Com All Eyez on Me nas salas de cinema, o mundo parece reencontrar-se com Tupac Shakur. Mas mais de 20 anos após o seu desaparecimento, a fronteira que separa o homem do mito continua a ser muito ténue, como argumenta Rui Miguel Abreu.
Em Outubro de 1995, quando ainda nem sequer uma semana tinha passado desde que Tupac Amaru Shakur, então com 24 anos, tinha sido libertado da prisão de Rykers Island, em Nova Iorque, registava-se uma considerável azáfama num estúdio de Tarzana, um dos bairros de Los Angeles situados em San Fernando Valley. Tupac garantiu em entrevistas que só escreveu um tema enquanto esteve encarcerado, mas após meros seis dias de liberdade tinha já 14 canções registadas, provando que o investimento de Suge Knight, o patrão da Death Row Records, de um milhão e 400 mil dólares na fiança do rapper foi mais do que certeiro. Não havia, aliás, que enganar: não era apenas na sede do rapper que o controverso executivo deveria confiar, já que os factos demonstravam a força comercial de Tupac – o seu último trabalho, Me Against The World, editado pouco tempo depois de ter sido condenado pela suposta violação de uma mulher, tornou-se o primeiro número 1 na América de um artista a cumprir uma sentença, com Shakur a registar vendas de um quarto de milhão de cópias na primeira semana de edição, um recorde para um artista masculino em 1995. Tupac tinha o toque de midas e All Eyez on Me, o álbum que se encontrava a ultimar, haveria de se revelar um estrondo comercial, mais do que duplicando as vendas iniciais do seu antecessor e estabelecendo definitivamente o seu autor como a mais premente força do rap americano em meados dos anos 90. O percurso até aí chegar foi, no entanto, muito atribulado e complexo.
Tupac nasceu em Harlem, Nova Iorque, a 16 de Junho de 1971, bem no epicentro geográfico e temporal de uma revolução que crescia nas ruas da América. Após o Movimento dos Direitos Civis liderado por verdadeiros símbolos de uma geração como Martin Luther King, uma facção mais politicamente radical da jovem população negra, inspirada no ensinamentos de gente como Malcolm X, acreditava que a mudança não chegaria sem luta. Os pais de Tupac, Afeni Shakur e Billy Garland, estiveram ambos envolvidos com a organização criada por Bobby Seale e Huey P Newton e a sua mãe fez mesmo parte do notório caso Panther 21, em Nova Iorque, quando vinte um membros do partido foram levados a tribunal para responderem perante acusações de conspiração que se viriam a revelar infundadas tendo o caso resultado numa absolvição colectiva. O que sucedeu com o Panther 21, no entanto, deu para ilustrar as tensões existentes numa sociedade a braços com uma pesada herança histórica – escravatura, resistência ao progresso em termos de igualdades sociais, etc – e que nunca soube muito bem lidar com figuras carismáticas negras, com jovens que souberam transformar a dura vida dos bairros em fontes de inspiração para comunicar com toda uma geração.
Tupac cresceu no meio deste ambiente revolucionário, com vários dos seus mais próximos familiares a terem sérios problemas com as autoridades: Assata Shakur, a sua madrinha, foi condenada pelo assassinato de um polícia em 1977, mas escapou com a ajuda de Mutulu Shakur, padrasto de Tupac, tendo encontrado exílio em Cuba.
A mente criativa de Tupac deu sinais de efervescência logo muito cedo: na escola, em Harlem, fez teatro, e quando se mudou com a mãe para Baltimore prosseguiu os estudos artísticos numa escola de artes em que teve aulas de representação, ballet, poesia e jazz. E quando não estava a recitar Shakespeare em palco ou a participar em encenações de O Quebra Nozes, Shakur começava a conquistar o respeito dos seus colegas ganhando batalhas de rap nos recreios. Data desta altura a sua amizade com Jada Pinkett, hoje casada com Will Smith, uma união que a actriz descreveria como “do género que só se encontra uma vez na vida” e que inspirou mesmo o poema “Jada” que Shakur incluiria na sua antologia The Rose That Grew From Concrete.
Depois de se mudar com a sua família para a Califórnia, Tupac começou a dar os primeiros passos sérios no mundo da música, sobretudo após se ter envolvido com os Digital Underground, popular grupo de Oakland cuja música – carregada de referências funk de recorte electrónico – serviria como molde para a sonoridade mais tarde adoptada pelo homem de “California Love”. Tupac dançou em palco e em vídeos com os Digital Underground que, no entanto, conheciam bem os seus skills como rapper oferecendo-lhe a sua estreia no tema “Same Song”, incluída num EP do grupo datado de 1991. Esse foi igualmente o ano da estreia de Tupac Shakur a solo com o hoje clássico 2Pacalypse Now, um álbum que não gerou assinalável sucesso imediato, mas que artistas tão diversos como Eminem, Nas ou The Game apontam como uma obra séria e inspiradora.
A referência ao clássico filme de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietname presente no título da estreia de Tupac não era casual: o seu álbum de estreia retratava a sociedade americana da época como palco de uma épica batalha, com o racismo, a pobreza e a brutalidade policial a inspirarem as suas visões. Meros três anos antes, quando ainda se encontrava no liceu, Tupac assinou uma composição para uma aula de inglês a que deu o título “Ultrapassando todos os obstáculos” e em que escreveu sobre si como um rapper, com objectivos definidos: “o nosso propósito é levar as pessoas a relacionarem-se com os nossos raps, fazendo com que seja mais fácil perceberem o que de facto se passa lá fora. E, talvez mais importante, o que poderemos fazer para melhorar o nosso mundo”. Para Tupac não bastava observar o mundo. Era igualmente necessário transformá-lo.
Claro que as observações da realidade assinadas por Tupac não foram aceites sem reservas e políticos famosos como Dan Quayle afirmaram mesmo que esse tipo de trabalhos não deveriam ter espaço “numa sociedade como a sociedade americana” por acreditarem que incitavam à violência. “Eu não quero ser saco de pancada dos media”, afirmou Tupac em sua defesa, “mas eu vivi esse tipo de vida e quero rimar sobre ela”.
Depois de uma estreia poeticamente sólida, mas em que claramente ainda não havia encontrado a sua sonoridade, Tupac voltou aos discos com Strictly 4 My N.I.G.G.A.Z., lançado em fevereiro de 1993. Graças a temas como “Keep Ya Head Up”, Tupac começou a aproximar-se daquele que seria o seu ritmo e o seu som, mais funky, mais lento, mais apropriado para o seu particular flow.
Tupac é, como todos os grandes artistas aliás, uma inesgotável fonte de paradoxos: apesar de sérios problemas tidos mais tarde, no já citado “Keep Ya Head Up” o futuro gangster que muitos acreditam ter contribuído para a misoginia no rap cantava:
Some say the blacker the berry, the sweeter the juice
I say the darker the flesh then the deeper the roots
I give a holler to my sisters on welfare
Tupac cares, and don’t nobody else care
And uhh, I know they like to beat ya down a lot
When you come around the block brothas clown a lot
But please don’t cry, dry your eyes, never let up
Forgive but don’t forget, girl keep your head up
And when he tells you you ain’t nuttin don’t believe him
And if he can’t learn to love you you should leave him
Cause sista you don’t need him
Como um verdadeiro diamante, Tupas Shakur era, de facto, um prisma com muitas faces capaz de emanar um brilho intenso e exercer um fascínio inesgfotável.
Entre Strictly 4 My N.I.G.G.A.Z e o seu terceiro álbum, Me Against The World que seria então lançado no arranque de 1995, quando Tupac já se encontrava a cumprir a sentença a que tinha sido condenado num caso de violação, Tupac teve ainda tempo para formar o grupo Thug Life com alguns amigos como Big Syke ou Mopreme Shakur, filho do seu padrasto. Thug Life: Volume 1 foi lançado em 1994 e revelou Johnny “J” Jackson, o produtor de boa parte do material de All Eyez on Me. Temas como “Cradle to The Grave” tornaram-se clássicos do cancioneiro de Tupac e viriam até a integrar compilações póstumas. E ajudaram a preparar caminho para o primeiro sério sucesso com Me Against The World.
Kakari Kitwana, um dos editores da revista americana The Source, uma das mais respeitadas vozes da moderna América negra, escreveu no seu livro The Hip Hop Generation (Basic Civitas Books, 2002) que os casos judiciais de Tupac e de Mike Tyson representam bem a complexa percepção que a América mainstream tinha de jovens negros que se impunham então como símbolos daquela geração. Kitwana vê-os como vítimas do pensamento dominante de uma época. No livro, o autor cita uma entrevista de Tupac em que este demonstra a perplexidade que sentiu quando foi preso e quando o questionaram sobre a eventual veracidade das acusações levantadas contra si: “Quando fui acusado, ganhei ódio às mulheres negras. Sentia que tinha arriscado a minha vida. Quando fiz “Keep Ya Head Up” ninguém escrevia canções sobre mulheres negras… pensei que depois disso haveria mulheres por todo o país a dizerem “o Tupac não pode ter feito isto de que o acusam”, mas em vez disso as pessoas perguntavam antes “fizeste aquilo?””
Numa era de polarização, entre o hip hop e o mundo, entre a costa oeste e a costa este, entre Tupac e Biggie e a Death Row e a Bad Boy, as mulheres poderiam mesmo servir de arma de arremesso e isso aconteceu de facto no rap do homem de All Eyez On Me que fez insinuações sobre Faith Evans, mulher de The Notorious B.I.G. como forma de atingir o seu adversário.
O caso que opôs a Death Row e a editora comandada por P Diddy, a Bad Boy, e as suas maiores estrelas – Tupac e Biggie Smalls, aka The Notorious B.I.G. – é também sinal das dores de crescimento do hip hop que estava muito rapidamente a aprender como se comportar no topo da cadeia alimentar de uma indústria discográfica então no auge da sua forma comercial, quando vender milhões de discos era facto corriqueiro. Temas como “Who Shot Ya?” ou “Hit ‘Em Up” são sinais de um crescendo de violência que teria como culminar o desaparecimento prematuro e violento dos maiores símbolos de ambas as costas da América. mas, ao mesmo tempo, Tupac também assinava pérolas como “Dear Mama”, sinal da tal profundamente humana e contraditória personalidade que distinguia este rapper dos demais.
Me Against The World, primeiro, e All Eyez on Me, logo depois, representam essa recta final da vida de um rapper que nunca se contentou em encaixar-se apenas numa caixinha: capaz das mais desarmantes introspecções ou das mais lamechas tiradas, Tupac também foi violento ou meramente hedonista quando quis. Para alguém que tinha vindo de uma educação politicamente radical, “California Love”, clássico com marca do enorme Dr. Dre, poderá parecer o mais vazio dos gestos artísticos, um hino à ideia de festa mais desbragada possível, a uma vida de eterna celebração. Mas para alguém de 25 anos, que tinha chegado a viver nas ruas, que foi alvo de roubos e atentados, e que tinha acabado de cumprir uma pena de prisão, “California Love” era, afinal de contas, um grito de revolta, um valente “f*ck you” para o mundo, embalado a champanhe e com a lenda do funk Roger Troutman a fazer com a talk box o que hoje inúmeros rappers fazem com o auto-tune: a distorcer a realidade e a torná-la mais… improvável.
Tupac Shakur morreu a 13 de Setembro de 1996 na consequência de graves ferimentos causados por um ataque a tiro nas ruas de Las Vegas. Ao seu lado estava o patrão da Death Row Suge Knight, figura central da cena musical de Los Angeles e um dos principais arquitectos do sucesso do chamado Gangsta Rap. Knight, que diversas teorias apontam como sendo mandante das mortes de Shakur e, alguns meses mais tarde, de Biggie Smalls, o rapper de Nova Iorque também conhecido como Notorious B.I.G., foi preso pouco tempo depois do ataque a Tupac por ter violado a sua liberdade condicional e condenado a alguns anos de prisão. Teorias nunca cabalmente esclarecidas pelas investigações policiais que ao longo destas últimas duas décadas inspiraram dezenas de artigos, livros, filmes e documentários.
A verdade é que o domínio que o hip hop hoje consegue na indústria discográfica, com os principais artistas do género a afirmarem-se como fontes inesgotáveis de sucesso na era do streaming, remonta ao período em que Tupac se afirmou como um dos maiores artistas do planeta. Os números alcançados por este rapper tornaram ainda mais dramático o seu precoce desaparecimento: The Don Killuminati: The 7 Day Theory, o primeiro de uma aparentemente infindável lista de discos póstumos de Tupac, lançado em novembro de 1996 e assinado por Makaveli, alter-ego do malogrado artista, e também All Eyez On Me lideraram a lista de melhores vendas na semana de lançamento contabilizando juntos cerca de um milhão e 200 mil cópias. Já não se conseguem – no domínio das vendas físicas – resultados destes. Mas também já não se “fabricam” artistas assim, singulares, profundamente humanos, mas ainda assim capazes de sustentar nos ombros o peso gigante que só os mitos conseguem carregar.
Texto: Rui Miguel Abreu