Foto: Núria Pinto
“A música africana está na génese de todas as grandes revoluções musicais do século XX”
É sob um sol de inverno, num terraço do Bairro Alto, que Bonga e B Fachada se sentam, pela primeira vez, à conversa. Bernardo já era fã do músico angolano – em 2010 deitou-se no chão com a cabeça entre um disco de Alfredo Marceneiro e outro do “kota”. Usou-o na pesquisa para o disco Há Festa Na Moradia e a partir de então sentiu-se um certo aquecimento nos seus trabalhos discográficos – ou não tivesse nascido Criôlo mais tarde. Já Bonga é homem que não fecha a porta a um bom cruzamento de culturas e a sua carreira tem sido feita disso: um pé em Luanda, outro em Queluz. Mas sempre com os ritmos de festa bem presentes, sempre para cima.
Apresentações feitas, toca a arregaçar as mangas e a deitar mãos à obra. Há um concerto para preparar, ainda que a única premissa que haja para esta noite de sexta-feira na Galeria Zé dos Bois seja a música e a dança. Uma noite de “discos pedidos” para Bonga; um concerto “mais vitaminado”, promete Fachada.
Além do concerto, Bonga e Fachada falam da música como forma de quebrar barreiras – e são tantas que existiram e que ainda se vão quebrando. Outras se vão levantando – na Europa e nos EUA. Nestes momentos, Bernardo diz que o melhor é mesmo cantar e dançar. “É o que poderá, a longo prazo, a vir gerar mais cultura e a quebrar as tais barreiras”.
Querem começar por explicar-nos que concerto é este que vai acontecer na ZDB? Uma reunião, uma colaboração ou dois concertos individuais?
B Fachada – É uma noite a meias! Não vamos propriamente fazer um dueto (risos). Houve um disco em que comprei muitos discos do Bonga e fiz uma pesquisa muito grande da sua obra, principalmente os dos anos 1970 e 1980, para fazer o Há Festa na Moradia – em 2010. Passados uns tempos, quando o Nelson – o meu agente – contactou o Bonga para marcar alguns concertos, esta ideia de virmos à ZDB apareceu logo porque eu já era o primeiro na fila (gargalhadas).
A fila era grande? Parece que a obra do Bonga tem vindo a ser redescoberta por uma nova geração.
Bonga – Tá bem dito. E tenho todas as gerações comigo. Cada vez que faço um espetáculo é um reencontro, é dança. É um reencontro muito mais profundo, primeiro porque é a minha vivência e tem que ver com aquilo que já vivi. Em África não temos separações de gerações, felizmente para nós, então a gente encontra-se todos. Vêm os mais claros, os mais escuros e os albinos. E nas idades, toda a faixa etária está representada. Quando resolvemos dançar, dançamos uns com os outros e é maravilhoso.
“Eu estou a viver de portas e janelas abertas. Na minha casa, toda o mundo, de qualquer condição, pode entrar. Encontramo-nos, falamos, comemos, bebemos um copo, falamos da nossa cultura e da nossa vivência. Isso tem sido importante, sempre com um fundo musical que nos anima!” – Bonga
Sentia que em Portugal havia essa separação de gerações e raças?
Bonga – Sim, sim. Havia. E nós estamos a quebrar este preconceito que existia de uma data recente. E a juventude está a responder em força. A prova disso é que a “Mariquinhas” está na boca dos putos, a “Frutas de Vontades” idem, o “Currumbas” também, e, principalmente, o interesse nos discos novos, que despertam a curiosidade de ir saber o que é que ele está a cantar agora. E depois um espaço como este [Galeria ZDB]. Eu imagino o é que vai acontecer aqui!
B Fachada – E é pela cultura que se pode realizar essa união. Na verdade, todas as tentativas de quebrar as barreiras coletiva e politicamente falham. Só a cultura, a música, a ideia de se partilhar e brincar com a língua e com o conhecimento, de preservar conhecimento entre todos, decorando as canções, cantando e dançando. É a cultura que vai quebrar as últimas barreiras entre gerações.
Bernardo, quando é que sentiste que essas barreiras começaram a ser quebradas? Há movimentos culturais e géneros que têm vindo a ter esse papel ao longo dos anos – como foi o caso do hip hop, que sempre escavou nos discos.
B Fachada – O género acaba por ser um detalhe da circunstância. Em cada época há um género que se pode sobrepor e que pode servir para abrir as portas. Mas acho que a ideia de a cultura e a oportunidade de te dedicares à música – ouvir, cantar e sair de casa para vir dançar – é o que poderá, a longo prazo, a vir gerar mais cultura e a quebrar as tais barreiras. Sempre que há momentos de pobreza, de tensão política, falta de liberdades ou o dinheiro parece tomar conta das nossas vidas, claro que as pessoas tornam-se mais individualistas, mais ignorantes, aumentam os índices de xenofobia e preconceito entre gerações. Tudo isso está interligado.
Acredito que pensem os dois da mesma forma, mesmo sendo de gerações diferentes: a cultura, as artes, têm um papel agregador, de quebrar preconceitos.
Bonga – Facultam o encontro, sobretudo. Ah, e de que maneira! Esses encontros, com música, é maravilhoso. O meu disco mais recente chama-se Recados de Fora: esses recados são tidos como algo de mundial, universal, que podem ser enviados daqui para lá ou de lá para cá. Eu estou numa de ir apreciando, ir observando a atitude das pessoas com esses meus recados que eu venho enviando desde 1972. Muita dessa geração não estava sequer aí, mas foi aprendendo. E até me incentivam: vêm ao pé de mim e dizem-me do que gostaram e do conhecimento que facultou. No fundo, vamos dar, cada um, os seus recados para uma convivência melhor.
Bonga, a sua música tem vindo a ser redescoberta pelas novas gerações. Mas também está atento ao que as novas gerações fazem? É isso que faz aqui com o B Fachada, ou aquilo que fez há uns meses no Coliseu dos Recreios no Red Bull Culture Clash quando cantou com a crew de Batida?
Bonga – Eu estou a viver de portas e janelas abertas. Na minha casa, toda o mundo, de qualquer condição, pode entrar. Encontramo-nos, falamos, comemos, bebemos um copo, falamos da nossa cultura e da nossa vivência. Isso tem sido importante, sempre com um fundo musical que nos anima! Eu fiz o fado com a Ana Moura, fiz essa brincadeira do coliseu com os miúdos, entrei, participei, e fui aplaudido! “My god”. Isso é maravilhoso.
“A música, a cultura em si, tem que estar sempre completamente aberta e sempre pronta para receber” – B Fachada
Como é que conheceu o B Fachada?
Bonga – Em pessoa foi agora! Tal como a senhora que está lá em baixo [D. Emília] que me disse que me conhecia da televisão. Mas as coisas que ele foi dizendo aqui fazem-me perceber que já o conheço há muito tempo. Conhecemo-nos como? Pela cultura, pela música. Por aquilo que ele foi escutando.
B Fachada – Não precisa de ser uma coisa obrigatoriamente consciente. Enquanto músico queres que a tua música fique melhor: nós achamos que o músico cria para facilitar a comunicação, mas o músico também transforma. E África é um foco fundamental, em que a música faz uma espécie de iô-iô, sobretudo no século 20: a música sai, volta, volta a sair, regressa e sempre que sai volta um pouco transformada e volta a ser re-transformada. A música africana acaba por estar na génese de todas as grandes revoluções musicais do século XX, nos países não africanos. Sobretudo aqui em Portugal, com o nosso passado de ligação a África. A música, a cultura em si, tem que estar sempre completamente aberta e sempre pronta para receber.
Bonga – E é isso que eu quero que aconteça: esta reciprocidade, este contacto. Esta irmandade. Eu, principalmente, comecei a cantar em 1972 contra a colonização. Depois houve a “independência” de Angola e eu continuei a cantar contra os meus patrícios que não enveredaram nem pela democracia nem pela liberdade e não deram valor ao seu povo. Os meus recados têm sido entendidos em tudo o que é canto do mundo e isso dá-me imensa satisfação. É como diz o B Fachada: alguns ainda não enveredaram muito por este caminho da cultura ser essencial nos povos e de o encontro não serem forçosamente feitos na base do petróleo, diamantes e dólares, mas sim de pessoas.
O que é que já está combinado para sexta-feira?
Bonga – Estamos para combinar (risos).
O Bonga tem o disco novo. O concerto vai servir para apresentar esse disco?
Bonga – Nem pensar! O disco ainda não é conhecido. Vou estar perante jovens – e não jovens! – que querem ouvir as músicas de há 40 anos! Vai ser uma noite de discos pedidos (risos) para a gente relembrar sucessos que se tornaram sucesso pela reação das pessoas: eu ainda sou obrigado hoje a cantar a “Mariquinha”! Ai de mim se não canto!
E no teu caso, Bernardo? Não tens um disco propriamente novo, mas tens um repertório quase tão vasto como o do Bonga!
Bonga e B Fachada – (Gargalhadas)
B Fachada – Nem perto! Mas quanto ao concerto, ainda estou a juntar máquinas. Vou tentar trazer um set um bocadinho mais vitaminado do que o habitual. Até porque eu sou só um e eles são muitos e eu tenho que me aguentar! Vou tentar entrar a matar e ir a matar até ao fim!
“Alguns ainda não enveredaram muito por este caminho da cultura ser essencial nos povos e de o encontro não serem forçosamente feitos na base do petróleo, diamantes e dólares, mas sim de pessoas” – Bonga
Muito inspirado por aquilo que o Bonga despertou em ti enquanto músico?
B Fachada – Sim. E este concerto apanha-me, outra vez, num novo trabalho de mais pesquisa, de mais re-africanização. É uma fase bastante eurocética da cultura, pelo menos para mim, e um gajo quando vira costas à Europa volta a virar-se de frente para África. Tenho andado a samplar, sobretudo, música angolana dos anos 1970. Estou numa fase de transição e acho que não consigo ter nada de novo pronto para o concerto, mas vai ter sempre a perspetiva do andamento que estou a ter agora.
No teu caso, Bernardo: mesmo a andar para a frente parece que vais sempre olhando para trás. Primeiro com as visitas ao cancioneiro português, agora com as raízes da canção lusófona vinda de África.
B Fachada – E o Brasil, principalmente. O nosso colonialismo europeu, no contexto do século XX, passa a ferro tudo o que não são os países europeus, arrasou com as estruturas sociais das colónias. Enquanto em países como a França ou Inglaterra mantém-se as estruturas culturais nas ex-colónias africanas e asiáticas, Portugal, quando abandona as colónias por completo, não tinha estruturas culturais para deixar porque a nossa cultura era fraquíssima, quando comparada com as culturas locais. A partir dos anos 1970, quando começa a vir malta de África em grande escala, é a cultura que temos de qualidade para aprender e crescer! É quase como comparares o som de um disco do Bonga dos anos 1980 e pô-lo ao lado de outro gravado aqui em Paço d’Arcos! Os discos do Bonga soam todos a gigante, a música de qualidade, cheios de cor e viva… enquanto que cá era o que era possível.
Bonga – Na descolonização, a separação foi enorme. Era proibido falar kimbundo, que é a língua Bantu do norte e centro de Angola: chamavam-lhe a “língua de cão”! Era uma desgraça total. Nós até tínhamos que assimilar até as pronúncias! Havia miúdos que faziam o exame da quarta classe da instrução primária, com o sotaque africano das línguas que se falavam, e que eram reprovados nas provas orais! E depois ainda havia os negros assimilados, que também traíram a mãe-pátria africana, que não ficaram com nada dos seus avós.
“Este concerto apanha-me num novo trabalho de mais pesquisa, de mais re-africanização. É uma fase bastante eurocética da cultura, pelo menos para mim, e um gajo quando vira costas à Europa volta a virar-se de frente para África. Tenho andado a samplar, sobretudo, música angolana dos anos 1970” – B Fachada
É por tudo isso que os discos 72 e 74 são discos revolucionários, até por cantar em kimbundo?
Bonga – Sim, e tenho a consciência, mais do que nunca, de ter contribuído para a mobilização daquele grande povo. Mas não foi para mobilizar os angolanos como carne para canhão! Foi para alertar para os perigos que se aproximavam, tanto no ponto de vista da ideologia importada, como também nos desarmamentos e nas desavenças entre a família! Nós que éramos um exemplo. Nós tínhamos as portas abertas para receber as pessoas que nos visitavam e que podiam não ser, forçosamente nossos amigos ou da nossa família. E isso é um exemplo para esta Europa que, sistematicamente, quer impor regras e que não dá vez a outros povos que, mesmo tendo sido colonizados, têm coisas maravilhosas. Eu retrato tudo isso em música.
Entrevista: Bruno Martins