Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Dead Boys – “Sonic Reducer”
Havia a auto-mutilação em palco, a nudez e as profanidades avulsas enquanto o rock’n’roll avançava caótico palco fora. Houve aquela história de quando Stiv Bators, antes do jantar em que conheceria o seu ídolo Iggy Pop, o homem que lhe servira de modelo na forma de cantar, de vestir, de estar em palco, se sente demasiado nervoso e intimidado e cá vai disto: quatro Quaaludes para descontrair. Acontece que os barbitúricos a não produziram o efeito desejado. Quinze minutos depois, Iggy conhecia o seu jovem admirador. Era o tipo que apagara e tinha a cara enfiada na taça de sopa.
Houve aquela outra história de quando Johnny Blitz sai de uma loja de conveniência e vê o amigo Michael Sticca, roadie dos Blondie, envolvido numa confusão com uns durões. Enquanto se aproximava, os durões afastam-se, mas Johnny Blitz não se detém. Corre em perseguição dos tipos sem ligar ao que Sticca lhe dizia: “Deixa estar, Johnny, está tudo resolvido”. Foi a vez de Sticca ver uma confusão entre os durões e o amigo. Foi a vez de ele correr até à confusão. Quando lá chega, Johnny Blitz está estendido no chão, rasgado do pescoço ao umbigo. Já nem se percebia que era do “Conan” – esse, o bárbaro – a t-shirt que vestia. 17 navalhadas levou Johnny Blitz naquele dia. A morte rondou-o por perto, mas Johnny Blitz não podia ter deixado de se atirar de cabeça ao perigo, pois não?
Stiv Bators e Johnny Blitz eram o vocalista e o baterista dos Dead Boys. Cheetah Chrome e Jimmy Zero eram os guitarristas, Jeff Magnum o baixista – citam-se os nomes e pensa-se logo “tenho mesmo que ouvir esta banda”. E no final dos anos 1970, Nova Iorque punk ao rubro, tínhamos mesmo de os ouvir. Os Dead Boys eram uma das duas bandas nascidas das cinzas dos proto punks Rocket From the Tomb – a outra chama-se Pere Ubu. Tinham chegado de Cleveland chamados por Joey Ramone e não queriam perder tempo. Num ápice tornaram-se num dos ícones do mítico CBGBs, consequência da forma como, com os Stooges como modelo, levavam o rock’n’roll cru e selvagem ao extremo que, mais tarde, desaguaria no hardcore. Consequência de serem putos à solta na cidade dos seus sonhos, pessoal sem medo do ridículo, como Stiv Bators de cara enfiada na sopa, e inconscientes da dura realidade em volta, como Johnny Blitz a correr em direcção à ponta da navalha.
Eram caóticos, excessivos, tresloucados, ridículos – e muito bons. Eram voz de desdém perante tudo e todos. Amavam o novo rock’n’roll a que chamavam punk e tinham o coração no sítio certo. Ou seja, só o punk lhes interessava e detestavam tudo o resto. “Young, Loud and Snotty”, o título do primeiro álbum, editado em 1977, é auto-explicativo. Começava com “Sonic Reducer”, canção trazida dos tempos dos Rocket From The Tomb. Famosas primeiras palavras: “I don’t need anyone / Don’t need no mom and dad / Don’t need no pretty face / Don’t need no human race”. Digam-me sinceramente, como não os adorar?
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso