Não é um top 5 pessoal nem uma lista dos melhores do festival. São cinco que o Festival de Berlim viu nascer e que em breve vão chegar a uma sala perto de nós. Cinema exploratório para acreditarmos que há invenção na Sétima Arte. Por Rui Pedro Tendinha.
Serpentário, de Carlos Conceição
Presença portuguesa no Forum, secção mais “indisciplinada” de todo o festival. A primeira longa do realizador de curtas como Boa Noite Cinderela e Coelho Mau é um filme “lullaby” que apresenta uma história com ressonâncias biográficas e que nos coloca num passado e futuro africano.
João Arrais é alguém que regressa a África, entre um embate de nostalgia pela infância e uma demanda pela mãe, alguém que ficou sempre longe dele. Dir-se-ia que se trata de um objeto de cinema que transmite sensações cósmicas. As singularidades de um rapaz branco que é também um pulsar de um mistério íntimo.
Aqui e ali tem um teor experimental que parece déjà vu, mas é sempre lúdico na sua ambição poético-filosofal. Cheira que poderá vir a ter estreia em Portugal no Curtas Vila do Conde, festival que sempre tratou bem Conceição.
Out Stealing Horses, de Hans Petter Moland
Stellan Skarsgård é um idoso que decide afastar-se da sociedade e viver numa casa isolada nos confins da Noruega. Uma busca interior para fazer o luto da mulher e do trauma do abandono do seu pai na adolescência.
Moland conta um trauma familiar com um bom gosto invulgar, sobretudo a nível estético — o filme venceu o Urso de Prata de melhor fotografia. Acima de tudo, o que impressiona é um permanente sentido de morte numa narrativa que nunca descarrila numa boneca russa de níveis temporais.
Ensaio sobre a culpa, Out Stealing Horses às vezes não empolga, mas é verdadeiramente perturbante numa surpresa de “twist” que poderia ser facilmente replicada em Hollywood. A propósito, por incrível que pareça, este é o realizador de Vingança Perfeita, esse filme de ação de Hollywood com Liam Neeson…
Celle que vous croyez, de Safy Nebbou
Na secção Panorama, houve um pequeno grande caso de culto. Chama-se Celle que vous croyez e é um melodrama provocante com Juliette Binoche e o sex symbol François Civil, uma história de amor entre uma mulher cinquentona e um jovem. Mas o “twist” é que o romance é apenas virtual, tudo se passa apenas nas redes sociais, com o rapaz a pensar que está apaixonado por uma jovem da sua idade. Pelo meio, há sexo através do telefone, muita paixão e alguma tragédia.
Um filme dos nossos dias com uma linguagem escorreita e simples. Nebbou tem alguns méritos como cineasta. Sabe tomar riscos narrativos, sobretudo quando transforma alguns momentos em explícita sessão de terapia, embora este psicodrama ganhe as portas do paraíso quando a câmara convida muitas vezes o espetador a perder-se no rosto da grande Binoche, aqui mulher de todas as idades: temos a sua jovialidade, mas também as rugas e a amargura. É talvez um dos grandes desempenhos da maior atriz francesa.
Grâce à Dieu, de François Ozon
Venceu o Urso de Prata e foi um dos filmes mais comentados do festival, para o bem e para o mal. Trata-se de um olhar de investigação sobre uma história verdadeira de pedofilia na França dos nossos dias, neste caso uma teia de abusos de um padre de Lyon a mais de oitenta crianças. Ozon filma em flashbacks o abuso do padre (muitas cenas passam-se num campo de escuteiros em Portugal) e mostra como as vítimas passaram ao ataque num caso jurídico que denuncia o silêncio das altas esferas da Igreja Católica.
Ozon é prático e funcional na tese de filme de investigação, mas tem sempre uma classe elementar na forma como aplica uma certa dureza emocional. Grâce à Dieu é daqueles filmes que vai direito à questão. Poderia ser apenas “didático”, mas é mais do que isso, repensando o papel artístico do cinema comercial em forma de inquérito.
Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes
Sensação na secção Panorama Documental. É o novo filme de Marcelo Gomes, o cineasta de Joaquim. Desta vez, o convite é um documentário escancarado que nos abre os olhos para as condições de trabalho no Brasil mais esquecido, neste caso em Agreste, zona pernambucana que vive agora de uma indústria do fabrico de calças e saias. Um olhar que é testemunha de uma prática de trabalho que aprisiona o povo numa teia capitalista em que ninguém tem tempo para sonhar ou descansar.
A nova escravidão pode passar por aqui, embora a câmara de Gomes tenha uma leveza que não é inquisidora, antes pelo contrário. Cabe aqui humor e uma presença “light” do próprio cineasta. O melhor do filme é a forma como consegue dar integridade a estes trabalhadores. O cinema humanista passa por aqui.