Foto: Bruno Martins
“Não fiz outra coisa neste ano e meio que não ouvir os discos dos GNR”
O jornalista Hugo Torres é o o autor da recente biografia oficial da banda de Rui Reininho, Tóli César Machado e Jorge Romão. “GNR – Onde Nem A Beladona Cresce” já está à venda e recorda os 35 anos de existência do Grupo Novo Rock, os melhores e os piores momentos do grupo. Fomos ouvir o biógrafo para perceber quais foram os grandes desafios de escarafunchar nos arquivos históricos de recortes de jornais da “mais vanguardista das bandas pop portuguesas”.
Quando houve a proposta de trabalho da editora, qual foi a tua primeira reação? Foste escutar os GNR ou ler sobre os GNR?
O livro nasceu de um convite da editora [Porto Editora], que queria fazer uma obra sobre os GNR e andavam à procura de um autor. Não sei se te lembras de uma confusão que houve com o [Rui] Reininho no programa The Voice, e na sequência de uma conversa meio parva de almoço, escrevi uma crónica a defendê-lo, basicamente a dizer que ele podia fazer o que quisesse porque é o maior. A pessoa na Porto Editora que estava a montar o projeto leu aquilo, gostou e fez-me o convite. Só que eu não tinha a mais pequena ideia do que fazer! O problema era óbvio: os GNR são mais velhos, enquanto banda, do que eu – eles têm 35 e eu 32. A primeira preocupação foi ler tudo o que houvesse de enquadramento histórico, cultural, social, do fim da década de 1970 e inícios de 1980, que nem era muita coisa, mas foi a forma de me preparar para perceber o contexto em que eles surgiram.
E depois disso?
Foi falar com eles. Fazer uma grande entrevista, que é o centro do livro enquanto matéria-prima, já que é muito baseado em pesquisa bibliográfica e de imprensa da época, pontuada por intervenções deles nessa entrevista. Depois fui aprofundando em algumas conversas individuais com eles, com mais recortes de imprensa, a ouvir os discos que eles tinham-me dito de que gostavam e a ler os livros de que me falaram.
A escuta dos discos dos GNR também foi preparação para a escrita deste GNR – Onde Nem a Beladona Cresce?
Claro. Não fiz outra coisa neste ano e meio que não ouvir os discos dos GNR! E julgava que me ia cansar, mas isso não aconteceu. Era expectável, não? Ouvimos um disco 20 vezes e mesmo que seja bom, deixa lá está-lo sossegado. Curiosamente isso não aconteceu. Houve um caso em particular de um dos discos, e foi mesmo interessante perceber que o álbum é mesmo bom, que eu gostava mesmo dele e o disco não existia para fazer um favor a ninguém: o Caixa Negra de 2015. Ouvir esse disco fez-me perceber que não ia escrever a história de uma banda antiga que está a arrastar-se. Eu ouvia um disco deles e voltava ao Caixa Negra. Ouvia outro e voltava a este disco.
“Eles dizem várias vezes, e sempre afirmaram à imprensa da época, que estavam à procura de novos caminhos. Muitas vezes mesmo não dizendo, fizeram-no por resposta, por sentir necessidade de mostrar que não estão cá para dar abébias a críticos”
Também já tinha sentido que quando se dizia que Caixa Negra era um regresso ao passado dos GNR não era um mero clichê.
Eu tive de ler tudo o que se escreveu sobre eles – ou boa parte – ao longo destes 35 anos. E isso foi dito sempre. Pelo menos há 30 anos que se diz “isto é um regresso ao álbum x”. A partir do Psicopátria estamos sempre a regressar a um disco qualquer lá para trás. Mas eles dizem várias vezes, e sempre afirmaram à imprensa da época, que estavam à procura de novos caminhos. Muitas vezes mesmo não dizendo, fizeram-no por resposta, por sentir necessidade de mostrar que não estão cá para dar abébias a críticos. Aventuram-se depois dos grandes sucessos do Rock In Rio Douro (1992) e do Sob Escuta (1994) por coisas mais leves, mais eletrónicas – caso de Mosquito e Popless, no final da década – que já não têm nada que ver com aquilo que fizeram antes.
Foi importante, para escrever este livro, seres mais novo do que a banda? Torna-o, efetivamente, mais factual? Se fosses mais velho se calhar tinhas começado por recordar memórias mais pessoais dos GNR…
Acredito que se eu tivesse envolvido com a crítica musical há mais tempo, teria alguns vícios que não tive. Teria, talvez, uma visão mais ‘preconceituosa’ por ter acompanhado os GNR desde o início e tinha acompanhado a evolução deles. Mas isso não aconteceu comigo: olho para o Independanças (1982) ou para o Caixa Negra e sinto que estão exatamente no mesmo sítio e no mesmo patamar. Não tenho qualquer problema com o Vítor Rua, com o Alexandre Soares nem com o Zezé Garcia, nem com nenhum dos outros elementos que passaram pela banda e cujas saídas até causaram alguns celeumas bastante mediáticos, que gerou posições claras de críticos e jornalistas da altura. Eu não tinha nada disso! Deu para ouvir os discos de igual para igual e isso foi bastante favorável.
Qual era a tua relação com os GNR? Eras fã?
Claro que sim. Eles, para mim, são uma banda que está cá desde sempre! Eu não faço a mais pequena ideia de quando é que eles entraram na minha vida porque sempre estiveram cá! Sempre ouvi a música deles na rádio, a toda a hora. Houve canções que eu não fazia a mais pequena ideia que eram dos GNR e de repente já eram. Estou a falar de memórias de infância e de início de adolescência. Percebi que havia alguns discos a que se calhar não ia com mais frequência, como a Valsa dos Detectives (1989) ou o Sob Escuta, mas percebendo o contexto, a história deles e a vontade de alargar fronteiras, tornaram-se arte contemporânea! Com o descritivo lá consegue perceber-se o que é que eles queriam fazer.
“Pediram apenas uma breve apresentação minha e alguns textos que já tinha escrito. O [Jorge] Romão decidiu com base de ser da Póvoa de Varzim e gostar de The Clash”
A primeira entrevista que fizeste para o livro foi também a primeira vez que estiveste com eles?
Foi. Foi a primeira vez que lhes apertei a mão! (ri-se)
O que é que a banda achou de teres sido o escolhido para escrever a biografia?
Acho que queriam algum distanciamento – é a minha perceção da coisa. Pediram apenas uma breve apresentação minha e alguns textos que já tinha escrito. O [Jorge] Romão decidiu com base de ser da Póvoa de Varzim e gostar de The Clash! (risos)
O teu trabalho também lhes serviu para avivar a memória de histórias que se calhar já nem os GNR se lembravam?
Sim. Pelo menos eles dizem que sim. Há coisas que não se lembravam de todo. Mas só o Tóli, que foi o grande fornecedor de material de arquivo, tem três ou quatro caixotes daqueles grandalhões com recortes de imprensa. Nem são jornais: são recortes! Claro que há coisas que aconteceram em 1982, 1985 ou 1989 que eles não se recordam.
Há pouco perguntei qual era a relação que tinhas com os GNR antes do livro. Agora pergunto-te como é que olhas para a banda? Hoje em dia és um especialista em GNR!
(Risos) É obviamente mais próxima. Uma das coisas mais surpreendentes é não me ter cansado de nenhum disco. Ainda andei à procura de canções para não gostar e só encontrei uma – que não vou revelar qual é! E mesmo lá em casa já havia algumas queixas: “Outra vez GNR?!” (Risos) Não sei se vai continuar assim muito tempo, mas ainda dou por mim assobiar canções, a cantarolar letras, ou pôr a tocar GNR automaticamente quando abro o Spotify… de repente eles fazem parte do meu quotidiano. Uma coisa que me deixa muito entusiasmado com a obra dos GNR é que, de repente, percebi que eles eram a mais vanguardista das bandas pop portuguesas. Fartaram-se de arriscar: logo no início, com um sucesso tremendo, trocam de vocalista sem problemas; fazem um álbum que tem um lado B com um tema de 27 minutos [“Avarias”] que é uma trip completa; o suposto cérebro do grupo até então sai – o Vítor Rua – e eles ficam até melhores! Na altura em que a canção de intervenção está muito presente, em 1987, marcam um concerto no Coliseu dos Recreios na noite de 24 para 25 de Abril, mesmo quando toda a gente o dizia para não o fazer e aquilo explode de gente (na mesma noite em que os Sétima Legião apresentavam um novo disco no Rock Rendez Vous); foram a primeira banda portuguesa a fazer um concerto num estádio [Alvalade, em 1992] e que correu muito bem! O grande concerto de rua de em Lisboa foi na Alameda D. Afonso Henriques em 1990 e foi com eles: havia pessoas a serem retiradas pelo palco, pessoas em cima dos carros… a tribuna de imprensa veio abaixo. E depois dessa altura, acabaram por desmontar tudo para fazer algo intimista.
“Ajuda ter esse sentido de humor muito erudito, culto, certeiro e cáustico do Reininho. Ele é capaz de fazer uma crítica muito contundente de uma forma muito levezinha”
E sempre achei piada ao facto de eles reagirem sempre às adversidades ou aos momentos menos bons com um grande humor.
Ajuda ter esse sentido de humor muito erudito, culto, certeiro e cáustico do Reininho. Ele é capaz de fazer uma crítica muito contundente de uma forma muito levezinha.
“Onde nem a Beladona Nasce”. Porquê este título?
A beladona é uma planta com potencialidades alucinogénicas, psicotrópicas. A frase é um verso de uma canção dos GNR, “Ao Soldado Desconfiado”, do Psicopátria – e não há grande prurido em dizer que é o grande álbum dos GNR. É o consenso da crítica e dos fãs. Tínhamos uma quantidade de possibilidades em cima da mesa, quase todas com versos do Reininho, e optou-se por esta: são estas estrelas pop gigantes, mas que, na verdade, como a indústria e o mercado são pequeninos, tornam-se espartilhados. Nem mesmo uma planta que se dá em todo o lado consegue crescer aqui.
Entrevista: Bruno Martins