Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Dead Kennedys – California Uber Alles
A polinização cruzada dá-se quando as espécies não mostram capacidade para se auto-fecundarem. O polén de uma flor é então levado pelo vento ou por um insecto até ao estigma de outra flor. No final dos anos 1970, chegaram à Califórnia ventos chegados de Londres, que se cruzaram com ventos vindos de Nova Iorque e Detroit. Uma polinização cruzada poderosa, uma mutação genética admirável, e eis uma nova banda a florescer, sem qualquer discrição e desejosa de agitação – como podiam ser discretos, de resto, quando escolheram como baptismo o nome que escolheram?
Os Dead Kennedys. Jello Biafra, East Bay Ray, Ted e Klaus Flouride, quatro músicos com vontade de agitar as águas. Nas suas mãos, o punk acelerou em velocidade supersónica, o activismo manifestou-se em cada palavra e os gestos provocatórios sucederam-se um atrás do outro – hardcore chamaram-lhe.
Nasceram na Califórnia, estado liberal ainda marcado pelo conservadorismo do governador e futuro presidente americano Ronald Reagan. Cresceram numa América em crise – o seu nome nascera por sentirem que os Estados Unidos capazes de sonhar haviam morrido com John Kennedy. Cresceram num mundo em crise, com a Guerra Fria, com as ditaduras militares na América Latina, patrocinadas pelo governo americano, com o terror comunista de Pol Pot, no Cambodja. Tudo isso já lhes daria conversa de sobra. Com o punk ganharam o veículo perfeito para que o discurso fluísse.
Tiveram primeira vida tão curta quanto grande foi a sua influência. Entre 1978 e 1986, explicaram-nos que nunca nada deve ficar por dizer, que nenhum valor pode ser comprometido, que o punk ou é totalmente e totalmente comprometido, ou não é grande coisa. Atiravam-se à jugular da direita reaccionária e da esquerda aburguesada, atiravam-se ao poder financeiro que atropelava os cidadãos, atiravam-se ao discurso publicitário estupidificante, atiravam-se à própria cena punk que se desviava dos seus propósitos. Atacavam, em resumo, e faziam-no com toda a intenção e com uma ferocidade contagiante.
Fresh Fruits for Rotten Vegetables, foi o primeiro álbum, o primeiro manifesto em longa-duração. Saiu em 1980, o mesmo ano do single “Holyday in Cambodja” e da sua capa com monges budistas imolando-se no fogo. Quando editaram um e outro, já sabíamos ao que vinham. Já tínhamos ouvido “California über alles”, título provocatório cuspido em refrão alucinado, refrão repetido depois por quem o ouviu uma e outra vez. Já não havia forma de os parar. Bendita polinização cruzada.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso