“A ideia era mesmo retirar grande parte da humanidade à banda”
Havia uma carregada dose de tensão lá no Ermo. Uma voz arranhada e gritada, como se as palavras estivessem a sair de arrastão. Era o que ouvíamos em Vem Por Aqui, o primeiro longa duração do grupo de António Costa e Bernardo Barbosa. Com esse arrastão vinha uma eletrónica que, dizia-se, trazia a marca da portugalidade de uma banda de Braga — denunciada logo na capa.
A portugalidade na música terá desaparecido entretanto. É assim que os Ermo querem que seja: um disco sem geografias, a não ser as palavras que são maiores para algo que é visto à lupa. Claro, que se formos ver por uma perspetiva telescópica, vamos dar a dois rapazes a viverem em Braga, Portugal, nos dias de hoje. “Isso pode contextualizar e levar as pessoas a interpretar [o disco] de determinada maneira, mas para duas pessoas que vivem dentro do computador, se calhar vivemos mais no telescópio do que no sítio onde ele está pousado”, sublinha António.
Lo-Fi Moda marca então o regresso dos Ermo com outra vida. Um parágrafo, dizem eles. Uma camada sonora mais destemida e irreverente, eletrónica-digital-computorizada — claro — mas com um outro requinte, fruto da seriedade criativa assumida por António e Bernardo e que tornam este Lo-Fi Moda um dos grandes discos deste ano — por aqui o primeiro enorme já no arranque da segunda metade de 2017.
Os Ermo já editaram dois trabalhos de estúdio: primeiro em 2013, com Vem Por Aqui, e depois um outro lançamento em 2015, um EP, chamado Amor Vezes Quatro.
António Costa [A.C.] — Ainda chegámos a fazer uma edição sem nome, em 2012 — o nosso primeiro EP.
Neste Lo-Fi Moda encontramos um novo registo dos Ermo — eventualmente uma outra ousadia. O que é que mudou na vossa forma de trabalhar?
[A.C.] — Existe uma diferença no método de composição, mas acima de tudo a diferença está no tempo que passamos a trabalhar em cada faixa e em cada som. Quisemos dar uma injeção de mais profissionalismo. Existe agora uma preocupação, mais atenção na maior parte dos sons que estamos a utilizar agora.
Quiseram sair do ermo?
[A.C.] — Quisemos sair de tudo aquilo que as pessoas achavam que nós éramos. A ideia foi fazer um parágrafo, mesmo.
O que é que as pessoas diziam dos Ermo?
Bernardo Barbosa [B.B.] — Acho que estávamos muito ligados, enquanto projeto, à questão da portugalidade. Era algo que explorávamos bastante. Acho que as pessoas achavam-nos esquisitos, à partida. Mas é algo que continuaremos sempre a ser. Havia mixed feelings acerca da nossa música, mas isso é algo que nos orgulhava, porque é sinal que estavam atentos ao que fazíamos. Mas não foi pelas pessoas que quisemos mudar, mas sim porque queríamos experimentar cenas novas e trabalhar de forma diferente.
Porquê abandonar a ideia da Portugalidade?
[B.B.] — Já tínhamos dito tudo sobre isso, em diferentes fases da nossa vida. À medida que envelhecemos — éramos bué novos…
[A.C.] — (Risos) Somos mega-cotas!
[B.B.] — … Na altura não fazia sentido falar sobre a portugalidade. Ainda que tenha sido vendida como uma “marca” da banda, em tempos. Nunca pensámos nisso.
[A.C.] — Eu até acho que pensávamos que era o que nos distinguia. As pessoas podiam distinguir Ermo por causa desse tema. É cruel para nós próprios, com 18 anos, dizer que a banda é sobre portugalidade e termos de manter “a farsa” durante anos! Não foi uma farsa na altura, por isso não vale a pena ser agora.
Ainda assim, são dois jovens portugueses, de Braga, a viver em Portugal e nesta altura da nossa história. São sentimentos espicaçados por aquilo que vão vivendo por cá, nesta altura. Se formos analisar esses sentimentos através de uma lente telescópica vamos descobrir muito mais, não acham?
[A.C.] — Isso é verdade.
“É um disco mais próximo, que sai diretamente de nós, e que não passa por mais nenhum lado. É uma espécie de conversa de nós para a música. Somos nós e os nossos instintos que estão aqui representados” — Bernardo Barbosa
Por serem de Braga, por toda essa ligação à portugalidade, tenho de vos perguntar: ouviram muito António Variações na construção deste disco?
[A.C.] — Honestamente, ouço António Variações quando está a dar. Por acaso não esteve na génese. Mas gostamos!
Desde o Amor Vezes Quatro até agora passaram quase três anos. O tempo teve um papel importante na construção deste disco?
[A.C.] — Sim. Podemos dar uma resposta rápida ou uma resposta bem dada. Nós lançámos um disco em 2015, que vinha com música que já tínhamos desde a composição do disco de 2013. O disco de 2015, na verdade, era para ter sido editado em 2014, por isso, para este Lo-Fi Moda, foi muito tempo a mexer nas gavetas, mas pronto, foi o necessário para estarmos bem com aquilo que queríamos apresentar.
Para este disco foi começar tudo do zero, então.
[A.C.] — Sim, chegámos a ter quase 50 minutos de música feita antes do disco estar pronto. E que achámos que ia ser este disco, na verdade. Mas a maior parte acabou por ir para o lixo.
[B.B.] — Foi um período importante para a banda. O que não queríamos fazer era passar uma imagem precipitada, mostrar um trabalho que valesse a pena e do qual estivéssemos extremamente orgulhosos e confiantes. Demorou o seu tempo, mas foi o necessário.
E é isso que temos: um trabalho que vos enche de orgulho.
[A.C.] — Sim, temos os punhos mais fechados com confiança, se calhar.
Concordam que Lo-Fi Moda vem com um outro arrojo e ousadia?
[A.C.] — É ousado no sentido de se calhar termos cedido mais algumas vontades que tínhamos de fazer música que não conseguíamos executar. Mas também é mais ousado nos temas que queremos abordar. Uma banda que fala de Portugal e sobre Portugal estar mal acaba por ser fácil. Dá muito jeito ter um tema tão grande para falar, quando há tantas palavras já nesse seio. Mas quando queres falar de algo maior, só que com origem em coisas mais pequenas, em idiossincrasias, se calhar aí torna-se mais ousado.
É um disco que fala mais do que está por trás dos problemas do que dos problemas em si?
[A.C.] — Talvez. Porque existe uma grande camada do pessoal — do individual — nas letras. Portanto, para os sentidos que quisemos dar às músicas, talvez sim, talvez aborde mais o que está por trás dos problemas. Mas sobretudo é um disco em que estão presentes todos os sentidos que quiseres.
[B.B] — Em termos de significado a diferença está muito em termos dito e feito muito aquilo que estava na nossa pele. É um disco mais próximo, que sai diretamente de nós, e que não passa por mais nenhum lado. É uma espécie de conversa de nós para a música. Somos nós e os nossos instintos que estão aqui representados.
“Nós nunca ouvimos uma banda à procura de influências. Podemos é ter reparado que os gajos produziram muito bem um grave, ou sacaram um sample e deram-lhe uma nova vida. É mais essa a inspiração: a criatividade e pessoal que sai fora da caixa” — António Costa
Continuam a dividir o processo de trabalho? O Bernardo mais na produção eletrónica e o António mais na parte escrita?
[A.C.] — Eu acho que agora sou mais Bernardo e o Bernardo mais António, se calhar.
Inverteram os papéis?
[A.C.] — Estamos a tornar-nos num ser mais misturado. A ideia do anónimo talvez venha daí, de não se conseguir distinguir um papel ou um membro. Mas o processo de composição agora é muito mais concentrado na parte eletrónica: estamos os dois mais virados para o computador muito mais tempo.
E na parte mais poética de Ermo, já discutem mais os temas? Esta profundidade das letras nasce das vossas conversas, das vossas viagens a dois?
[A.C.] — As letras vêm sempre das experiências que temos ou juntos ou individualmente, mas já partilhámos muitas coisas, já andámos na estrada montes de tempo e é fácil acharmos os dois a mesma coisa acerca de uma situação, ou chegarmos à mesma conclusão. Se calhar quando uma coisa me mete nojo a mim, ao Bernardo também vai meter.
[B.B] — (risos)
Fiquei com a sensação que houve uma inversão das camadas dos Ermo. Em Vem Por Aqui as palavras eram muito mais gritadas, muito mais irreverentes. Em Lo-Fi Moda parece que é ao contrário: a voz muito mais doce, mais melódica, e a eletrónica mais pulsada.
[B.B] — Aquilo que aconteceu foi que a irreverência de que falas passou por estar presente em todo o objeto. A poética, ou as letras, mesmo não sendo declaradamente irreverentes, também vão a lugares profundos e dizem coisas que queremos dizer. Mas a ideia foi construir um objeto unânime, tornar a música toda numa espécie de afirmação estética: isto é o que fazemos, gostem ou não, mas é aqui que estamos.
[A.C.] — Se calhar não ouves tanta garganta na voz porque a ideia era mesmo retirar grande parte da humanidade à banda. Ser mais um projeto digital e retirar esses elementos demasiadamente distintivos, como a poética ou a retórica, que se ouvia muito em Ermo e agora passam para segundo plano — e torna-se ignorado, se for para o bem da música.
O texto de apresentação deste Lo-Fi Moda diz que o álbum “retrata o comportamento humano engolido pelo mundo digital”. Como é que vocês se sentem neste universo do digital?
[A.C.] — É uma faca de dois gumes. Eu vivo em frente ao computador — e o Bernardo se calhar ainda mais, noutros planetas. Mas a maneira como isso influencia as relações com as pessoas a um nível mais próximo, como por exemplo amigos com quem já não falas há muito tempo e manténs uma relação através de um like, se calhar torna-se mais fútil. E gostava de conseguir retratar essas relações de uma maneira fria. Foi isso que tentámos fazer. Mas ao mesmo tempo este lado digital também tem as suas valências: Ermo é um projeto que cresceu imenso desde o último disco para este, muito por culpa da Internet e de passar muito tempo a falar com outras pessoas, muito melhores do que nós, e a aprender com elas.
“As letras vêm sempre das experiências que temos ou juntos ou individualmente, mas já partilhámos muitas coisas. É fácil acharmos os dois a mesma coisa acerca de uma situação. Se calhar quando uma coisa me mete nojo a mim, ao Bernardo também vai meter” — António Costa
Há dois anos os Ermo andaram em digressão no Brasil. É mais uma prova de que o mundo digital encurta muitas fronteiras.
[B.B.] — Ir ao Brasil foi importante, sobretudo, no aspeto da motivação para o disco. Foi a partir daí, dessa experiência dessa oportunidade, que decidimos assumir esta atitude mais profissional que o António tinha referido. Passar todos os dias pelo trabalho, construir uma rotina, um método de trabalho. E isso reflete-se nos resultados: deixou de ser um método de trabalho e passou a ser algo divertido, aquilo que mais gostamos de fazer.
[A.C.] — Quando recebemos o convite para ir tocar ao Festival DoSol não nos caiu a ficha, não estávamos à espera com o palco ou com o público. E de facto, as dimensões do evento, assustaram-nos um bocadinho. Foi uma das coisas importantes dessa viagem, que nos fez questionar aquilo que andávamos a fazer por aqui…
Houve referências específicas que tenham ajudado à criação deste disco?
[A.C.] — Nós nunca ouvimos uma banda à procura de influências. Podemos é ter reparado que os gajos produziram muito bem um grave, ou sacaram um sample e deram-lhe uma nova vida. É mais essa a inspiração: a criatividade e pessoal que sai fora da caixa.
Como está a agenda dos Ermo?
[A.C.] — Temos algumas apresentações. Vamos tocar no Funchal, na Madeira. Temos uma residência artística e vamos tocar na Estalagem da Ponta do Sol. E depois vamos ter uma data no Projéctil, em Braga, que foi onde nasceu este projeto. Depois vamos ter mais apresentações, lá mais para o final do ano. Estamos a preparar um espetáculo ao vivo, com luzes, para ilustrar o melhor possível a ideia visual que temos para a concretização ao vivo.
Luzes para mostrar ou para esconder — para sombras?
[A.C.] — Luzes para ninguém ver, se calhar!
Gostam da ideia de residências artísticas?
[A.C.] — Uma das músicas, a “Púrpura Pálido”, foi feita numa residência no GNRation. Mas a maior residência que fazemos é estar na casa do Bernardo!
A vossa música também cresce e ganha outra força com essa “clausura” das residências artísticas?
[A.C.] — Já fomos pessoas de sair mais à noite, por exemplo. Sim, somos dois jovens a morar em Portugal: isso pode contextualizar e levar as pessoas a interpretar de determinada maneira, mas para duas pessoas que vivem dentro do computador, se calhar vivemos mais no telescópio do que no sítio onde ele está pousado.
Entrevista: Bruno Martins | Fotografia: Tomba Lobos