para ser uma mistura, não é?
“Acredito que é um projeto lusófono, mesmo que para as pessoas soe só a luso-brasileiro, mas eu, sendo português, tento também ser africano e levar isso para as músicas” — Valete
Uma última curiosidade: vocês são rappers, MCs. Primeiro escrevem, depois verbalizam e às vezes de improviso! Mas isto para perguntar uma curiosidade: o que é que vocês pensam do Acordo Ortográfico?
Valete — Olha, como escritor é algo que ’tou-me a cagar! (Risos) Tudo o que vier limitar ou balizar a minha criatividade ou escrita, ponho de lado. Simples, para mim. Nem penso nisso.
Capicua — A intenção do Acordo Ortográfico pode ter sido boa, mas na prática há muitas regras estúpidas, coisas que foram eliminadas e que não fazem sentido nenhum: o “pára” e o “para” que só vem confundir as pessoas. Para mim é mais o facto de a intenção, que era unificar e integrar, ter saído furada. Depois eu acho que as línguas são bonitas enquanto organismos vivos. Se quiserem uma língua morta, vão estudar o latim: as outras línguas estão em evolução! É um sinal de saúde.
Entrevista: Bruno Martins