“Nunca estivemos interessados em fazer coisas que fossem sucedâneas ou clones de outras músicas”
João “Kaspar” Pires e Hélder Russo são amigos há uma meia dúzia de anos. Os encontros na música, nas cabinas de DJ, deram-lhes a empatia necessária para estarem agora a trabalhar e a compor juntos. Tudo começou com um desafio de Zé Salvador — da editora TINK! — a Kaspar, que rapidamente percebeu que também precisava de ter alguém como Hélder Russo a seu lado. Foi assim que nasceram os Gatupreto, uma dupla que trabalha as raízes da música eletrónica, com texturas house e techno de Detroit e Chicago, e as mescla com a música africana com que ambos cresceram na década de 1980: a que se tocava nas festas de bairros das periferias de Lisboa.
Distino Di Nos Vida, assim, em crioulo — tal como já tinha sido o primeiro Modo Di Trabadja —, é o novo trabalho dos Gatupreto. O primeiro single, “I Became Me”, aparece com a colaboração de NBC. Hélder e Kaspar explicam-nos melhor como nasce este projeto e quais são os telhados por onde se passeia este felino.
Como é que nasceu este Gatupreto?
Kaspar — Nasceu primeiro como Black Tulip, a convite do José Salvador. É um português que mora na Holanda há 40 anos e fez muita música lá e aqui. Foi produtor dos MDA Groove, uma banda de house music cantada em português nos anos 90 — deve ter sido a primeira a ser um pouco mais pop e, na altura, fez trabalhos com a Nayma e com a Kika Santos. Antes disso, nos anos 1980, o Zé tinha um projeto chamado Mundo de Aventuras, nos anos 1980, no género new wave. Basicamente tem muito background na área. A certa altura apaixonou-se pela ideia de trabalhar com artistas portugueses. Eu já o conhecia e até tinha feito um disco com ele, na editora holandesa dele — a TINK!. Veio para Portugal e dedicou-se a esta ideia de pegar no estúdio que tinha construído ao longo de 40 anos e trazê-lo para Lisboa, montá-lo aqui. Fui eu que, como amigo e colaborador, que o ajudei. Foi assim que nasceu o Portland Sound, nos estúdios Big Bit, em Benfica. Então tínhamos lá uma sala e um dos projetos que o Zé tinha chamava-se Black Tulip, com que até já tinha feito alguns lançamentos e que já me tinha mostrado e convidado para integrar. Mas como o Hélder é o meu melhor amigo há uns cinco anos, praticamente desde que nos conhecemos, disse ao Zé que ele era alguém que era importante incluir no projeto, por ter uma visão especial, uma sensibilidade particular.
Foi aí que nasceram os Gatupreto? O Zé Salvador pediu-vos algo específico em termos criativos?
Kaspar — Sim, ele queria fazer uma coisa que lhe soasse a original e que tivesse uma marca autoral. Inicialmente seria Black Tulip, mas começámos a trabalhar juntos e achar que estávamos a desenvolver um universo que até já estava destacado daquilo que o Zé tinha criado. Portanto precisávamos de criar um nome para essa ideia nova.
“Não estamos a fazer isto para apanhar um autocarro da música luso-africana, ou apanhar uma boleia de qualquer outro projeto, embora nos inspire muito o trabalho muito bem feito da [editora] Príncipe e outras estruturas que têm levado esses conceitos. Mas não queremos fazer exatamente isso” — Kaspar
E de onde veio a ideia do nome Gatupreto?
Hélder — No início dos anos 90, antes de o kuduro ser chamado kuduro era Gatupreto. E como o projeto era uma fusão de música africana com um género mais eletrónico, achámos piada. Foi o primeiro nome do kuduro, mas também está já completamente esquecido!
Isso quer dizer que o kuduro está diretamente relacionado com o conceito de Gatupreto?
Hélder — Não. Aliás: das primeiras coisas que disse foi que não íamos fazer kuduro, mas antes tentar explorar outras coisas que nunca explorámos como produtores a solo.
O que é que tens feito na área da eletrónica, Hélder?
Hélder — House e techno, mas sempre inspirado na cena de Detroit. Como Gatupreto tentamos abrir o leque, mas sempre com a influência de Detroit e Chicago.
“No início dos anos 90, antes de o kuduro ser chamado kuduro era Gatupreto. E como o projeto era uma fusão de música africana com um género mais eletrónico, achámos piada” — Hélder Russo
Kaspar, tu também tens trabalhado muito nesse universo da house e do techno. Pode dizer-se que os Gatupreto crescem dessas influências pessoais?
Hélder — Exatamente.
Kaspar — Eu diria que Gatupreto tem muito de dub jamaicano, muito de eletrónica clássica — se pensarmos em Soft Cell, em Frankie Goes To Hollywood e no que era a produção daquela altura, nas máquinas que eram usadas que eram também as máquinas que tínhamos em estúdio, que o Zé tinha desde essa altura: os Oberheim DMX, Oberheim Matrix 6, Roland clássicos… máquinas com um som particular. Achámos piada utilizar essas ferramentas para fazer uma linguagem nossa. E aquela questão do kuduro é importante: nós queremos pegar na expressão pelo sentimento, pela memória que tínhamos do que era ouvir música local, de bairro, numa cultura que não era conhecida em mais lado nenhum.
Também cresceram nesse ambiente de ouvir música no bairro?
Kaspar — Claro! Havia isso na minha escola. Eu sou de Odivelas, também jogava à bola em Santo António dos Cavaleiros. Aliás, a primeira produção que fiz — tinha 14 anos — foi com um dos DJs da discoteca Mussulo! Na altura, em 1996 ou 1997, estava a bater uma cena que era o speed garage — uma primeira versão do que viria a ser o house inglês, com os baixos diferentes, mais pesados, por causa da influência jamaicana, e BPMs mais rápidos. E já na altura discutia com outros DJs que achava que esta identidade luso-africana era aquilo que era exclusivo à nossa cultura e era algo que podia ser explorado. Sempre tive essa ideia, mas depois o facto de ter começado a pôr música em circuitos mais clássicos, fizeram com que adormecesse essa ideia durante muitos anos. Mas cheguei a produzir música nesse sentido ainda muito novo. Nós não estamos a fazer isto para apanhar um autocarro da música luso-africana, ou apanhar uma boleia de qualquer outro projeto, embora nos inspire muito o trabalho muito bem feito da [editora] Príncipe e outras estruturas que têm levado esses conceitos. Mas não queremos fazer exatamente isso.
“Em 1996 ou 1997 eu já na altura discutia com outros DJs que achava que esta identidade luso-africana era aquilo que era exclusivo à nossa cultura e era algo que podia ser explorado. Sempre tive essa ideia, mas depois o facto de ter começado a pôr música em circuitos mais clássicos, fizeram com que adormecesse essa ideia durante muitos anos” — Kaspar
Nota-se a influência da música africana nas vossas produções, não só neste trabalho, Distino di Nos Vida, mas também no primeiro lançamento: Modo di Trabajo. Mas não é nem com o mesmo ritmo nem com as mesmas referências de outros projetos que têm feito sucesso na música eletrónica urbana em Portugal nos últimos anos. Gatupreto vem com outras batidas, outras texturas e uma outra identidade.
Kaspar — E é verdade isso que dizes. Nunca estivemos interessados em fazer coisas que fossem sucedâneas ou clones de outras músicas. Sempre quisemos fazer coisas que mais ninguém conseguisse fazer.
Hélder — Eu acho que Gatupreto não tem identidade, não tem estilo. Nós já estamos a preparar outros dois discos que já não têm nada a ver com este. A ideia é mesmo não haver limites. Não tem que ser sempre com música africana, por exemplo. Claro que começámos com essa certa pitada, mas este último EP já tem momentos em que foge um bocadinho.
Kaspar — Quando se fala em Gatupreto não deve ser uma coisa muito colada a um género da mesma maneira quando se fala — e mostrando algum exagero no exemplo — em Neptunes, Sly And Robbie, ou uma parelha de produtores que conseguem ter sempre um cunho autoral embora, muitas vezes, viajem em diferentes estéticas e diferentes ideias. É claro que há uma atmosfera em Gatupreto, mas não tem a ver com o BPM: tem mais a ver com o feeling, com a nossa infância, com o imaginário comum, com termos ouvido KLF, $NAP, A Tribe Called Quest, ou a música africana que havia na altura em Lisboa que está um bocado perdida nas brumas da memória agora que só se fala nesta nova, por exemplo. É desligar o complicador e deixar que essas coisas se misturem um bocado com a intenção que nós temos de fundir com uma alguma etnicidade e ver o que sai. Se começamos a empurrar muito a coisa para um lado vai soar a forçado!
O primeiro single deste Distino di Nos Vida chama-se “I Became Me” e vem com a voz do NBC, que até aparece aqui com uma voz diferente a fazer lembrar do house clássico de Chicago, profundas e graves. Como é que ele aparece neste trabalho?
Hélder — Foi um processo natural. O NBC tem uma visão especial sobre a música. Já tínhamos privado com ele, conversado sobre diversas coisas, como outros estilos musicais — ele ouvia muita música eletrónica nos anos 1990. Disse-nos que queria fazer uma coisa muito dub e o Kaspar, como ouve muito dub, sugeriu experimentarmos. Assim foi. Como ele estava na mesma sala que nós, no estúdio Big Bit, mostramos-lhe o som, ele levou o beat para casa e dois dias depois trouxe a letra feita.
Estas faixas também são sempre feitas para terem uma vida ao vivo, claro. Como é que o Gatupreto se sente quando sai à rua?
Hélder — Sinto um poder imenso no tema “Grandi Loba” do primeiro disco, e o “Afrowerk”. São uma energia incrível no club.
Kaspar — Não andamos a fazer lives, porque é muito difícil para nós — sobretudo com os orçamentos disponíveis. Para conseguirmos levar para palco uma coisa com a qualidade sonora que temos no estúdio, precisamos de bom equipamento. É preferível fazer bons DJ sets com este universo musical do que levar para o palco uma coisa que está pré-gravada e que não consegue ir além do que já é no single. Procuramos sempre a sensação de deixar impressionado quem nos está a ouvir.