Querido Mário,
Sabes, é tramado ir percebendo que uma grande parte da nossa identidade musical, a matriz que forma o nosso gosto e assim define a forma como ouvimos, foi definida pela música que nos chegou dos EEUU e do Reino Unido. O que os blues começaram, as portas que o jazz abriu e a criatividade de pensar num gira-discos como um instrumento, desenharam o mapa sobre o qual hoje a música que sabemos nossa, se redifine e procura a novidade. É tramado perceber que como não anglo-saxónicos estamos agora a olhar para as nossas próprias origens por um filtro “bife”. Mas a mistura é mesmo assim, só se avança com fusão, o que pode ser confuso. Por isso quando ouvimos um disco que parece mostrar uma viagem interna à memória das canções da vida de um americano, essa viagem também é nossa. É tramado que a música exista com origem mas sem fronteira e nós é que andamos aqui a balouçar, hesitantes sem saber o que fazer com a liberdade que ela nos dá.
Nightlands é o projecto a solo de Dave Hartley, o baixista dos elegantes atualizantes da canção americana, The War on Drugs. Ao terceiro disco, Nightlands, invoca o som que fundou o seu gosto por música num retrato que re-enquadra artista sessenciais da playlist adult contemporary de uma qualquer estação de rádio AM dos anos 70. A subtileza sofisticada de Simon and Garfunkel junta-se às camadas de água quente dos synths do yacht rock, deixando flutuar por cima as harmonias vocais que os Crosby Stills and Nash ensinaram aos Chicago. I can feel the night around me é disco que nos deixa ouvir o David Hartley a envolver-se na mais solarenga nostalgia. O tramado é que a sua memória é também a nossa, e de repente a California com que sonha, é uma costa livre que vai de Moledo a Sagres.
Quim Albergaria é um pai e marido que toca nos PAUS e cantava nos Vicious Five. Fala e escreve por profissão, come e bebe por natureza. Moderado evangélico da Livreza e Bacanidão, conversa com Mário Lopes todas as semanas na Antena 3, em O Disco Disse.