Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Bad Brains – “Banned in DC”
Isto anda tudo ligado e ele sabia-o. Guitarrista de formação jazz e homem de ouvidos abertos, percebeu claramente. A revolução musical de Miles Davis e seus discípulos, Chick Corea ou John McLaughlin, ligava-se directamente àquela expressão musical inventada na Jamaica a que chamaram reggae, e que era manifesto cultural e veículo de intervenção política. E não era isso, também, aquilo que ouvia chegar-lhe desde Londres no grito irado dos Sex Pistols e no activismo inspirado dos Clash?
Dr. Know, o guitarrista nascido Gary Miller, viu com nitidez as pontes em que ninguém tinha reparado – e não esqueceu os discos dos Black Sabbath que, porque fronteiras na música são atentados à liberdade, tinha em casa ao lado dos de Stevie Wonder. . Dr. Know não perdeu tempo. Juntou o reggae ao o punk, este ao hard-rock de peso e às ambições estética do jazz (abracemos o diferente para inventar o presente) e fundou os Bad Brains.
À sua volta dois irmãos, o vocalista H.R. e o baterista Earl Hudson, e o baixista Darryl Jenifer. Quatro homens em Washington D.C., capital política dos Estados Unidos e distinto ninho punk da nação, a trocar as voltas a quem tinha o mundo muito tristemente arranjadinho com cada um no seu lugar. “Onde é que já se viu uma banda de quatro negros saídos do reggae a tocar punk?”, diriam as pobres almas que não “tavam entendendo nada”, como diria esse punk tropical chamado Caetano Veloso.
Onde é que já se viu? Pois se estavam ali mesmo, a tocar nos clubes de Washington e a serem banidos dos clubes da capital. Estavam ali, naquele mundo onde canções em descalabro, feitas de acelerações demoníacas, solos feitos lava eléctrica e voz zangada, eram seguidas do balanço segundo a vontade de Jah. Tudo reunido até que uma coisa, o punk a caminho do hardcore, e outra, o reggae viajando até caves fumarentas de Washington, ou de Nova Iorque, ou de terriolas que nem sabiam o que lhes ia cair em cima, se tornavam expressão do mesmo.
No final dos anos 1970, Washington tornou-se hostil para os Bad Brains. Banidos da maior parte dos clubes da cidade, mudaram-se para a Nova Iorque da Bowery, essa onde estava o CBGBs, essa onde estava marcado o epicentro do terramoto punk que já se fizera sentir, poderoso, do outro do Atlântico. Os Bad Brains chegaram em 1979, irresistíveis.
Os concertos eram verdadeiros acontecimentos, erupções de energia descontrolada que pareciam ter como objectivo derrubar tudo o que lhes aparecesse pela frente. Quanto a isso, o disco de estreia, editado em 1981, não deixava dúvidas. Na capa da cassete (foi nesse formato que primeiro o editaram), via-se a ilustração de um relâmpago a acertar em cheio no Capitólio, a casa do congresso americano. Como moldura, o laranja, verde e amarelo da bandeira rastafari. Título: “Banned in DC”. Não estavam a falar apenas dos clubes de Washington, assinale-se.
“Don’t worry, no worry, about what people say / We got ourselves, we gonna make it anyway”, sossegavam eles no canção título. E eram tantos aqueles nós. Os Bad Brains guiaram-nos e ainda os ouvimos em qualquer banda de punk hardcore, em qualquer banda que veja pontes onde os outros vêem fronteiras.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso