“A rádio é o instinto primário por trás de Batida”
Dois mil e dezassete está a ser um ano especial para Batida: não é por Pedro Coquenão celebrar dez anos deste nome artístico que nasceu na Antena 3. Este é também um ano de mudanças, de novas experiências e também de uma nova casa para Batida. Estivemos no Village Underground, em Lisboa, onde daqui a um par de semanas vai ser instalado um contentor que será o espaço que vai acolher a produção de novas faixas do projeto. Um contentor com vista para a LX Factory, em Alcântara, ali bem ao lado, que será, na sexta-feira, palco para uma performance muito especial de Batida. No Lisboa Dance Festival – Clube Antena 3 – Coquenão vai apresentar um concerto de tributo à rádio que ajudou a fazer crescer Batida, mas também um tributo ao objeto: ao rádio-despertador OSKAR do avô de Pedro, ao rádio que estava na cozinha da avó e onde ouvia António Sala, mas também ao boombox – o “tijolo” – onde fazia zapping à noite, no seu quarto, e que também partilhava com os amigos. As memórias, sempre as memórias. São muitas delas que lhe alimentam o espírito e fazem descobrir a novidade. É nelas que encontra a frescura que às vezes se julga perdida. “Não sou saudosista nem gosto de repetir, mas acho que há sempre qualquer coisa de construtivo em reviver algo.”
O que é que estás a preparar para esta atuação no Lisboa Dance Festival? É uma performance que está muito relacionada com as tuas memórias de há mais de dez anos na rádio.
Sim. Eu já fiz rádio e já tive outros trabalhos e identidades artísticas anteriores, seja lá o que isso for. Antes a Fazuma, quando estava na [rádio] Marginal. Enquanto a Fazuma passou pela Marginal, pela Radar e pela Antena 3, o nome Batida comecei a usá-lo, há dez anos, no contexto da Antena 3 e da RDP África. Foi em 2007: tinha esta ideia de que havia um buraco musical, que era esta comunicação entre a diáspora e as próprias cidades em África às quais estou ligado – nomeadamente Luanda e Joanesburgo. Depois havia muita coisa a acontecer especialmente em Lisboa, com pessoas que me eram próximas e que não tinham espaço disponível na rádio. Muito do que se ouvia, na realidade, no dia a dia, não estava na rádio. E eu achei que o programa deveria refletir isso.
É, então, na rádio que começa esta vontade de criar pontes através da música.
Sim, a rádio é o instinto primário por trás deste nome que eu uso. Batida é um nome bastante simples e minimal que tem que ver com qualquer coisa que te bate, mas tem que ver com uma necessidade de comunicar e de estabelecer laços entre coisas. E fazer chegar algo às pessoas. Tem sempre muito de divulgação, de contador de algo que estou a ver.
“O nome Batida comecei a usá-lo no contexto da Antena 3 e da RDP África. Foi em 2007: tinha esta ideia de que havia um buraco musical, que era esta comunicação entre a diáspora e as próprias cidades em África às quais estou ligado – nomeadamente Luanda e Joanesburgo.”
Porquê a ideia de, nestes dez anos, voltares a essas origens da rádio com este espetáculo?
Eu acho que somos todos muito reféns dos números. Por mim, celebrar nove anos é tão importante como 11. Se eu te disser que este ano celebro 12 anos tu vais dizer-me: “O que é que isso interessa?” (risos) Tanto as bandas como os casamentos celebram sempre os números gordos e não sei porquê! Às tantas, a celebração é algo que devemos fazer a toda a hora, mas, para todos os efeitos, os humanos com quem tu partilhas esta triste condição de vida (risos) ligam-se muito a estes números. Quando tive o convite para participar no Clube Antena 3 do Lisboa Dance Festival, apercebi-me que comecei a pensar em algo que ainda não tinha pensado antes: “onde é que eu estou e o que é que há aqui se possa agarrar?” Eu tento sempre partir um bocadinho de uma base de normalidade e do que é mais óbvio – às vezes descuramos o óbvio.
E como é que isso se traduz para o palco do Clube Antena 3?
O óbvio é ver que este ano faço dez anos! Será que isso me permite contratar 20 bailarinos, ter canhões de confetis e um palco de 50 metros por dez? “Epá, isso não Pedro, porque é o tamanho da LX Factory”. Há que descer à realidade: tenho a condição dos dez anos, estou num ano em que não tenho disco preparado para sair – lancei o disco com Konono Nº1 no ano passado e este ano vou estar a produzir música nova. O que posso partilhar com as pessoas é o processo do ponto em que estou até ao próximo disco. Esta performance que vou fazer é uma das etapas nessa caminhada. E tenho ido parar muitas vezes à rádio, que me chama naturalmente.
Consegues perceber porquê?
Hoje em dia há muito a ideia de fazer de tudo, tudo: Televisão é rádio e rádio é cinema… mas na realidade, por muito que queiras quea rádio seja internet e que a internet seja rádio, há qualidades que são intrínsecas de cada meio: a rádio tem determinadas qualidades que a internet não tem e vice versa. E a rádio tem determinadas qualidades que o músico, o DJ ou o artista plástico não tem como óbvias. Tenho gostado de, nos últimos tempos, de trabalhar com as limitações – e se calhar é para aí que vou em termos de disco. O que eu posso fazer nesta atuação é tentar devolver o amor do convite com as limitações que ele tem – de espaço e de instrumento – e tentar fazer algo que não seja uma versão reduzida do meu espetáculo, mas antes uma versão única. É uma sala na livraria Ler Devagar, sem grande história a não ser a sala para a Antena 3, e pareceu-me óbvio fazer algo que se relacionasse com a própria Antena 3.
“Quando falo no objeto rádio, para mim é o despertador do meu avô, que era um OSKAR; é o rádio na cozinha da minha avó a tocar e é a boombox pequena que eu tinha no meu quarto, que podia transportar para a rua e levar para a praia e era o soundsystem da minha crew de amigos”
O próprio rádio, o objeto físico, também será parte integrante – visual – desta performance. De tal forma que lançaste um apelo para te emprestarem rádios.
Quando se fala em rádio – mesmo num rádio – tenho quase a certeza que a maior parte das pessoas imaginam uma de duas coisas: ou o transistor da bola ou então um rádio daqueles que faz decoração em casa, que é aquele rádio dos anos 60 ou 70, que nem apanha, na maior parte das vezes, FM e às vezes nem funciona. Mas que é giro e bonito, entra em videoclipes ou telenovelas. Mas eu tenho outra memória da rádio: para mim é o despertador do meu avô, que era um OSKAR; é o rádio na cozinha da minha avó a tocar e é a boombox pequena que eu tinha no meu quarto, que podia transportar para a rua e levar para a praia e era o soundsystem da minha crew de amigos.
E cada um desses rádios tocava coisas diferentes.
Sim, cada um deles tinha uma identidade diferente. O da minha avó tinha normalmente o António Sala ou alguém a falar; o do meu avô tinha qualquer coisa só para ele acordar. E o meu era o zapping que fazia à noite. O rádio, para mim – e para as pessoas que têm mais do que 20 anos – era quase como se fosse navegar na net à procura que estava a acontecer em tempo real. E claro, a relação do rádio com a cassete onde gravava para mais tarde poder ouvir: o rádio tem a ligação com a gravação e pesquisa.
Mas quer então dizer que tinhas um daqueles “tijolos” de andar a passear com ele pela mão e ao ombro?
Quando esses rádios apareceram até eram visto como ameaças! A maior parte das pessoas irritava-se por estares a ouvir música tão alta… ainda mais alta do que os telemóveis de hoje a tocar no metropolitano. O objeto “tijolo” é-me muito próximo porque eu tinha um e partilhava com os meus amigos. Na realidade, muitos dos discos, e alguns artistas que eu adoro – dos Clash aos Beastie Boys – houve momentos em que os vi, sem dar conta, com esses objetos ao pé deles. Tenho afeto por esse objeto. Mas é interessante que quando peço rádios, normalmente os que me oferecem e querem partilhar comigo, não são assim: são os pequenos da cozinha ou da oficina, ou então um bacamarte qualquer parado na sala. Nós não tivemos por cá essa cultura de rádio enquanto objeto: houve mais das pessoas que gostavam de hip hop – que foi quase um statement. O nosso rádio vintage é um rádio dos anos 1970. O cinzento dos anos 1980, não tão charmoso, não é vintage, mas também não há muitos à venda iguais àqueles que víamos nas capas dos Beastie Boys, LL Cool J ou Run DMC. Esta performance e esta reunião de rádios é quase saciar essa minha miséria de adolescente de não ter tido acesso a isso tudo, bem como tributar e atirar para a ribalta o objeto rádio.
Pode dizer-se que vais estar a fazer, em palco, o teu próprio zapping por várias estações, postos e frequências?
Não quero elaborar muito para manter algum tipo de aura, mas é uma coisa muito simples: é uma emissão de rádio recuando à altura em que comecei na Antena 3 até agora. Podia dizer que “é um disc-jockey que vai desde 2007 até aos dias de hoje!” Não sei se é cronológico, não sei se consigo ser tão autista. O tributo ao lado técnico da rádio vai antes ser feito ao longo do ano com outras coisas – e já fiz em alguns concertos, porque gosto do rádio também como instrumento. Aqui é mesmo o objeto: há uns que são tão lindos que quero trazer essa beleza. As pessoas gostam de ver DJs bonitos, mas eu trocava já a minha cabeça por aquele rádio que está na foto! Se eu tivesse cabeça de rádio não estava com esta conversa toda e era só eu a pôr música!
“Não sou saudosista nem gosto de repetir, mas acho que há sempre qualquer coisa de construtivo em reviver algo. Gosto de voltar atrás, passar pelo mesmo sítio e tentar perceber o que é que perdi e tentar retificar, quando é possível, aquilo em que fui limitado na primeira passagem”
Tudo isto parece mexer muito com as tuas memórias: dez anos, os rádios dos teus avós, as músicas que ouvias à noite e depois com os teus amigos. Isso pode deixar marcas para o próximo capítulo de Batida?
Sim: o próximo capítulo tem muito que ver com andar para trás para andares depois para a frente. Eu já me apercebi que o tempo passa tão rápido que às vezes nem dá para processar tudo na altura certa. Eu gosto de abrir janelas, gosto muito da utopia (e estou com uma t-shirt a dizer utopia [risos]), gosto muito do sonho e desse processo de tentar projetar coisas melhores do que aquelas que temos e às vezes o andar para trás dá-nos a oportunidade de ver o que aprendeste, que nem te apercebeste, e ver como fazer melhor ou fazer novamente a mesma coisa de outra maneira. O andar para trás na rádio, o ir buscar o som e tê-lo como parte do processo criativo é algo que está a acontecer.
“O que vou fazer no Clube Antena 3 é uma emissão de rádio recuando à altura em que comecei na Antena 3 até agora. Podia dizer que “é um disc-jockey que vai desde 2007 até aos dias de hoje!” Não sei se é cronológico, não sei se consigo ser tão autista”
Para lá das questões mais políticas e sociais, a ligação entre Luanda e Lisboa, em que tens-te envolvido ao longo dos anos, o trabalho de Batida tem sido sempre muito ligado às memórias afetivas: às recordações de Angola, à vinda para Lisboa, à música que veio contigo e com a tua família, àquilo que ouviste na adolescência e, claro, a rádio. Quando crescemos parece que nos embrenhamos em tanta coisa que deixamos de ter a capacidade de sentir no momento. E são essas memórias mais antigas que nos fazem voltar a fazer sentir algo.
A sentir as coisas e a vivê-las. É uma condição muito humana estar a viver coisas que são boas e não as reconhecer como boas no momento. É preciso distância! Não sou saudosista nem gosto de repetir, mas acho que há sempre qualquer coisa de construtivo em reviver algo. Gosto de voltar atrás, passar pelo mesmo sítio e tentar perceber o que é que perdi e tentar retificar, quando é possível, aquilo em que fui limitado na primeira passagem. No caso da música angolana, não é só uma recordação de infância: eu até confesso que, nessa altura, ficava meio desconfortável em ver tanto adulto histérico a dançar. Eu ficava a vê-los a achar que se estavam a passar! A seguir passas por uma outra fase em que achas que aquela música é de velhos e não tem ponta por onde se pegue e não quero ter nada a ver com aquilo; e numa fase seguinte aquilo até tem algumas coisas de interesse: “Se calhar é essencial! Afinal é mesmo. Porra, tenho que voltar lá, usar e reciclar. E ligar-me àquilo não pela geografia, mas pelas emoções da canção de intervenção e de dança de cá e de Angola.” Eu desconfio que nós, desde crianças, já somos muito daquilo que somos para o resto da vida – e o que fazemos, muitas vezes, é aprender e depois tentar desaprender. Voltar a esses pontos relembra-te aquilo que és e aquilo que é importante e inevitável em ti.
Como é que estás a projetar o calendário de Batida para 2017? O que estás a preparar para os próximos tempos?
O plano criativo do ano inclui alguns objetivos que quero cumprir. Esta é uma forma de começar, mas arranquei o ano com dois showcases: um em Nova Iorque e outro no Eurosonic (em Groningen), onde já tentei fazer uma coisa diferente: o “Almost Perfect DJ”, que espero conseguir fazer algumas apresentações.
“Eu desconfio que nós, desde crianças, já somos muito daquilo que somos para o resto da vida – e o que fazemos, muitas vezes, é aprender e depois tentar desaprender. Voltar a esses pontos relembra-te aquilo que és e aquilo que é importante e inevitável em ti”
O que é o “Almost Perfect DJ”?
O contexto adequado é o palco clássico de DJ (sorri) de hoje em dia: com fumos, colunas fortes e brutas… o que houver lá utiliza-se! Parede de LEDs, eficaz e pujante, para poder apresentar de forma digna isto! Obviamente que vou ter alguns shows, porque há convites que vão surgindo. E ir concretizando algumas coisinhas: esta pequena instalação no Clube da Antena 3; uma residência no Westway em Guimarães – o Júnior dos Terrakota e o Guillermo dos Primitive Reason; e fechar-me num contentor e começar a produzir o disco. E nesse processo, quero pôr cá fora uma mixtape e, no final do ano, conseguir recolher ideias que vão compor o próximo disco.
Bruno Martins