Foto: Vera Marmelo
“Quando cantamos, fazemos uma espécie de pose. Canalizamos uma personagem”
Para se perceber a música de Alexandre Rendeiro importa perceber primeiro quem é que a compôs. Até porque estamos a trabalhar numa espécie de “multiverso” – um homem dentro da cabeça de um músico. É à imaginação e à fome de criação que Alexandre Rendeiro se agarra apaixonadamente para explicar a origem de Alek Rein, uma personagem por ele criada e que habita em si, por sentir que existia um desfasamento entre as letras que escrevia e a sua própria vida. A solução para isso foi deixar que este americano do Montana de terceira geração, filho de alemães cultivadores de tabaco, entrasse na sua cabeça para contar as suas histórias e aventuras à procura do seu irmão.
Rendeiro, outra vez ele, conta ao Oub’lá as origens do seu mais recente disco, Mirror Lane, e o que está para lá deste universo de rock ‘n’ roll e psicadelismo.
Já tinhas editado o EP Gemini em 2010. Depois disso fizeste um par de residências artísticas na galeria Zé dos Bois. Essas experiências conduziram-te até este Mirror Lane?
De certa maneira sim. Fiz duas residências artísticas e numa delas foi dedicada a pensar na questão da personagem, o Alek Rein.
E o que descobriste do Alek Rein?
Nessa residência tínhamos reuniões, todas as manhãs, entre os participantes. E o Natxo Checa, diretor das artes visuais, convidava professores e artistas para conversar connosco. Eram tempos para partilhar ideias e projetos e eu partilhava a problemática de criar uma personagem e a de criar coisas a partir dessa personagem. Falámos da autoria, do que é que é isso de criar algo, a originalidade, o génio.
Porque é que era tão importante para ti a criação de uma personagem e não fazer música como Alexandre Rendeiro?
Porque sentia um desfasamento entre as letras que andava a fazer para este projeto e a minha própria vida. As letras eram muito mais fantásticas do que as coisas que me acontecem a mim e não serviam bem como metáfora.
A partir do momento em que descobriste na plenitude quem era o Alek, e as suas histórias, tornou-se mais simples escrever as músicas?
Duplamente mais simples e também mais complicado. Ao mesmo tempo que consegui balizar as coisas numa outra personagem, também me criou limites, porque a personagem não pode ter todo o tipo de canções, se não a sua identidade perde-se de alguma maneira. Tive que encontrar um estilo para a personagem. O estilo acaba por libertar-me a mim, enquanto Alexandre, mas prende-me ao Alek.
O Alexandre e o Alek encontram-se no gosto musical?
Sim, porque eu dou-me a liberdade de interpretar sonicamente as canções dele. O que tenho do Alek é o mais básico: o esqueleto das canções e as progressões de acordes. Toda a roupagem à volta disso é mais um ornamento.
“O psicadelismo está sempre presente, nem que seja nesta questão da indefinição do sujeito, nos limites difusos entre os mundos”
Vamos lá perceber quem é o Alek Rein.
É filho de uma família de alemães que emigrou para o Montana, EUA, que desenvolveu uma técnica de plantar tabaco e erguer uma indústria meio local. O Alek já pertence à terceira geração daquela família, dos Reins, e já não tem que se dedicar tanto ao negócio. Consegue ter ter tempo para aprender guitarra e andar a tocar pelo Montana.
Como é que vocês se conheceram?
O Alek tinha um irmão misterioso, que não falava – não se sabe se por mudez se por trauma. O irmão desaparece e o Alek, enquanto o procurava, consegue encontrar umas pistas no quarto dele. Segue-as e vai ter a um ponto chamado “Triple Divide Peak” (que é o título da última faixa do disco). É nesse ponto que nascem três rios que vão dar a três oceanos. É aí que encontra também uma gruta que vai dar a uma gruta de espelhos infinita, que é a Mirror Lane. Esses espelhos são todos portais – há um filme do Jean Cocteau, chamado Sangue de um Poeta, que tem uma cena que me inspirou para isto: a personagem mergulha para dentro de um espelho e consegue atravessá-lo. Foi aí que pensei: e se houvesse uma avenida megalómana com todos os portais que dessem acesso a todos os universos – o centro do multiverso? O Alek viaja por muitos universosaté entrar num em que é a cabeça de um sujeito: vem ter à minha cabeça.
As coordenadas folk-rock são a tua interpretação sónica das pistas que o Alek vai dando na tua cabeça?
Desde que comecei a levar a música mais a sério que tive influências dos anos 1960 e 1970. Mesmo pelo experimentalismo da altura, pela postura revolucionária dos projetos – mesmo que não fossem politizados, a postura do rock ‘n’ roll foi sempre muito subversiva, de confronto, de rutura com rotinas e status quo. De alguma maneira, muitos projetos inspiraram-se nesse sentido e o mais óbvio terá sido o Syd Barrett no início com os Pink Floyd. Talvez pela inocência que ele tinha nas letras, em que o que interessa é a imaginação, que num contexto rock n roll vivido na altura já era subversão suficiente.
Também entras no universo do psicadelismo?
Acho que sim. Em alguns aspetos este disco até pode ser mais psicadélico do que o primeiro EP, só que aqui mais nas letras.
Por teres a imaginação e a personagem tão mais apurada?
Talvez mais por aí. O psicadelismo está sempre presente, nem que seja nesta questão da indefinição do sujeito, nos limites difusos entre os mundos.
Este universo do Alek existe apenas na música ou dás-lhe outras dimensões e expressões artísticas?
Houve uma altura, há alguns anos, em que me fechei no quarto durante uma semana para escrever 40 páginas de seguida sobre a história do Alek. Houve um exercício de literatura nem que seja só para mim, mas que serviu para construir o universo, o arco narrativo, mapas para conseguir ligar tudo. Há aqui uma síntese do conto que depois é apurado para canção. E isto também já foi feito em filme, durante um curso de cinema experimental, em 16mm.
E quando sobes ao palco, quem é que o público vê? O Alek ou o Alexandre?
O intérprete vem em primeiro lugar. Mas interpretar uma canção tem sempre algo de mágico. Há um segmento do Sócrates, sobre os cantautores da altura na Grécia antiga, que falavam muito do deslocamento do espírito: sempre que contavam os contos homéricos, o intérprete perdia o espírito e entrava o espírito de Homero. Quando estamos a cantar, a interpretar, estamos a fazer uma espécie de pose, a canalizar uma personagem. Acho que em palco vai estar o intérprete, mas o mundo que está a ser revelado é o de outra pessoa.
“Criar com a personagem do Alek dá-me noção de tudo aquilo que poderia ser”
O teu pai teve uma grande influência na tua vida artística – foi ele que te pôs a ouvir os clássicos dos Deep Purple, Pink Floyd, Velvet Underground e muitos outros. Como é que ele hoje vê este teu momento criativo?
Ele tem vindo a gostar cada vez mais da minha música. Apoiou-me sempre muito e fico contente que tenha o mínimo de orgulho naquilo que eu faço. E até acho que se revê nas letras e no processo criativo. Quando encontra um artigo que acha que pode inspirar-me de alguma forma, envia-me. Sabe que uma das minhas preocupações – como do Alek – é o protesto político. E quando há uma injustiça qualquer, que tenha um anzol narrativo, envia-ma. Sabe que a música não deve ser só falar de injustiças, mas dar uma identificação a quem ouve. É bom porque sei que tenho ali uma pessoa que não faz música, mas consegue perceber o processo criativo e acho isso muito bonito! (sorri)
E ir tocar ao Montana?
Era lindo. Levar um gravador de quatro pistas e estar no meio daquela neve, daquele animais todos… Alinhava na boa!
Como é que tu te sentes, Alexandre, a viver no meio do urbanismo de Lisboa, tão distante da realidade imaginada do Alek Rein?
Devo confessar que essa criação é um certo escapismo, uma maneira de fugir à minha própria rotina. De não conseguir arranjar tempo ou meios para viver nesse isolamento – às vezes nem ter coragem de o fazer, de ir para o campo viver. Há esse escapismo, mas também, por outro lado, é aí que consigo perceber os meus limites: o que me falta, aquilo que gostaria de ter. Criar com a personagem do Alek dá-me noção de tudo aquilo que poderia ser.