“Manter as coisas o mais minimal possível, repetindo-as até à exaustão, até entrar numa espécie de transe coletivo”
Há quem pense em dez mil cidadãos da Rússia. E há quem se lembre do ícone grego que cantava “Goodbye My Love Goodbye”. “É apenas um nome”, sorri João Pimenta — também conhecido como Joca — baterista do trio 10 000 Russos, a banda que foi buscar o nome a um trocadilho durante uma noite de copos e que pagou por ele “um fino”.
Nem a Orquestra do Exército Russo de São Petersburgo nem o pop-rock progressivo de Demis Roussos: os 10 000 Russos são João Pimenta, Pedro Pestana e André Couto, uma espécie de rolo compressor do pós-punk carregado de fuzz, volumoso, suado, repetitivo que nos envolve nas baixas frequências para depois nos atirar ao ar pelas paisagens mais psicadélicas das guitarras.
Ora, os 10 000 Russos têm um novo disco, a terceira edição da banda, depois de uma cassete de estreia e do primeiro longa-duração de 2015. Este chama-se Distress Distress e conta com seis temas. João Pimenta e André Couto contam-nos como nasceu este novo trabalho e antecipam a digressão europeia de 37 concertos em 46 dias; uma aventura que os vai levar do Porto até à República Checa com paragem em Espanha, França, Inglaterra, Escócia, Dinamarca ou Alemanha.
O arranque desta tournée acontece hoje, 10 de maio, no Café Au Lait, no Porto. Amanhã vão até ao Sabotage, em Lisboa e passam ainda, dia 12, pelo SOIR, em Évora, e dia 13 pelo CAEP de Portalegre. Depois disso, Portugal só lhes volta a botar a vista em cima a 26 de junho, no Porta 11, em Monção, onde vão ter uma travessa de cabrito e uma malga de vinho verde à espera para matar as saudades.
Distress Distress é o vosso novo disco. Mudou, de alguma forma, o vosso processo de criação para este trabalho?
André — Não. O nosso processo sempre foi este: construir as músicas em jams, nos ensaios, aproveitando as ideias e trabalhando. Não foi muito diferente — mas ao mesmo tempo foi: ou seja, havia umas três músicas que tínhamos e fomos trabalhando ao longo das digressões e concertos. Essas foram a base do disco, enquanto as outras três foram outras ideias que tinham saído em jam sessions anteriores e que desenvolvemos no estúdio e não no palco. É um misto do processo que utilizámos no disco anterior.
Fizeram três tours europeias em dois anos. Isso é um bocado impressionante para uma banda portuguesa, passar tanto tempo na estrada. Essas digressões também tiveram uma importância grande naquilo que se ouve no disco?
João — Sim. Começámos em novembro de 2015; depois fizemos uma outra tour de 28 datas em 2016 e depois mais uma de 18 ou 20 datas. E a tocar todos os dias a banda cresce! Porque começa a ganhar rodagem, começamos a habituar-nos e, basicamente, quase que adivinhamos o pensamento uns dos outros. E por isso foi importante para o próprio crescimento musical da banda. Sente-se uma banda mais coesa.
Mas essa coesão era algo que já vinha de trás, ainda que este seja o vosso segundo longa-duração.
André — É um crescimento. Nós somos mais uma banda de estrada do que de estúdio. Construímos as músicas tocando-as, experimentando-as ao vivo, nas nossas jams. E com todos os concertos que demos, as próprias músicas vão-se alterando porque existe uma forte componente de improviso e isso leva a que as músicas melhorem. Por exemplo, se ouvirmos as músicas do nosso primeiro disco, a forma como as apresentamos agora já se nota uma grande maturação. Neste disco, como parte do disco foi também sendo composto na estrada, é natural que já se note isso.
“A tocar todos os dias a banda cresce! Porque começa a ganhar rodagem, começamos a habituar-nos e, basicamente, quase que adivinhamos o pensamento uns dos outros. E por isso foi importante para o próprio crescimento musical da banda. Sente-se uma banda mais coesa”
Com tanto tempo na estrada, o tempo livre das digressões também foi ocupado a compor?
João — Nós não criamos, propriamente, na estrada. Podemos fazer umas jams no teste de som, mas depois temos de ir para o local de ensaio maturar essas ideias.
André — E no palco, também.
O vosso press release diz que não se querem alongar muito em relação ao disco, porque é um trabalho para ser ouvido. Pergunto então: o que é que vocês ouvem quando põem o Distress Distress a tocar?
João — Eu acho que fazemos música para ouvirmos na própria banda. Para mim este é mais um disco da minha coleção que ouço. Isso quer dizer que fiquei satisfeito com o disco. Agora dizer o que é que ouço… é meio complicado.
Mas é algo muito diferente daquilo que ouvem agora em comparação com o que ouviam na altura em que o estavam a compor?
André — É diferente no sentido que agora temos uma maior distância em relação ao que tínhamos quando concluímos as misturas, em que as coisas ainda estavam bastante presentes, ainda pensávamos naquilo que poderíamos ter feito e não fizemos; algumas opções que tomámos… neste momento conseguimos apreciar o que fazemos e não criticar.
“Nós somos mais uma banda de estrada do que de estúdio. Construímos as músicas tocando-as, experimentando-as ao vivo”
Os 10 000 Russos começaram, em 2012, por ser dois elementos: o João Pimenta e o Pedro Pestana. O André Couto surgiu mais tarde e trouxe as baixas frequências à banda. É hoje uma sonoridade muito diferente daquela de há um par de anos?
João — Acho que o André veio dar um bocado de ordem às coisas (risos). O Pedro é um bocado anárquico e eu comecei a tocar bateria há pouco tempo, por isso também não sou um baterista clássico. E eu, como baterista, é que sentia mesmo a necessidade de um baixo. E acho que a banda, agora sim, está mais no ponto.
André — Eu lembro-me de ver concertos dos 10 000 Russos sem mim. O Pedro sentia a necessidade de preencher, de pôr na música não só o que ele fazia na guitarra, mas também tentar colmatar a falta de um baixo. Acho que vim abrir espaço para o Pedro poder navegar por outros caminhos, dar-lhe mais liberdade.
E o baixo traz também um outro peso às faixas.
João — Toda a música tem baixo. Até a música tribal, basicamente, é baixo e uma percussão. Por isso, sim, é essencial.
Uma das imagens que me vem à cabeça quando ouço os vossos temas é o de um cilindro de alcatroar as estradas: pesado e lento.
João — (Risos) Sei perfeitamente. Eu acho que a banda não é pesada, nesse sentido. É mais hipnótica, procuramos mais esse sentido da hipnose, uma percussão maquinal — eu e o André somos a secção rítmica, procuramos uma certa ideia de transe por trás daquilo que já foi feito.
André — Através do minimalismo e da repetição. Mas é engraçada a imagem que pintas, porque como nós utilizamos elementos repetitivos e recorremos aos drones e a mantras, essa imagem do rolo compressor talvez faça sentido.
Quando criam também é com a intenção de sugerir imagens, como se fosse uma banda sonora?
André — Inevitavelmente. Tanto eu como o Pedro temos formação em cinema e trabalhamos com a imagem. Sempre encarei a música como uma banda sonora para os filmes que fazia. Na etapa da composição é quase impossível não visualizar enquanto se compõe — e mesmo enquanto se frui da música.
O nome da banda já tem sido tema de conversa, várias vezes, nas vossas entrevistas. A minha pergunta é simples: vocês associam mais esta ideia de 10 000 Russos ao músico grego Demis Roussos ou a dez mil cidadãos da Rússia?
João — Isso só acontece em Portugal, porque o nome da banda até acaba por mudar de país para país. Se formos para Inglaterra somos conhecidos como “ten thousand russos”. O nome é um nome de banda…
Que começou por ser uma brincadeira.
João — Sim: foi durante uma noite de copos em que estava com um amigo a mandar nomes de bandas para cima da mesa e esse amigo disse “dez mil russos” e eu perguntei-lhe por quanto é que ele queria vender-me o nome e ele respondeu “um fino”. Arranjei-lhe um fino, ele deu-me o nome, e eu guardei na caixa de mensagens do telemóvel (risos). Quando a banda surgiu já lá estava na caixa… mas não foi muito pensada. Tem essa componente meia cómica — há pessoas que chegam lá rápido, há pessoas que demoram três anos. Mas depois também é assustador pensar em dez mil russos, não é? Basta ver aqueles vídeos da internet que metem russos. Dez mil russos na estrada é assustador, por exemplo. É apenas um nome.
“O nome tem essa componente meia cómica — há pessoas que chegam lá rápido, há pessoas que demoram três anos. Mas depois também é assustador pensar em dez mil russos, não é? Basta ver aqueles vídeos da internet que metem russos. Dez mil russos na estrada é assustador, por exemplo”
Vão começar mais uma longa digressão.
João — Sim, vão ser 37 concertos em 46 dias. Vai ser intenso: nunca fizemos tantas datas seguidas. O máximo que fizemos foi 28 — agora estamos a acrescentar nove.
É um trabalho até de uma grande exigência física.
João — É, porque até fazemos isto num carro, não levamos roadies nem nada. Nós é que fazemos tudo. É tudo em autogestão: pegamos no velho modelo da Jugoslávia e aplicamos a uma banda. Não há líder, é um sistema anarquista, em que não há ninguém exterior e somos nós a fazer tudo: a marcar concertos, a conduzir uma carrinha Dacia com uma daquelas malas em cima… (risos) Às vezes vamos tocar em festivais e não nos deixam entrar no parque de estacionamento das bandas porque não acreditam que seja possível estarmos a fazer isto. E é provável que, se calhar, sejamos das poucas bandas que fazem isto a nível Europeu. Não vejo muitas mais a fazer isto… Nós vivemos mesmo da banda então temos que levar isto dessa forma.
Como é que tem sido transformar este Distress Distress numa performance de palco? É um disco mais ou menos difícil de tocar.
André — Aparentemente é um disco mais fácil de tocar, porque parte dele já tinha sido tocado ao vivo — ou seja, como levámos para o estúdio parte do disco já feito, metade do trabalho já estava. A outra metade é aprender o que fizemos em estúdio e isso tem sido relativamente simples. Apesar de termos recorrido a overdubs, tentamos manter tudo numa base de simplicidade e de exequibilidade.
“Precisamos que a digressão acabe em Monção. Nestas tours comemos, basicamente, todo o tipo de fast food… Monção rejeita esse tipo de comida que é hedionda, mas que vamos ter que comer durante 46 dias. Pelo menos que o 46º seja cabrito e vinho verde!”
É interessante que aquele lado da repetição dos sons, que dá corpo às faixas, que acaba por dar espaço para a vossa criação — às jams e aos improvisos.
André — Tentando manter as coisas o mais minimal e simples possível, repetindo-as até à exaustão, até entrarmos numa espécie de transe coletivo. Quando isso funciona assim, sentimos que estamos no caminho certo. Como disse: isto é feito com base nas experiências ao vivo e ver que, de facto, resultam assim. Há uns anos, uma banda pensar em fazer músicas que tivessem mais de três ou quatro minutos, à partida, era suicídio. Hoje vemos as coisas ao contrário: hoje precisamos de tempo para que as pessoas sintam e comecem a ficar dentro da música para a sentir.
De entre aquele alinhamento de concertos que vão fazer, há algum que seja um desafio maior?
André — À partida estamos cheios de vontade de fazer todos os concertos, mas claro que há alguns que vemos com mais expetativa: talvez o do Lido, em Berlim, por ser uma sala mítica, mas tanto tocamos para três mil pessoas em Berlim e no dia seguinte para 17 na Bélgica e acaba por ser igual apesar de serem experiências diferentes.
A digressão começa em Portugal e acaba em Portugal.
João — Sim, começa no Porto e acaba em Monção. Vamos de Portugal para Espanha, França, depois Inglaterra, Escócia, Bélgica, Alemanha, Dinamarca, República Checa, Suíça, e depois fazemos o caminho por Perpignan, País Basco, tocamos em Santiago de Compostela e acaba em Monção por várias razões… precisamos que acabe em Monção.
Os 10 000 Russos tocam dia 10 de maio no Café Au Lait, no Porto. Dia 11 no Sabotage, em Lisboa. Dia 12 vão ao SOIR, em Évora, e dia 13 ao CAEP de Portalegre
Porquê?
João — (Risos) Já estiveste lá! Nestas tours comemos, basicamente, todo o tipo de fast food que existe — desde kebabs, pizzas e cachorros… Monção rejeita esse tipo de comida que é hedionda, mas que vamos ter que comer durante 46 dias. Pelo menos que o 46º seja cabrito e vinho verde! Mais vale que acabe em Monção.
E têm uma rota já bem estabelecida. O Google Maps tem sido bom amigo nesta altura?
João — Sim, são 15 mil quilómetros. Dava para ir daqui a Vladivostok, depois virar na rotunda e ir à capital da Mongólia. Temos uma noção dos quilómetros que vamos fazer por semana e só ali à terceira semana é que sabemos que não vamos fazer 400, 500 ou 600 quilómetros por dia…
O volante a ser dividido pelos três?
João — Não, por acaso é mais o André que conduz. Ele é que leva esse fardo de ter que conduzir e à noite ainda ter que tocar baixo. E como é autogestão, também não recebe mais por isso (risos).
Entrevista: Bruno Martins