Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
La Banda Trapera Del Rio – “Ciutat podrida”
O contexto não é tudo, mas é muito. O punk explodia em Inglaterra, onde os ecos chegados de um bairro nova-iorquino tinham sido amplificados e transformados em movimento. O punk expandia-se e manifestava-se Europa fora. As vozes que cantavam transformavam-se em grito irritado, o ritmo acelerava, as guitarras recusavam manifestações estéreis de virtuosismo. Isto acontecia por todo o lado e tudo acontecia por causa do punk. Ou talvez fosse ao contrário.
Talvez que os tempos que se viviam então, com crise económica e social, consequência da crise do petróleo, fossem, afinal, o verdadeiro rastilho para que a música se tornasse assim. Talvez. Vejamos o caso aqui ao lado. Espanha, ou melhor, Catalunha, segunda metade dos anos 1970. A ditadura franquista a preparar-se para sair de cena e um grupo de filhos de operários dos subúrbios de Barcelona a dar voz ao fascínio pelos Beatles, por Chuck Berry, pelas cores do glam e a canalizar o fogo que sentiram acender-se neles quando se depararam com os Stooges e quando os The Who, loucura de de Keith Moon à cabeça, foram recuperados por toda uma geração espanhola. Chamavam-se La Banda Trapera del Rio e são considerados os precursores do punk espanhol. Só não lhes chamem punk. “Não somos punk”, diziam eles. “Isso tem a ver com outra sociedade, com outro mundo. Não queremos ser um loja de ferragens ambulante. A nossa história é a da gente de Viladecans, de Sant Boi, de Cornellá, de Bellvitge, que é onde vivemos e trabalhamos. Se fazemos música é para ir do mais sublime ao mais asqueroso”. Não eram punk, portanto. E, no entanto…
No entanto, a música que faziam era rock’n’roll de alta-voltagem, como se os revolucionários MC5 fossem descobertos a chafurdar na cave em que os Stones gravaram “Exile On Main St”. Era blues transportado para outro tempo e outra era, som transformado em fúria provocadora.
Os La Banda Trapera Del Rio nasceram em 1976 e tornaram-se mito na cidade que os viu nascer pelos concertos onde tudo podia acontecer e pela verve agit-prop niilista, como quando vestiram capas de nobreza antiga e respetivas coroas e andaram a passear pelas ruas de Barcelona num carro descapotável, escoltados por motards do bairro – o objectivo era recolherem assinaturas para uma candidatura à Câmara Municipal (estranhamente, não conseguiram). Isto aconteceu em 1978. Um ano depois, chegava o álbum de estreia, homónimo.
Cantavam a degradação na grande cidade, cantavam as vidas miseráveis que o conforto burguês fazia por ignorar, diziam-se filhos de bêbados e putas, gritavam que era urgente comprar mais gasolina para continuar a atear fogos nas ruas que se recusavam a acordar. Cantavam a cidade apodrecida que viam todos os dias há dias demais. Apresente-se então “Ciudad Podrida”, canção e manifesto de La Banda Trapera Del Río.
Não eram punks, diziam. Seja. Arranje-se-lhes outra categoria qualquer, mas não tenhamos dúvidas. A história que temos contado aqui é também a história desta banda. Seja ela punk ou outra coisa qualquer.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso