“As boas canções são como todas as coisas que amamos. São tão importantes quanto a grande arte”
The Poet’s Death. É a morte de um poeta que vem ajudar a dar vida ao novo disco de Mazgani. É o regresso do músico luso-iraniano às canções. À escrita das canções: essa nobre arte salvadora de vidas, como diz Mazgani, tão grande como todas as outras.
Falámos sobre Cohen e sobre Dylan. Dois dos heróis de Mazgani: um que faleceu em 2016, quando já estava a escrever este The Poet’s Death, o outro que viu os seus poemas e a sua escrita receberem o selo de “Literatura”, com a atribuição de um prémio Nobel. É sobre essa vida a escrever canções, a contar histórias, a efabular sentimentos, medos, opressões, desejos e profissões de fé que Mazgani nos fala. Também sobre o amigo Peixe, com quem trabalhou neste disco onde as guitarras, naturalmente, se fazem escutar mais. Sussurros que se transformam em grito, numa batalha em que do outro lado estão vulto e fantasmas que habitam a vida do autor.
Dois mil e dezasseis ficou marcado pela morte de um dos teus heróis, Leonard Cohen. Pelo título, este novo disco, The Poet’s Death pode pensar-se que este título vem com uma marca forte da morte?
Talvez que quando uma pessoa está em casa a escrever canções, a reclusão talvez seja, de certa forma, habitada por alguns fantasmas. A criação não é um ato solitário na sua totalidade. Esses vultos estão connosco, medimo-nos contra eles: um amigo, um pai, um poeta… há sempre esse elemento de orfandade na criação e acho que quem canta e quem faz canções está também a fazer elogios fúnebres, por definição.
Este elogio fúnebre é dedicado a um poeta específico, a um poeta imaginário, ou a muitos poetas?
Eu acho que essa parte deve caber ao ouvinte escrutinar. Importa haver espaço para a canção ser de quem ouve.
Eu sei que o disco ainda nem saiu [dia 29 de setembro] e pode ser injusto estar já a perguntar isto: mas quando é que estas canções deixaram de ser tuas?
Boa pergunta… [pensa]
Já sentes esse desprendimento das canções?
Absolutamente. É uma pedra no sapato que tem que se deitar cá para fora e uma vez acabadas as canções, procuramos enquadrar novos significados. Sobretudo, para mim, no palco. É isso que me interessa. E também há a esperança de que as canções continuem vivas, no sentido em que escrevemos, por exemplo, com um poeta em mente (sorri) e almeja-se que daqui a algum tempo, reencontrando a canção, ela tenha ainda coisas para me ensinar.
O teu disco anterior, Lifeboat, assentava no pressuposto de que as canções são um salva-vidas. E retrabalhaste as canções de outros e encontraste um novo significado para elas. Vives com essa ideia das múltiplas vidas das canções?
Eu acho que as boas canções são como todas as coisas que amamos. Eu acho que as canções são tão importantes quanto a grande arte ou o amor. São coisas que podem mesmo safar-nos do sarilho que é andarmos aqui. Se tu vires o quadro de um artista que amas e regressas ao museu passado dez anos vais dizer: “caramba, isto era mesmo bom”. As canções também, à sua medida, também devem ter isso. Eu imagino que tudo isto possa parecer pretensioso, ao comparar canções com o Vélasquez ou o que quer que seja, mas a questão é a forma imediata como uma canção te muda o dia e que pode safar, tal como a grande arte.
Achas que esses grandes pintores, quando se colocavam diante das telas, sabiam que iria sair dali algo grandioso?
Alguns sabiam. Estou a pensar nas Meninas do Vélasquez: ele devia saber exatamente o que estava a fazer.
Não querendo falar da grandiosidade que achas que têm as tuas canções podem ter, também consegues antever o que vai sair dali quando as estás a trabalhar?
Não faço a menor ideia. Nem sei se as canções vão chegar à próxima estação…
Quando é que decides isso?
Essa é a pressa: conviver com as canções o tempo que se acha necessário. A canção é um organismo no sentido em que põe-se nela o que tens. Depois começa a ganhar vida e ela dita o que precisa. Não é esotérico: é fácil de entender para qualquer ouvinte. A canção tem uma estrutura, tem regras… tens que respeitar essa coisas.
“[Para escrever canções] acho que preciso de silêncio. Não consigo escrever acompanhado. Preciso de estar sozinho… sinto que estou a fazer um strip-tease. Não dá para escrever no hotel ou na estrada”
Enquanto compositor pões-te “nas mãos” das canções? Ou também tens mão nelas?
Eu posso dar um exemplo que concretiza essa pergunta um bocadinho abstracta: tenho um querido amigo e mestre, com quem já trabalhei, que me perguntou, certa vez, o que andava a fazer e eu respondi que andava a tentar escrever canções. Ele disse-me: “Faz como o Jimmy Webb, que primeiro põe o título à canção e passa a ter uma canção para escrever.” Isso é ter mão na canção, em que se decide o que se vai fazer! Eu não tenho essa capacidade de pôr um título. Posso começar com um título, uma paisagem ou uma temperatura, mas depois vou descobrindo o que a canção é à medida que vou fazendo… parece pretensioso, eu sei…
Nada disso, Mazgani. Cada um trabalha como acha que é melhor para a sua criatividade, não?
Há uma escritora que admiro imenso que, no seu epistolário, aparece uma carta de alguém que diz: “eu quero escrever, mas não sei o que escrever”. Ela diz: “começa a escrever porque a história está dentro de ti.” É a tua vida, a tua infância, o joelho esfolado está em ti. É essa abordagem às minhas canções.
Para conseguires fazer esse exercício, de falar sobre os teus joelhos esfolados, do que é que precisas? De tempo e espaço?
Acho que preciso de silêncio. Não consigo escrever acompanhado. Preciso de estar sozinho… sinto que estou a fazer um strip-tease. Não dá para escrever no hotel ou na estrada.
É mesmo uma relação íntima que é criada.
E em reclusão. Normalmente é um período chato. Não quero que pensem que eu trabalho muito, ou que começo a ficar meio alheado.. as coisas começam a desinteressar-me. As pessoas falam e eu desinteresso-me.
“O Peixe tem uma caligrafia reconhecível. Tem o seu traço, uma personalidade muito vincada a tocar. Mas toca tudo, sem perder a identidade e individualidade. É maravilhoso tocar com ele. E é um homem extraordinário!”
Faz com que tenhas mais pressa em fazer as canções, para poderes voltar ao teu estado “normal”?
Sim. Pressa, porque é mesmo chato… começo a ser má companhia para mim próprio.
The Poet’s Death é produzido pelo guitarrista Peixe. Como é que apareceu este convite? As canções precisavam das guitarras do Peixe?
O Peixe tem uma caligrafia reconhecível. Tem o seu traço, uma personalidade muito vincada a tocar. Mas toca tudo, sem perder a identidade e individualidade. É maravilhoso tocar com ele. E é um homem extraordinário! E isso também é importante: estar rodeado das pessoas que queres quando estás a gravar. O estúdio é um sítio mais ou menos delicado: há alguma ansiedade de desempenho, as pessoas estão um bocadinho expostas, em carne viva… e é bom que haja tacto, entusiasmo, encorajamento. E o Peixe aí foi fundamental.
Já sabias o que pretendias dele ou o Peixe acabou por ter mão nestas canções?
Absolutamente. Convive-se com a canção o tempo necessário para ela ditar uma estética e depois queres que as pessoas tragam a sua individualidade e queres ser surpreendido.
Como é que explicas aos músicos aquilo que queres?
De uma forma muito abstrata e surreal. Eu não sei música… o Tom Waits é que dizia: “Toca como se o teu cabelo estivesse a arder.” É por aí — apesar de eu não ter nenhuma tão boa. Mas posso dizer “toca mais azul…” É muito abstrato. “Toca menos notas” (risos). “Estraga a canção”, quando o exercício de estilo é muito reconhecível — “eu quero uma interferência!” Será que faz sentido? Eu acho que eles entendem!
Os teus dois últimos trabalhos eram um pouco mais intimistas, mais despidos. Aqui, e havendo muito desse “despir”, por outro lado há um regresso às distorções e às guitarras altas: o tema “Breath of Gold” ou o single “The Traveller”.
São as canções que pedem. É a canção e a forma como ela é escrita. O “The Traveller” surge numa sala de ensaio como esboço daquilo que reconhecemos, comigo e o Peixe a tocar. Eu a tocar, ele faz um riff e assim foi. Adorei o riff, até meio redneck, mas que gostei muito. A “Breath of Gold” também foi uma coisa muito imediata que surge na sala de ensaio… isto para dizer que tem que ver com a urgência da canção. A história ou a voz precisa de um certo espaço e isso é preciso despojar imenso a canção, a meu ver, para que seja ouvida. Depois há outras em que a voz consegue cortar, pela forma como articula a voz, consegue cortar entre o ruído — mas precisa do ruído.
O primeiro single vem com o título “The Traveller”. Essa ideia de viagem e de viajante é algo permanente em ti? Fico com a sensação de que mesmo fazendo os discos parece que nunca estás naquele sítio onde gostarias de estar.
E não somos todos assim um bocadinho? (sorri) O António Variações diz isso melhor do que eu! O “é mesmo isto” é a morte do artista. O artista tem que estar sempre um bocadinho… [pausa] “O artista” dito em português soa mal! ” (risos) E nas histórias bonitas, na mística e na poesia, a terra prometida afasta-se. Nem toda a gente pode ser “artista”, mas toda a gente pode ser criativa. A forma como nos relacionamos com o outro, a forma como queremos ser filhos ou pais. Implica imaginação, criatividade e talento.
Tudo isso é uma ideia também de viagem.
Eu acho que somos todos “travellers”. Não nos sentimos sempre aquém como pais, filhos e amigos? Se sentimos, estamos mais ou menos safos. No dia em que disseres “eu sou um grande pai!” provavelmente estás a esquecer-te da tua avozinha dentro do carro…
“Eu sofro de um profundo síndrome de impostor. “Isto não é para mim”; “eu não devia estar a fazer isto”. Mas olho para trás e vejo pontos onde esta “farsa” tornou-se mais séria… se hoje me disseres, agora, “tu não és cantor”, eu já te mando ir dar uma volta”
Como é que olhas para o mapa de viagem do Mazgani na música? Que carimbos é que tem o teu passaporte?
Eu sofro de um profundo síndrome de impostor. “Isto não é para mim”; “eu não devia estar a fazer isto”; “Isto é para quem sabe”… são tudo ideias por ter começado a fazer isto muito tarde. Olho para trás e vejo pontos onde esta “farsa” — esta máscara que pus para dizer às pessoas que fazia música — tornou-se mais séria. Vejo isso em alguns discos, em alguns encontros, algumas pessoas com quem trabalhei e canções que escrevi… se me disseres, agora, “tu não és cantor”, eu já te mando ir dar uma volta. Mas se calhar, antes destes episódios, diria “eu sei”; “estou a tentar”… eu quis que isso se tornasse a minha vida e foi-se tornando.
Alguma vez sentiste que olhavam para ti como impostor?
É algo que se sente mais pessoalmente. As pessoas com quem trabalhei foram sempre muito, muito encorajadoras. Sempre me disseram “deixa-te de coisas!”.
E isso também faz com que hoje também já te sintas à vontade naquela altura do silêncio e reclusão; da escrita de canções?
Com o passar dos anos, isto não fica mais fácil. Eu não penso nem na glória, nem nos séculos, nem na imortalidade. O que eu mais gosto de fazer é cantar. Esta coisa de escrever canções e andar com guitarra é porque no início o plano era ser autónomo.
Existe um Mazgani no palco e outro Mazgani fora dele?
Espero que sim. Isso é uma coisa que levo muito a sério. Inclusivamente tenho um uniforme para o palco: levo uma indumentária que me faz sentir que estou a trabalhar.
Porque é que tens essa relação de tamanho respeito com o palco? Achas que foi por já teres começado a trabalhar com a música já mais tarde, na casa dos 30 anos? Por teres estado tantos anos a olhar o palco de fora e a desejá-lo tanto faz com que hoje tenhas um respeito grande por ele?
Eu sinto-me muito feliz no palco. É o que eu mais gosto nesta “brincadeira” toda das canções, da reclusão e dos discos. Onde me sinto inteiro é a cantar no palco. E não quero trair isso: quero tanto que corra bem — porque o “correr bem” é algo em que o barómetro sou eu. As pessoas às vezes podem adorar e eu saber que poderia ter sido melhor. O ser melhor é as canções levantarem voo, adquirirem novos significados, que por uma hora ou hora e meia as pessoas não estejam só a ver, mas que lhes esteja a acontecer alguma coisa. Esse é o desejo. Aí estou a ser pretensioso, mas a minha ambição é desmesurada: eu quero isso.
Tens conseguido isso?
Há noites…
“Com o passar dos anos, isto não fica mais fácil. Eu não penso nem na glória, nem nos séculos, nem na imortalidade. O que eu mais gosto de fazer é cantar”
Também não tens uma fórmula que diga que sim ou não.
Não se sabe… são muitas coisas: é quem está em palco, é a sala, é o equipamento, o amplificador que pode não estar com aquele sonzinho que querias… qualquer coisa.
Como é que estás a preparar os concertos deste The Poet’s Death? O Peixe vai acompanhar-te nesta digressão?
Sim, já começámos a ensaiar. É muito boa esta altura de ter canções novas na sala. Estou entusiasmado… acho que vai ser um concerto com pica. As pessoas vão gostar. Nós estamos a curtir e isso é meio caminho para as pessoas gostarem também.
É nesta altura que as canções começam a ganhar a outra vida de que falávamos?
Absolutamente. Não há como o palco, nada substitui o palco. Podes fazer mil ensaios, mas é na urgência daquele presente imediato… nós vemos vídeos no YouTube, mas nada é a mesma coisa que um concerto. Falta a bojarda, o som, o corpo, o suor. É aí que é a prova das canções, a ver se está ou não a resultar.
“[A canção] É uma pedra no sapato que tem que se deitar cá para fora e uma vez acabadas as canções, procuramos enquadrar novos significados. Sobretudo, para mim, no palco. É isso que me interessa”
Comecei a entrevista por te perguntar da morte do poeta, isto um ano depois da morte de um dos teus ídolos, o Leonard Cohen — passaste inclusivamente aqui pela Antena 3 para fazeres um especial dedicado ao canadiano. O ano passado ficou marcado por isso, mas também pela glorificação de um dos teus outros ídolos: o Bob Dylan, com um Prémio Nobel da Literatura. Dás importância a esse galardão?
Para mim foi justo, mas estou quase a ser juiz em causa própria. Acho bem, até por aquilo que dissemos que as canções se inscrevem no mesmo capítulo da grande arte que nos pode safar. O Dylan está a fazer o mesmo empreendimento: a dar coisas para os nossos dias serem salvos.
Foi então um ano de morte e glorificação…
Sim… foi uma perda… The Poet’s Death também é isso. Estamos sempre a relacionar-nos com a história que vem antes de nós. E há sempre esta orfandade… Mas sim, agora que falamos disso: a morte do Leonard Cohen foi… foi muito… não sei o que dizer. Acordei no dia seguinte…
Já estavas a fazer este disco?
Sim, já estava… abalou-me muito. Ele estava muito lá em casa, não é? Nos meus auscultadores, nas colunas da sala, na minha adolescência. Era um gajo que estava lá… Mas deixou um testamento lindíssimo, um último disco, de quem sabe, que está preparado para abraçar outras coisas…
Entrevista: Bruno Martins