“Estive a construir uma janela para agora conseguir ver as coisas de outro modo”
JP Simões tem dois amigos novos: Nicholas Bloom e Miguel Nicolau. O primeiro um companheiro da imaginação que é também uma espécie de escudo protetor para a música mais aberta, espaçada e expansiva que criou neste novo disco, Tremble Like a Flower. O outro amigo é Miguel Nicolau, compositor dos Memória de Peixe, que foi também o produtor do álbum.
Mas JP continua a ser JP – ainda que insista ter o nome de Bloom na autoria das canções que fez. Percebemos que as mudanças sejam muitas e em muita coisa: volta a escrever e a cantar em inglês e, sobretudo, abriu a sua paleta de sons para um universo mais etéreo, mais radioso e luminoso. Mais sorridente. Nesta entrevista explica-nos que o tema “Tremble Like a Flower” é um reflexo da síndrome de Peter Pan, da vontade de não querer crescer. Mas também é na inocência infantil, e no não ter receio de voltar a sonhar, que poderá estar a resposta àquilo que nos faz sentir mais. JP Simões explica-nos também quem é Bloom, de onde vem e porque aparece nesta altura da sua vida. No dia 17 atua no Teatro de Vila Real e no dia 19 no Auditório de Espinho.
Podemos começar por perceber como é que nasce esta personagem, Bloom?
Isto começou de uma forma não conceptual. Foi uma coisa muito orgânica. Cheguei a um ponto em que me sentia um bocado claustrofóbico com as coisas que estava a fazer. Nos últimos três anos esforcei-me para criar um processo de mudança que me fizesse sentido. Já dizia o Miles Davis: o mais difícil é conseguirmos exprimir-nos com a nossa própria voz. E isso é uma coisa que não sei alguma vez vou que é uma coisa que eu não sei se alguma vez vou conseguir fazer.
Tens-te esforçado para isso.
Tenho, de facto. Mas o que aconteceu foi ter dado por mim a fazer uma música bastante diferente da que tinha feito até agora. Tudo porque tinha mudado de afinações, mas também estava a ouvir outros géneros. Acho que nem nunca tinha ouvido tanto blues.
Essas mudanças despertaram em ti um outro sentido de existência?
À medida que as canções iam crescendo, fui-me apercebendo que não estava a fazer um disco do Jota Pê Simões. Parecia que não se encaixava no percurso feito até então. Creio que foi um desejo legítimo de mudar a minha música e procurar algo que tivesse mais que ver comigo agora. Isso fez-me ter vontade de arranjar outra designação, outro nome para outro autor.
“À medida que as canções iam crescendo, fui-me apercebendo que não estava a fazer um disco do Jota Pê Simões. Parecia que não se encaixava no percurso feito até então
Se estavas a sentir-te bem nesse papel, porque é que entra uma outra personagem, um outro nome e uma outra língua?
Esta música estava a pedir-me uma outra abordagem poética, ou lírica. Algo que não interferisse tanto com a música, onde a voz e as palavras tivessem o seu lugar. Daí a escolha da minha terceira língua, o inglês, depois do português e do brasileiro. Queria uma língua que me ajudasse a ser menos taxativo.
Conta-nos lá melhor quem é Nicholas Bloom.
Conheci-o há três anos e é alguém que nunca precisou de viver da música, o que é ótimo. Quando ele me viu ali aflito, sem saída, sem eu saber o que é que ia fazer com a minha música, teve a bondade de mostrar-me a música dele. No início pensei em pegar naquele senhor que estava a criar – e até lhe desenhei um mapa astral – e inventar esta história de que ele me emprestou a personalidade dele. Hoje é difícil falar de música num sentido que não seja absolutamente americano: sintético-informativo, taxativo e categórico. Fala-se primeiro que soa a isto ou aquilo, a afro-sci-fi-retro-pós-rock-folk. Para mim, esta música soava-me a um senhor que me emprestou a personalidade dele, por isso, se o apanharem, perguntem-lhe diretamente a que é que soa a música dele.
Acabaste também por construir uma história, dar uma vida passada a Bloom?
Sim, mas que serviu apenas de referência, para tentar perceber que personagem era aquele. Mas isso foi uma atividade lúdica que acho que não tenha grande interesse público. Até porque complica um bocado apresentar esta historia de Nicholas Bloom. Alguns amigos ficaram sem perceber se as canções são minhas ou desse senhor. Gostei imenso da ideia e quase que o vejo a viver em Buenos Aires, com os seus 72 anos.
Já dá para perceber que criaste um programa à volta deste disco. Queres explicar-nos o guião?
Havendo dias de sombra, como em qualquer dia de sol, acabei por puxar mais pela luminosidade e pelo espaço. Esse foi o conceito que foi aparecendo. Até então, a minha música era de conversa, cantada depois de contar uma história ou de uma piada, e a guitarra servia de base. Aqui, pela primeira vez, comecei a ouvir o instrumento de outro modo. E a música expandiu-se, sobretudo quando comecei a trabalhar com outras afinações, a encontrar outras formas de tocar, saí daquele peso dos songbooks com afinação regular.
“Eu tenho padecido de um certo folclore personalista: as pessoas vêm ter comigo para ouvir piadas e histórias estapafúrdias. Neste momento não é o que me está a motivar, se bem que já me diverti à brava! Estou só a querer ir para outro lado”
O senhor Bloom deixou que viessem ao de cima, de vez em quando, alguns dos teus próprios gostos e referências?
Ele disse-me que eu podia usar o nome dele, mas que ia fazer um rigoroso controlo de personalidade. Mas creio que se o mestre Bloom não achasse que eu valia a pena, não me tinha emprestado a personalidade! (ri-se) Acho que é, sobretudo, uma história para consumo próprio para não se tornar confuso.
A nova identidade acaba por dar-te – como os fenómenos de alteridade já deram a outros autores – uma nova janela para se olhar, uma nova perspetiva e outra liberdade.
No meu caso é exatamente isso. Muitas vezes podem ser mudanças acessórias. O que eu estive a construir foi essa janela para agora conseguir ver as coisas de outro modo. Eu pretendo continuar a fazer discos enquanto Bloom – não sei quantos ou se vou voltar ao Jê Pê Simões ou Jóta Pê, já nem sei. Uma das coisas boas é que, se tudo correr bem, param de me fazer essa pergunta. Mas isso são coisas folclóricas. Eu também tenho padecido de um certo folclore personalista: as pessoas vêm ter comigo para ouvir piadas e algumas histórias estapafúrdias. Neste momento não é isso que me está a motivar, se bem que já me diverti à brava! Estou só a querer ir para outro lado, sair dessa pequena coisa tão chata e constante, das ambiguidades desnecessárias como a forma como se soletra o meu nome. Só isso, para mim, já seria motivo suficiente para mudar de nome (risos). Os outros motivos são bastante mais validos.
A ideia do titulo Tremble Like a Flower é uma óbvia referência a David Bowie?
O disco era para chamar-se Meeting Time, mas aconteceu compor um último tema que é esse “Tremble Like a Flower”. Percebi que a música tinha um grande significado para mim porque falava de uma espécie de síndrome de Peter Pan, só reconhecível para quem já não é novo (sorri). A música nasceu misturada com uma espécie de seguimento do [tema] “Starman”, onde aqueles dois miúdos estão a ouvir a rádio e percebem que são ondas cósmicas – “não digas aos papás porque senão trancam-nos em casa.” Ao dizer “we will play until the sun goes down” e “tell our mamas we will be late”, mas ao mesmo tempo trememos como uma flor num chão frio, pareceu-me uma coisa muito explícita dessa síndroma: brincar sim, sempre que o mundo nos permita. Não pode ser a infelicidade a castrar-nos as hipóteses de sermos felizes. Há um tipo de romance que sempre admirei: aquelas histórias dos casais que se amavam ardentemente e depois lutavam por uma causa ou eram apanhados no meio de uma guerra. É o tipo de amor que eu achava mais bonito, porque unia as pessoas em circunstâncias tão difíceis, contra o tédio que vai corroendo as fundações dos relacionamentos. Essa felicidade é possível, paralelamente à consciência. O mesmo se pode fazer com um trabalho artístico, com a opção de ignorar aquilo que venenoso. A única coisa que podemos oferecer, tanto num caso como no outro, é a delicadeza: investir o máximo da nossa beleza e consciência num trabalho e um disco ou um livro têm tanto valor como um gesto. Tudo isso é uma manifestação de combate.
“O disco foi feito da forma como eu acho que um álbum deve ser feito, mas que até agora nunca tinha conseguido, até porque não era fácil ter um estúdio em casa. Mas uma coisa é certa: este disco não soaria desta forma sem a presença do Miguel Nicolau”
Este combate de Tremble Like a Flower é mais com a música do que com as palavras?
Toda a música tem a característica maravilhosa de exprimir paisagens e sentimentos. E à medida que ia nascendo, iam surgindo-me coisas que eu tentava fortalecer: o caso do espaço livre, uma pulsão minimamente hipnótica, sem ter que chegar rapidamente a refrões ou ficar preso aos três minutos dos airplays. À medida que ia ganhando o espaço e esse ritmo minimamente xamânico, acabava a levar a música para espaços luminosos. Nem todas as músicas funcionam assim, mas grande parte delas procuram esse espaço.
Parece que se ouvem ecos, tanto nos instrumentos como na voz. São um pouco o resultado desse espaço de que falas, não?
É curioso falares em ecos. Eu nem sei se usámos algum eco, propriamente dito, mas está é coberto de arranjos que funcionam em diferentes camadas. Como uma arquitetura de som numa floresta. E tudo com um músico que mudou por completo a minha vida, o Miguel Nicolau.
Como é que nasce a tua parceria com o Miguel?
Eu vi um concerto com o Miguel, já com o baterista de Memória de Peixe, o Marco Franco, em 2014. E a música deles estava a entusiasmar-me bastante, a dar-me muita energia ao ponto de começar a ter vontade de escrever umas letras para cantar por cima daquilo. Entretanto fomos apresentados e acabei a falar com ele porque tinha uma série de músicas em produção. Ele gostou e começámos a começámos a trabalhar em casa de um amigo, o Hugo Valverde. Mas o Miguel estava constantemente a surpreender-me com soluções incríveis. Estas músicas do disco eram completamente diferentes. Começámos o álbum em março e acabámos há um mês, mas trabalho motivou-nos de sobremaneira. Foi feito da forma como eu acho que um disco deve ser feito, mas que até agora nunca tinha conseguido, até porque não era fácil ter um estúdio em casa para invocar tantos instrumentos e timbres. Uma coisa é certa: este disco não soaria desta forma sem a presença do Miguel Nicolau.
Entrevista: Bruno Martins